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Capítulo 3 – O discurso e a prática das políticas federais para a Agricultura Familiar

3.3. Um breve balanço

Neste capítulo, apresentamos uma descrição dos programas federais direta ou indiretamente orientados para o estímulo à Agricultura Familiar no Brasil. A partir de elementos fornecidos pelo referencial da Análise de Política, e em especial das categorias de ―política proposta‖, ―política de fato‖ e ―política em uso‖, pudemos apresentar algumas reflexões a respeito do contexto no qual essas políticas foram elaboradas, seus conflitos, o modelo cognitivo sobre o qual estiveram apoiadas, etc.

De forma geral, observa-se que, ao longo dos últimos anos, tem havido um aumento do interesse no tema da Agricultura Familiar, tanto no plano dos estudos acadêmicos, quanto naquele das políticas públicas propriamente ditas. É quase consenso – pelo menos no plano do discursos – nos países latino-americanos que o agricultor familiar deve ser também foco de intervenção de política pública da mesma forma que o é o grande proprietário. Duas questões nos preocupa: essa intervenção plural não mascara o real conflito entre esses dois segmentos? Os instrumentos de políticas públicas relacionadas à Agricultura Familiaraplicadas pelo Governo Lula não estão apenas cumprindo a prerrogativa de que o Estado tem que legitimar sua atuação perante à sociedade?

A partir da análise do conjunto de ações implementadas é possível inferir não só as características da intervenção e, portanto, se elas são coerentes com o discurso, mas também qual é o tipo de agricultor familiar que o Estado quer reforçar.

O quadro abaixo foi desenhado com o intuito de confrontar o Discurso (Política proposta e Política de fato) e a Prática (Política em uso). A Forma visual que encontramos para melhor demonstrar foi uma matriz que sistematizasse alguns temas- chave que constavam no Programa de Governo do PT, em especial no caderno Vida Digna no Campo, de 2002, e verificasse a incorporação (ou não) nos principais documentos analisados. Primeiramente, a incorproação (ou não) deles nos PPAs e, em seguida, no processo decisório de formulação das políticas e ações implementadas no Governo Lula. Facilitando assim a apresentação de algumas conclusões parciais:

Quadro 3.10.: Elementos contemplados nos documentos analisados TEMAS PPA 2004-2007 e 2008- 2011

PRONAF SEGUROS REFORMA

AGRÁRIA

REG. FUNDIÁRIA

PNATER/

PRONATER PRONERA PAA ALIMENTAÇÃO ESCOLAR

Crédito e seguro Assistência e Extensão Rural Recuperação da pesquisa Produção agroecológica Compras governamentais Educação no campo Nova matriz tecnológica Associativismo e cooperativismo

Observa-se que os PPAs incorporaram apenas as ações tradicionais relativas ao crédito e à assistência técnica e extensão rural. Além disso, ele reforça um programa existente - Desenvolvimento do Cooperativismo e do Associativismo Rural – a fim de fortalecer a organização do setor e de estimular a eficiência das cadeias produtivas. Este programa não é destinado especificamente à Agricultura Familiar, ele abrange os médios produtores também.

O conjunto de propostas de ações, correspondente a uma outra forma de produção, a uma nova matriz tecnológica elaborada a partir de uma pesquisa orientada à Agricultura Familiar, não entrou na agenda governamental. E, portanto, nem foi alvo especificamente de ações de políticas federais. Aliás, a preocupação com a recuperação da pesquisa e a conformação de uma nova matriz tecnológica que dê conta do desafio da realidade dos agricultores familiares não foram escopo de nenhuma política pública diretamente.

Vale destacar que apenas a PNATER/PRONATER e o PRONERA incluíram em suas ações a preocupação com a produção agroecológica e com uma educação que contemplasse essa perspectiva. Contudo, é interessante notar que essa preocupação, apesar de ter sido contemplada pelo documento norteador das ações da política, não o foi pela Lei n° 12.188/2010, que a instituiu. Ou seja, esse conceito foi subtraído da lei.

Além disso, as ações relacionadas à Reforma Agrária (PNRA) caminham para a uma política de assentamento e de ―reforma agrária de mercado‖ do que para uma efetiva reestruturação da questão agrária e fundiária brasileira. O Governo Lula não foi capaz de romper com o instrumento de política pública, pautado no mecanismo de linhas de financiamento para compra de terra pelo agricultor familiar, elaborado pelo Banco Mundial e implementado inicialmente pelo Governo FHC.

Outra ação implementada que merece destaque foi a obrigatoriedade de que 30% da compra governamental da alimentação escolar fosse oriunda dos produtos da Agricultura Familiar e que fossem preferencialmente agroecologicos. Como essa ação foi implementada recentemente, ainda não foi possível analisá-la na prática. Entretanto, vale destacar a entrada desse assunto na agenda decisória. Foi uma conquista de grupos da saúde coletiva que há anos tentam inserir essa preocupação.

Em termos do discurso, verificou-se uma retórica plural: ao mesmo tempo em que os interesses do agronegócio, tradicionalmente atendidos pela política, são contemplados, também devem ser aqueles dos agricultores familiares.

Entretanto, a pluralidade no discurso requer simetria nas ações. E, apesar do aumento de ações e recursos destinados à Agricultura Familiar, e de avanços quanto à assistência técnica e extensão rural, à educação para o campo e à alimentação escolar, a simetria nas ações implementadas para o agronegócio e para a Agricultura Familiar não foi verificada. Em especial no que se refere ao montante de rescursos destinados aos dois segmentos.Sobre isso, reiteramos que enquanto o volume de recursos destinados ao agronegócio cresceu a taxa média, nos útlimos anos, de 50% por ano, o Plano Safra Agricultura Familiar cresceu a taxa média de 1%.Em relaçãoà proporção de recursos destinados ao Plano Safra Agricultura Familiar em relação àqueles destinados ao Plano Agrícola, verificamos que nas safras mais recentes – 2009/2010, 2010/2011 e 2011/2012, os agricultores familiares receberam, respectivamente, 13,9%, 16% e 14,9% do montante destinado ao PAP. Essa proporção assimétrica também é verificada nas safras anteriores.

É fato que os programas aqui apresentados mostram que tem havido, sim, um adensamento das políticas públicas voltadas para a Agricultura Familiar no Brasil. Contudo, pela dimensão e importância que tem, esse segmento deveria contar com um volume ainda maior de recursos e ser atendido por um conjunto de ações ainda mais diversas e complexas, como ações de pesquisa agropecuária orientadas ao desenvolvimento de uma matriz tecnológica adequada às necessidades do agricultor familiar.

Além disso, nota-se que as ações mais robustas têm sido aquelas direcionadas à oferta de crédito ao produtor por parte do governo federal. Ações de caráter transformador, como o estímulo à produção de conhecimentos para a agroecologia e o fortalecimento da educação para a vida no campo, ainda constituem objetos marginais no âmbito dessas ações.

Com isso, as políticas parecem sinalizar claramente para uma preocupação no sentido da capitalização dos empreendimentos da Agricultura Familiar. Quando o

problema é construído dessa forma, as respostas são as mesmas que têm sido convencionalmente dadas: ampliação das linhas de crédito, produção de conhecimentos e tecnologias convencionais. Ainda que reconheçamos os avanços dessas políticas no período recente, acreditamos que medidas distintas, que favoreçam uma transformação do modelo de produção e da forma de organização da vida no campo, sejam necessárias para o desenvolvimento da Agricultura Familiar no Brasil.

Idealmente, ao analisar os três momentos – Política Proposta, Política de fato e Política em Uso – constataríamos uma trajetória sem distorções do primeiro momento ao último, conforme Figura 3.11.

Figura 3.11.: Trajetória Linear da Política Federal Proposta à Política Federal em Uso

Fonte: Elaboração própria.

Ao analisar esses momentos, constatamos que a trajetória foi distorcida, de acordo com a Figura 3.12.

Figura 3.12.: Trajetória Real da Política Federal Proposta à Política Federal em Uso

Fonte: Elaboração própria.

Comparando o discurso e prática entre o primeiro e segundo mandato (2007- 2010), verificamos que o discurso e a prática do segundo mandato espelhou continuidade com a Política ―de fato‖ e com a Política ―em uso‖ do primeiro mandato, conforme Figura 3.13.

Figura 3.13.: Trajetória Real da Política Federal Proposta à Política Federal em Uso (Primeiro e Segundo Mandato)

Respondendo às perguntas propostas por este trabalho, verificamos a partir das análises dois aspectos importantes. O primeiro é que não houve coerência entre as propostas do Programa de Governo e os PPAs. A percepção é de que os grupos que participaram da elaboração do primeiro documento não foram os mesmos do segundo. Tendo em vista que os PPAs diminuíram a radicalidade do Programa de Governo, eles chegaram a ser mais coerentes com as ações implementadas. Entretanto, como ressaltamos anteriormente, no que se refere à simetria das ações destinadas ao agronegócio e à Agricultura Familiar – revestidas pelo discurso plural –, essa não foi verificada.

CAPÍTULO 4 – O DISCURSO E A PRÁTICA DOS PROGRAMAS INSTITUCIONAIS