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3. O ENQUADRAMENTO EUROPEU

1.2. BREVE APONTAMENTO HISTÓRICO

Tal como referimos no início do ponto anterior (capítulo III – 1.1.) o sistema de governação de sociedades surgiu nos EUA e, de acordo com ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO,

as primeiras abordagens ao tema remontam ao ano de 1932, correspondendo à altura em que alguns autores norte-americanos conceberam o «tema da separação, nas grandes empresas, entre a propriedade (formal) e o controlo das sociedades»112. Assim, a dissociação efetiva

verificada entre o risco do capital investido e a administração de facto das sociedades comerciais surgiu como uma problemática que reclamava maior atenção e devido tratamento.

109 Esta expressão foi usada inicialmente usada pelo filósofo Robert Edward Freeman na década de 1960, tendo

sido posteriormente utilizado e “reinventada” em diversas obras e teorias relativas ao tema.

110 Segundo Catarina Serra, podemos definir o termo de stakeholders como «”as partes interessadas”, ou seja,

todas as entidades (indivíduos ou organizações) que afectam a actividade de uma empresa ou são afectados por ela: por um lado, os investidores (ou shareholders), os trabalhadores, os parceiros comerciais, os fornecedores, os clientes e os credores – stakeholders contratuais – e, por outro lado, a comunidade local, as associações de cidadãos, as entidades reguladoras e o Governo – stakeholders colectivos» - Cfr. CATARINA SERRA, op. cit., p. 104.

111 Para maior desenvolvimento sobre o conceito vide CATARINA SERRA, op. cit., pp. 91-96 e 102-109.

No entanto, e agora na conceção dada por JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, o

corporate governance movement apenas teve efetivo início na década de 70 do séc. XX., alicerçado por um particular impulso do polémico escândalo denominado de Watergate, em que investigações das autoridades competentes revelaram que diversas sociedades norte- americanas haviam financiado ilegalmente a campanha eleitoral do então presidente dos EUA Richard Nixon (1969-1974) , eleito pelo Partido Republicano, que culminaria na sua renúncia ao cargo para o qual havia sido eleito113. Foi assim, no seguimento deste escândalo

político, que surgiu a consciência de que o controlo e a direção societárias eram desajustados à realidade e inadequados a prevenir desvios à legalidade e normalidade da administração de sociedades.

Além do referido caso, e reportando-nos agora a uma realidade mais recente, novos escândalos surgiram, abalando mais uma vez a conceção existente relativa ao controlo e fiscalização da atuação da administração das sociedades, entre os quais, destacamos os casos mediáticos da Enron, WorldCom e da Global Crossing, os quais demonstraram a existência de práticas de governação de sociedades que se vislumbravam contra todos os parâmetros éticos e mesmo até legais114.

Porém, esta nova realidade de controlo e fiscalização societárias apenas chega efetivamente à Europa na década de 90, mais precisamente ao Reino Unido, na esteira de (novos) escândalos financeiros e falências empresariais115, o que levou à publicação, em

Dezembro de 1992, de um dos mais relevantes, mesmo atualmente, textos sobre o tema, que

113 Para maior desenvolvimento vide JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Governação das

Sociedades Comerciais…, op. cit., pp. 09-14.

114 JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Governação das Sociedades Comerciais…, op. cit., pp. 10-

11.

115 Destacamos os casos das sociedades Maxwell, Polly Pock International, Brent e Walker – vide sobre o tema

e para maior desenvolvimento ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, op. cit., pp. 892-893 e JORGE MANUEL

ficou conhecido como o Cadbury Report116, ao qual se seguiram outras iniciativas117. Alastra-

se depois, naturalmente, ao resto dos países da Europa, possibilitando a adoção de diversas regras e recomendações de entidades públicas ou de supervisão por parte das sociedades europeias.

Uma das primeiras instituições internacionais a adotar os princípios da corporate

governance foi a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) ao aprovar, em 1999, um diploma intitulado: “Principles of Corporate Governance”, posteriormente revisto, desenvolvido e atualizado, primeiro em 2004 e, posteriormente, em 2015118. Segundo CATARINA SERRA, os princípios constantes deste documento «cobrem, grosso modo, os seguintes aspectos: (1) o regime eficaz de corporate governance; (2) os direitos dos accionistas e as funções dos detentores do capital; (3) o tratamento equitativo dos accionistas; (4) o papel dos stakeholders na governação da empresa; (5) a transparência e a difusão da informação; (6) a responsabilidade dos administradores»119.

Assim, como consequência necessária da introdução dos sistemas de corporate

governance na Europa, os administradores passaram a assumir um papel de destaque em detrimento dos acionistas/sócios, pois é a estes que incumbe, efetivamente, a direção e gestão das sociedades comerciais (especialmente no caso das grandes sociedades anónimas em que o capital se encontra bastante disperso por diferentes acionistas). Nessa conformidade, concordamos com CATARINA SERRA quando esta afirma que «actualmente, a gestão das SA

está centralizada no órgão administrativo, mais particularmente no conselho de administração» e que «por causa daquela concentração (dos poderes de gestão no órgão de

116 Um relatório datado de 1992, elaborado sob a autoria do Commitee on the Financial Aspects of the Corporate

Governance, presidido por Sir Adrian Cadbury, do qual resultou um primeiro “código de boas práticas de

governo das sociedades”.

117 A partir deste relatório começaram a surgir diversos códigos, princípios, recomendações e guias de governo

societário, de tal forma, que antes de 1998 existiam, na UE, apenas dez códigos (seis no Reino Unido) e até ao

princípio de 2002 surgiram outros vinte e cinco – cfr. JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU,

Governação das Sociedades Comerciais…, op. cit., pp. 12-13.

118 Esta última edição de 2015 encontra-se disponível, para consulta e download, em:

https://www.oecd.org/daf/ca/Corporate-Governance-Principles-ENG.pdf (endereço eletrónico consultado no dia 14 de Junho de 2018).

administração), houve, naturalmente, a necessidade de reforçar os deveres que impendem sobre os gestores, para minimizar o risco de virem a gerir a empresa em proveito próprio ou de terceiros ou de serem mantidos em funções em casos de gestão ineficiente», pois «como afirmaram alguns, “[a] concentração dos poderes nos gestores exige a sua responsabilização. Os recentes colapsos de sociedades, principalmente quando deixam os gestores ricos e os sócios pobres, exigem accountability”»120.

Ainda de acordo com a mesma Autora, não podemos deixar de notar que «a governação das sociedades difundiu-se, entretanto pela Europa e projectou-se em reformas também nos vários ordenamentos jurídicos europeus. É certo que a realidade empresarial europeia é – sempre foi – diferente da norte-americana: as sociedades com acções cotadas em bolsa são menos numerosas e a titularidade das acções é menos dispersa. Isso não significa que não existam riscos – e riscos de natureza não tão diversa como poderia parecer à primeira vista»121.