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Capítulo II. Espiritualidade e bem-estar espiritual

2.1. Breve contextualização histórica da espiritualidade

A espiritualidade parece ser ainda um assunto “tabu” no meio científico, nomeadamente na Psicologia (Goldestein & Sommerhalder, 2002, citado por Negreiros, 2003; Marques, 2003; Martins, 2000; Meneses, 2006; Oliveira, 2007; Pestana et al., 2007). De facto, vários autores denotam existir uma certa resistência à abordagem deste tema, como é o caso de Gonçalves e Coimbra (2002-2003) que explicitam, na perfeição, esta ideia:

a marginalidade durante décadas, e neste momento o silêncio cúmplice(?), do tema religião/espiritualidade, (…) é ainda hoje uma realidade, transformando-se num tema quase tabu, porque explicitá-lo seria pôr em causa o estatuto de cientificidade da Psicologia e entrar num discurso da irracionalidade da mera crença que carece de uma justificação, como se a complexidade do humano resistisse a uma análise meramente científica e positivista (¶ 5)

A atitude crítica de muitos profissionais relativamente à espiritualidade teve a sua precedência em Freud (1928, 1964, citados por Moss, 2002; 1927, 1930, citados por Moreira- Almeida, Neto, & Koenig, 2006), com o seu livro intitulado “The future of an illusion”, no qual o autor descreve a religião como uma projecção dos receios e desejos humanos. Retrata, também, as pessoas religiosas como seres supersticiosos e demasiado fracos para enfrentar a realidade, realizando uma apreciação similar no que respeita à espiritualidade. Como sublinha McGrath (1997, citado por Büssing, Ostermann, & Matthiessen, 2005b), o domínio das ideias seculares e da ciência positiva conduziu à marginalização, ou mesmo exclusão, de noções como as de espiritualidade no contexto dos cuidados de saúde, limitando seriamente a investigação nesta área.

De facto, a procura de consolidação da Psicologia, enquanto ciência empírica, favoreceu o estabelecimento de uma perspectiva orientada para a avaliação que, até então, se encontrava radicalizada pelo movimento comportamental, o qual rejeita a investigação de fenómenos comportamentais não observáveis (Moss, 2002). Jung foi pioneiro ao contribuir para uma abertura da Psicologia à experiência religiosa e espiritual, colocando um término à tradicional

dissociação entre a espiritualidade e a Psicologia (Dry, 1961, citado por Crossley & Salter, 2005; Moss, 2002). Este autor conceptualizava a espiritualidade como um caminho para a integração e plenitude pessoal, reconhecendo o valor dos símbolos religiosos, mitos e arquétipos enquanto instrumentos terapêuticos para a cura da psique humana (Moss, 2002).

Moberg (2002) e Moss (2002) referem que, até meados de 1960, apenas uma ínfima parte da literatura abordava a espiritualidade. Os autores mencionam que o posterior interesse científico ficou a dever-se, em parte, a Maslow, que se desviou de uma perspectiva puramente humanista e fundou a Psicologia Transpessoal (ou Espiritual)13, acrescentando, ao topo da sua hierarquia das necessidades, a necessidade de auto-realização. Este facto decorre de investigações que levou a cabo com indivíduos auto-realizados, tendo concluído que o nível mais elevado de auto-realização requer um movimento para além do self.

Assim, o enfoque sobre a espiritualidade começou a surgir, sobretudo, a partir da década de 60 do século passado, embora, do ponto de vista religioso, seja uma área estudada há séculos (Oliveira, 2007). Daí que as definições mais tradicionais enquadravam a espiritualidade no contexto da religião; no entanto, mais recentemente, este conceito passou a integrar os aspectos da vida e as experiências humanas (Gomes & Fisher, 2003, Muldoon & King, 1995, citados por Gouveia, Ribeiro, & Marques, 2008a; Hill et al., 2000, citado por Zinnbauer & Pargament, 2005; Oliveira, 2007; Pestana et al., 2007). Na actualidade, a Psicologia tem assistido a um movimento crescente na compreensão e investigação metodológica no domínio da espiritualidade, facto este comprovado pelo inegável surto de estudos científicos no âmbito dos cuidados de saúde (Byrd, 1998, Helm, Hays, Flint, & Koenig, 2000, Koenig & Blazer, 2000, Lichter & Amundson, 2000, MacDonald & Friedman, 2001, citados por Moss, 2002; Post, Puchalski, & Larson, 2000; Zinnbauer & Pargament, 2005).

Tal como menciona McSherry (1998, citado por Kelly, 2004), as preocupações espirituais e as necessidades humanas são, por vezes, fulminadas pelos numerosos avanços científicos e metodológicos realizados no âmbito da Medicina convencional. Devido a este modelo de

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A Psicologia Transpessoal refere-se ao campo de investigação, aplicação e estudos científicos relativamente à espiritualidade da natureza humana e do potencial presente em todas as pessoas, para que estas se desenvolvam a um ponto máximo (Marques, 2000, 2003; Saldanha, 1999). Os conteúdos básicos da Psicologia Transpessoal incluem: o aprofundamento na religião e nas experiências religiosas; a parapsicologia; a investigação sobre a consciência e os estados alterados de consciência (Marques, 1996, citado por Marques, 2003; Saldanha, 1999).

ciência, apropriado apenas para uma fracção de assuntos relativos à saúde, a biomedicina convencional tende a focalizar-se na doença e não na saúde, compartimentando o tratamento e construindo estados de saúde em sub-especialidades (mentais ou físicas) (Hamilton, Philips, & Green, 2004).

No entanto, é fundamental perspectivar o indivíduo como um todo e não o restringir a compartimentos estanques. O doente deve ser visto na sua globalidade, pois é a sua unidade somato-espiritual que se encontra afectada (Trigo, 2004, citado por Lourenço, 2004). É, portanto, consensual a ideia de que o estudo do ser humano deve ultrapassar a dimensão racional para perspectivar o homem numa dimensão holística, aceitando as emoções, os sentimentos e outros elementos subjectivos como parte integrante do todo (Trigo, 2004, citado por Lourenço, 2004). Além disso, os estudos de Damásio (1995) procuram justificar que a razão e a emoção são inseparáveis, portanto, que o estudo do homem não deve circunscrever- se apenas à sua dimensão objectiva mas, considerar, também, a dimensão subjectiva. Assim, o cuidado holístico assume um papel preponderante enquanto filosofia de prestação de cuidados e modelo para a compreensão da saúde humana, pois reconhece a singularidade do ser humano enquanto entidade bioquímica, psicológica e espiritual e enfatiza a inter-relação e interdependência destes fenómenos (Gordon & Edwards, 2005; Kelly, 2004; Narayanasamy, 2002; Trigo, 2004, citado por Lourenço, 2004). Uma vez que a saúde subentende um perfeito equilíbrio entre estes três componentes, logo, descarta qualquer um deles deixaria o indivíduo incompleto e a desarmonia daí resultante poderia evoluir para a doença, ou até mesmo interferir na cura (Gordon & Edwards, 2005; Koenig, 2000, citado por Moss, 2002; Narayanasamy et al., 2004; Watson, 1998, citado por Kelly, 2004).

Apreende-se, desta forma, a importância da dimensão espiritual na assistência integral nos cuidados de saúde. A espiritualidade proporciona ao doente, fragilizado e ansioso, um sentido para a sua existência, um estado de paz e de segurança, perfaz as suas crenças e dispõe-no a resistir, com maior alento, perante a patologia (Kelly, 2004; Narayanasamy, 2002; Trigo, 2004, citado por Lourenço, 2004).

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