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BREVE DESCRIÇÃO DO CONCEITO DE SUBLIMAÇÃO NA OBRA DE FREUD

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2.3 O MAL-ESTAR NA CULTURA: TRABALHO E SUBLIMAÇÃO

2.3.1 SUBLIMAÇÃO, TRABALHO E RECONHECIMENTO SOCIAL

2.3.1.1 BREVE DESCRIÇÃO DO CONCEITO DE SUBLIMAÇÃO NA OBRA DE FREUD

Ao longo da obra freudiana, o termo sublimação guarda uma característica constante em sua definição, que é a mudança de alvo (do alemão Zeal) da pulsão sexual. A sublimação envolve uma alteração qualitativa do alvo pulsional, que ocasiona a dessexualização desse alvo. Desse modo, a pulsão passa a mirar um objeto valorizado pela Cultura e vinculado ao ideal de eu do sujeito que efetiva a sublimação. Uma das questões mal resolvidas na construção metapsicológica do conceito de sublimação por Freud é justamente a questão da dessexualização do alvo ou objetivo da pulsão. Afinal, se de fato a sublimação depende de uma dessexualização da pulsão, como manter a intensidade pulsional que residiria justamente no seu impulso erótico? Essa transformação do alvo sem perda da intensidade pulsional é o passe de mágica do mecanismo sublimatório e que ocasiona as dificuldades de argumentação no plano metapsicológico.

No artigo “Caráter e Erotismo Anal” de 1908, Freud associa algumas ca- racterísticas de personalidade do indivíduo adulto com o erotismo anal infantil e com as alterações das pulsões sexuais relacionadas a esse erotismo. Nesse senti- do, o tipo psicológico de caráter ordeiro, parcimonioso e obstinado – qualidades do caráter anal – encontraria sua fundação na sublimação das pulsões sexuais relacionadas ao prazer anal: “é plausível a suposição de que esses traços de ca- ráter – a ordem, a parcimônia e a obstinação –, com frequência relevantes nos indivíduos que anteriormente foram anal-eróticos, sejam os primeiros e mais constantes resultados da sublimação do erotismo anal”. (FREUD, 1976 [1908a], p. 117). Evidencia-se assim uma alteração de alvo sem uma repressão absoluta

da pulsão. Esta encontra um caminho alternativo para satisfazer-se sem desobe- decer aos imperativos morais internalizados pelo sujeito ao entrar na Cultura. A questão que surge é, como funciona esse processo sublimatório? Como uma energia que tem como alvo uma determinada modalidade de satisfação pulsional transforma-se e alcança satisfação por meio de outro alvo pulsional?

Em “Moral Sexual Civilizada”, Freud (1976 [1908b]) busca equacionar a re- lação entre pulsão sexual e sublimação indicando a importância desse processo para a construção cultural, atribuindo-o em boa medida, porém, à disposição individual de cada sujeito. Assim, a capacidade para sublimar não dependeria apenas da constituição individual como variaria conforme a idade e a fase da vida do indivíduo:

A pulsão sexual – ou, mais corretamente –, as pulsões sexuais, pois a investigação analítica nos ensina que a pulsão sexual é formada por muitos constituintes ou pulsões componentes – apresenta-se provavelmente mais vigorosamente desenvolvida no homem do que na maioria dos animais superiores, sendo sem dúvida mais constante, desde que superou completamente a periodicidade à qual é sujeita nos animais. Essa pulsão coloca à disposição da atividade cultural uma extraordinária quantidade de energia, em virtude de uma singular e marcante característica: sua capacidade de deslocar seus objetivos sem restringir consideravelmente a sua intensidade. A essa ca- pacidade de trocar seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, mas psiqui- camente relacionado com o primeiro, chama-se capacidade de sublimação (FREUD, 1976 [1908b], p. 193).

Freud (1908b) chama atenção para o fato de que algum grau de satisfação sexual direta é necessário para que o sujeito mantenha um equilíbrio dinâmico. Acrescenta ainda que nem todos os indivíduos são capazes de sublimar. A neuro- se estaria relacionada, neste ponto do pensamento freudiano, a uma incapacidade dos sujeitos de tolerar a moral sexual repressora que estaria na base da Cultura34. A capacidade de sublimar, entretanto, ajudaria o sujeito a viver sob os limites e imposições morais da vida social. Uma vida sexual saudável seria, porém, o remédio para aqueles com pouca ou nenhuma capacidade de sublimação:

[...] podemos afirmar que a tarefa de dominar uma pulsão tão poderosa quanto a pulsão sexual, por outro meio que não a sua satisfação, é de tal monta que consome todas as forças do indivíduo. O domínio da pulsão pela sublimação, defletindo as forças in- stintuais sexuais do seu objetivo sexual para fins culturais mais elevados, só pode ser efetuado por uma minoria, e mesmo assim de forma intermitente, sendo mais difícil no período ardente e vigoroso da juventude (FREUD, 1976 [1908b], p. 198).

Lacan (2008 [1959-60]), no Seminário 7, também sublinha essa necessidade de satisfação direta das pulsões, indicando que não é possível ao sujeito sublimar tudo: “No indivíduo encontramo-nos diante de limites. Alguma coisa não pode ser sublimada, há uma exigência libidinal, a exigência de certa dose, de uma certa taxa de satisfação direta, sem o que resultam danos e perturbações graves” (Ibid, p. 114).

O que se evidencia aqui é uma equação que cada sujeito deve solucionar equilibrando a satisfação direta das pulsões sexuais com a dose necessária de sublimação e de recalcamento. Não fica, contudo, esclarecido o mecanismo da sublimação: trata-se de um processo que deriva do recalcamento ou de um destino diverso da pulsão e que, portanto, segue um caminho diferente no psiquismo? É preciso o recalque para que ocorra sublimação? E a evidente produção cultural de sujeitos psicóticos, teria então outra caracterização me- tapsicológica? Ao organizar os diferentes momentos da construção freudiana sobre a sublimação, Birman (2002) distingue três diferentes teorizações de Freud sobre esse conceito. A primeira delas teria se consolidado no texto de 1908 sobre a Moral Sexual Civilizada:

Nesta perspectiva [enunciada em 1908], a sublimação implicaria uma ‘dessexual- ização’ das pulsões perverso-polimorfas que perderiam assim a sua dimensão abjeta e se transformariam nas sublimes produções do espírito humano, isto é, as diversas modalidades de discursividade artística e científica. Porém, o mesmo objeto da pulsão se manteria ainda em ação, mas transformado agora pela mudança de alvo da pulsão, que de sexual se transmutaria em não-sexual (BIRMAN, 2002, p. 101).

No seu ensaio sobre Leonardo da Vinci, Freud (1910) vincula diretamente sublimação e trabalho ao afirmar que a maior parte dos sujeitos consegue di- recionar energias libidinais para a atividade profissional. A mutabilidade de alvo das pulsões sexuais possibilitaria esse redirecionamento de pulsões que na infância se mostraram em sua face diretamente sexual. Na vida adulta, a atividade do trabalho se basearia na energia derivada das pulsões sexuais sublimadas, havendo uma conexão entre as pulsões sexuais e a atividade labo- rativa, a qual favoreceria o deslocamento de objetivo e de objeto. Por sua vez, a atividade sexual originária é abandonada atendendo aos preceitos morais da Cultura. Diferentemente, porém, da tese enunciada em 1908, o erotismo pulsional não é recalcado, mas transformado:

A observação da vida cotidiana das pessoas mostra-nos que a maioria conseguiu ori- entar uma boa parte das forças resultantes da pulsão sexual para sua atividade profis- sional. A pulsão sexual presta-se bem a isso, já que é dotada de uma capacidade de

sublimação: isto é, tem a capacidade de substituir seu objetivo imediato por outros desprovidos de caráter sexual e que possam ser mais altamente valorizados. Aceita- mos este processo como verdadeiro sempre que na história da infância de uma pessoa – isto é, na história de seu desenvolvimento psíquico – evidenciamos que, na infância, essa pulsão poderosa foi usada para satisfazer interesses sexuais. Constatamos a ve- racidade deste fato se ocorrer uma atrofia estranha durante a vida sexual da maturi- dade, como se uma parcela da atividade sexual houvesse sido agora substituída pela atividade do impulso dominante (FREUD, 1910, p. 72).

No texto sobre o Narcisismo, Freud (1914) avança na teorização do conceito e alinha a sublimação aos processos de defesa do eu. Em nome de seu amor próprio, o eu recalca as ideias contrárias ao seu ideal, que gerariam censura e/ou punição. Por outro lado, toma a si mesmo como objeto pulsional, transformando pulsões objetais em pulsões narcísicas. A sublimação teria, assim, um caráter narcísico, mas não se confundiria com a idealização do objeto, já que a sublimação é uma condição da pulsão. Nesse sentido, ter um ideal de eu extremamente elevado não quer dizer que o sujeito será capaz de sublimar pulsões sexuais em quantidade suficiente para agir conforme seu ideal de eu:

Um homem que tenha trocado seu narcisismo para abrigar um ideal elevado do eu, nem por isso foi necessariamente bem-sucedido em sublimar suas pulsões libidinais. É verdade que o ideal do eu exige tal sublimação, mas não pode for- talecê-la; a sublimação continua a ser um processo especial que pode ser estim- ulado pelo ideal, mas cuja execução é inteiramente independente de tal estímulo (FREUD, 1974 [1914], p. 112).

Deste modo, a sublimação pode ser um caminho para atender aos imperati- vos do ideal do eu que, como nos lembra Freud em seguida, possuem um aspecto social, articulando-se à família, à classe social ou à nacionalidade. A sublimação, contudo, não encontra sua via nas demandas do ideal do eu. O fato de o indiví- duo reconhecer o valor cultural e/ou ético de um determinado comportamento e/ou produção cultural não garante por si só que as pulsões serão sublimadas nessa direção. Todavia, para que seja considerada uma sublimação, a alteração de objetivo e do objeto da pulsão sexual deve ocorrer na direção de um alvo de valor social e/ou ético reconhecido. Freud (1914), sem novamente esclarecer o mecanismo da sublimação, remete-nos novamente a algo na constituição sub- jetiva individual que possibilitaria a sublimação, mas novamente não apresenta as bases desse elemento constitutivo. A sublimação não se confunde nem se sobrepõe ao recalque; ela marca uma mudança de objetivo de uma pulsão sexual parcial e alinha-se à obra da Cultura, pois seu produto possui valor social e, logo, reconhecimento pela comunidade à qual pertence o indivíduo. A transformação do objetivo pulsional dependeria da ocorrência de atividade erótica relacionada

a essa pulsão na infância e guarda um elemento associado ao narcisismo. Toda essa engrenagem ainda não constitui, porém, uma dinâmica clara.

Birman (2002) considera que no ensaio sobre Leonardo, Freud (1910) enun- ciara sua segunda teoria da sublimação, a qual implicaria em duas modalidades distintas de sublimação, uma associada à produção artística e outra relacionada à produção científica: “[...], o discurso freudiano passou a interpretar a sublimação por um outro viés, no qual a perversidade polimorfa se plasmaria numa valori- zada produção do espírito. Tudo isso mediado por uma formação fantasmática” (BIRMAN, 2002, p. 106).

A figura de Leonardo da Vinci, emblemática do período renascentista, apresentaria uma produção artística e uma produção científica com um modus

operandi conspícuo em relação à primeira. Daí a importância da distinção efe-

tuada por Freud entre Ciência e Arte no contexto do ensaio de 1910. O caminho produtivo de Leonardo teria seguido da arte para a ciência, o que ganhou um sentido especial na distinção efetuada por Freud entre a sublimação artística e a sublimação científica:

Leonardo da Vinci teria se deslocado do registro da produção artística para o da pro- dução científica, na medida em que na sua atividade de pintura existia sempre a sen- sação de incompletude quando contemplava o resultado de seu trabalho. Algo aí lhe incomodava, o que não era o caso da sua produção científica posterior. A ‘completude’ teria seduzido Leonardo da Vinci na sua permuta de atividade e na sua escolha final. Portanto, enquanto a sublimação deixaria uma marca de incompletude na produção artística, a completude seria o seu traço maior no registro da produção científica (BIRMAN, 2002, p. 107).

O que estaria em jogo nessa diferença, segundo Birman (2002), é a refe- rência ou não ao falo como operador da Lei. No caso da sublimação que produz ciência, o recalque e a dessexualização atuariam de forma eficaz e adaptativa, possibilitando a ocorrência da produção científica associada à “completude no registro ‘pático’” (Ibid., p. 109). No caso da arte, não haveria dessexualização e as pulsões sexuais “se plasmariam” em produções artísticas, cuja forma reme- teria ao fantasma individual. Dessa forma, porém, parece que a ciência é uma produção da resignação, necessariamente adaptativa, enquanto à arte caberia o esplendor do erotismo plasmado de forma estética. Para nós, não há problema em cogitar diferentes modos de sublimação, pois fica evidente a dificuldade do pró- prio Freud para organizar e definir o conceito, porém fazer da ciência uma ati- vidade sublimatória resignada e da arte uma atividade sublimatória libertadora

parece-nos ir contra o prazer evidente que muitos pesquisadores sentem ao rea- lizar seu trabalho. Talvez, a origem de toda ciência seja poética35.

É apenas em 1923, ao elaborar sua segunda tópica, que Freud postula de forma mais completa a dinâmica da sublimação ao indicar mais claramente que ela decorreria da transformação da libido objetal em libido narcísica. A sublimação seria mediada pelo eu, pois ao colocar-se como objeto para o investimento libidinal do Isso, o eu conseguiria sublimar a libido, pois as metas pulsionais seriam alteradas conforme os interesses do eu. Sobre isso afirma Loffredo (2014):

Como caracterizar metapsicologicamente a transformação da meta sexual em meta sublimada. Em outros termos, como situar essa mudança de meta de tal forma que se possa falar de uma sublimação de uma meta original, com a qual a meta obtida por esse desvio tenha um parentesco psíquico, e não se trate apenas, simplesmente, de uma outra meta. Pois como a pulsão sexual se articula necessariamente à excitação corporal que é sua fonte, sendo seu objeto o que permite que essa excitação se extinga, como considerar que se trata de sexualidade se, no limite, o corpo é deixado de fora? Essa questão só foi resolvida com esse expediente teórico da hipótese de uma pas-

sagem pelo eu, por meio da qual ocorre essa operação de dessexualização: ‘as metas

como, aliás, os objetos, serão definidos não mais a partir do corpo e de suas zonas erógenas-fontes, mas a partir do eu investido de libido’ (MIJOLLA-MELLOR, 2005, p. 13; LOFFREDO, 2014, p. 141).

Essa operação, contudo, levaria a uma desfusão pulsional e as pulsões de morte, não mais enredadas por Eros, encontrariam no superego seu agente, que tomaria o eu como objeto a criticar e a agredir. Neste ponto, sublimação e severi- dade do supereu caminhariam juntas: quanto maior a quota de libido sublimada, mais severo se tornaria o supereu:

O supereu surge, como sabemos, de uma identificação com o pai tomado como mod- elo. Toda identificação desse tipo tem a natureza de uma dessexualização ou mesmo de uma sublimação. Parece então que, quando uma transformação desse tipo se efet- ua, ocorre ao mesmo tempo uma desfusão pulsional. Após a sublimação, o compo- nente erótico não mais tem o poder de unir a totalidade da agressividade que com ele se achava combinada, e esta é liberada sob a forma de uma inclinação à agressão e à destruição. Essa desfusão seria a fonte do caráter geral de severidade e crueldade apresentado pelo ideal – o seu ditatorial ‘farás’ (FREUD, 1976[1923], p. 71).

35 Este tema que nos é muito caro foi desenvolvido na nossa pesquisa de Mestrado onde nos inda-

gamos: por que um cientista como Freud, disposto a fundar um novo campo científico, recorreu e citou tanto os poetas? Certamente, uma divisão tão extrema entre produção científica e produção artística parece-nos insustentável na realidade. Afinal, aos artistas também cabe o duro trabalho de executar sua obra por meios muitas vezes repetitivos e que exigem muito treinamento técnico.

A sublimação decorreria, portanto, de um redirecionamento da libido de pulsões sexuais mediante uma mudança de objeto pulsional, que passaria a ser o próprio eu. Essa passagem pelo eu alteraria o alvo pulsional. Assim, a sublimação teria como premissa a transformação da libido objetal em libido narcísica. Esse processo, contudo, levaria a uma desfusão entre Eros e as pulsões agressivas, as quais encontrariam na relação entre o Isso e o Supereu uma via de satisfação, tomando o Eu como objeto. Como o Eu serve a três senhores (a realidade, o Isso e o Supereu), a sublimação atenderia às demandas da realidade e possibilitaria a satisfação parcial das pulsões sexuais, mas, por outro lado, colocaria o eu sob o risco da agressividade, seja sobre si mesmo, seja contra objetos externos. A potência sublimatória decorreria da erotização do pulsional, passando pelo nar- cisismo. Caberia ao eu, portanto, um papel essencial na eleição do novo objetivo pulsional; porém, a eleição de ideais pelo eu não garante a ação sublimatória, pois dependeria também de uma “aceitação” pulsional do redirecionamento do seu alvo e objetivo. Nesse sentido, o corpo erótico, isto é, o corpo pulsional preci- sa acolher a forma sublimatória escolhida pelo eu sob a batuta do ideal. Sem esse acolhimento pelo corpo pulsional, a sublimação não se efetivará ou se efetivará de forma precária e sem sustentação e continuidade no tempo.

Como observam Laplanche e Pontalis, “a ausência de uma teoria coerente da sublimação permanece sendo uma das lacunas do pensamento psicanalítico” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1991 [1967], p. 497). Apesar disso, a possibilidade da sublimação é essencial para a compreensão das atividades mais elaboradas do pensamento e da ação produtiva dos animais humanos. Certamente, a pers- pectiva lançada por Freud (1910) no ensaio sobre Leonardo da Vinci, vinculando a sublimação à noção de apoio, não perde serventia após a hipótese da transfor- mação da libido objetal em libido narcísica como base para a sublimação por meio de uma dessexualização. Se lembrarmos, evocando o texto freudiano sobre a Psicologia de Grupos, que uma dessexualização é necessária para a vida em grupo, fortalecendo inclusive o laço social, podemos vislumbrar que apesar de um elemento narcísico, a sublimação guarda também uma dose de erotismo, voltado para o outro, mesmo que inibida em seu objetivo de satisfação pulsio- nal sexual parcial. O que a sublimação possibilitaria, porém, seria um ganho energético, pois o recalque seria contornado de modo a ocorrer a mudança de vicissitude pulsional. O preço a pagar seria a liberação de uma dose de agressivi- dade que não sofreria a mesma vicissitude, podendo ser direcionada ao eu, como ferocidade supereuoica, ou ao exterior.

No caso do trabalho, certamente a sublimação cumpre um papel essencial, pois como pensar a produtividade humana sem uma mudança de objetivo e de

objeto da pulsão no sentido da sobrevivência do eu? Esse processo, porém, seria algo inteiramente dependente da disposição individual para sublimar (da possi- bilidade de apoio sublimatório, para, por exemplo, transformar a pulsão escópica num talento fotográfico ou a agressividade em habilidade cirurgiã)? Resta saber se e o quanto a satisfação narcísica proporcionada pelo reconhecimento social teria peso nessa economia/dinâmica? Essa resposta é fundamental para a reflexão sobre a psicodinâmica do trabalho, pois se a sublimação reside exclusivamente no encontro pelo sujeito de uma atividade que redirecione, como apoio para a satisfação, alguma pulsão sexual parcial, o reconhecimento social terá pouco peso nessa dinâmica, predominando a própria vinculação da tendência pulsional com o modus operandi de determinado tipo de trabalho; porém, se para além da relação entre o objetivo abandonado e o objetivo sublimado (que guardariam alguma relação que possibilitaria o referido apoio), existe uma mediação do eu que se alimenta das relações sociais que o gratificam narcisicamente, então o reconhecimento social seria capaz de estimular a capacidade sublimatória e a continuidade da atividade de sublimação no longo prazo. Em última instância, o trabalho deixa de ser fonte de sofrimento quando gostamos do que fazemos no ato de trabalhar (os próprios movimentos e/ou características do trabalho propor- cionam satisfação pulsional) e/ou quando gostamos das consequências sociais do que produzimos e nos amamos mais a partir do reconhecimento do outro? A sublimação relaciona-se mais à essência do pulsional no sentido de o novo alvo guardar relação com o alvo originário ou relaciona-se mais com a função social do trabalho e o reconhecimento que gratifica narcisicamente o sujeito? Um terceiro elemento nessa dinâmica é a possibilidade criativa que a sublimação implica, podendo representar para o sujeito a possibilidade de criação de um novo objeto pulsional, anteriormente inexistente na realidade36.

Lacan (2008 [1959-1960]) aponta uma espécie de conciliação que a subli- mação propiciaria entre a satisfação pulsional do indivíduo e a inserção dele na Cultura, visto que o novo alvo da libido, alcançado por meio da sublimação, não apenas satisfaria o impulso pulsional, contribuindo para a boa economia psíquica, como também garantiria ao indivíduo que sublima um lugar de reco- nhecimento e admiração no seio do seu grupo social. A possibilidade de uma satisfação direta da pulsão (sem recalque e retorno do recalcado), por meio de um

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