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2.1 DA TEORIA GERAL DA RENDA DA TERRA PARA A ANÁLISE URBANA

2.1.2 Breve estado da arte

Não obstante tantas dificuldades se oporem à transposição da TGRT do solo agrícola para o solo urbano, alguns autores lograram realizar estudos bem sucedidos sobre o tema, chegando realmente a construir uma Teoria da Renda do Solo Urbano a partir da teoria desenvolvida por Marx para o solo agrícola. O êxito desses trabalhos se deu pelo esforço dos autores em eliminar as especificidades da realidade estudada por Marx, isolando o que poderia ser generalizável na TGRT e o que deveria ser adaptado para a realidade urbana. Duas considerações-chave estão na base desses trabalhos. A primeira define que, sendo a renda fundiária uma transformação do sobrelucro, o ponto de partida do seu estudo deve ser a análise das condições de valorização do capital (TOPALOV, 1984, p.12). A segunda estabelece que, para que o sobrelucro seja fixado em renda, é imprescindível a existência da propriedade privada do solo opondo resistência à reprodução do capital.

Do grupo de investigadores franceses, os que melhor trabalharam o tema foram Alain Lipietz (1974, 1985) e Christian Topalov (1984). O primeiro destaca-se pela definição da estrutura urbana como Divisão Econômica e Social do Espaço29 (DESE), e a análise da localização na DESE como condição determinante da formação das rendas de monopólio. Topalov, por sua vez, apresenta uma brilhante decomposição da TGRT de Marx, eliminando suas especificidades históricas para reconstruí-la, posteriormente, na análise do solo urbano. Outros autores europeus30 tiveram êxito nas suas pesquisas, no entanto, como a produção francesa foi notadamente mais influente no universo acadêmico brasileiro, são os autores daquela escola que servem de referência para este trabalho.

A partir da década de 1980, alguns autores sul-americanos se destacaram no estudo da renda fundiária urbana, dentre os quais o que obteve maior êxito internacional, foi, sem dúvida, Samuel Jaramillo, com uma obra de peso sobre a Teoria da Renda do Solo Urbano31. Assim como Topalov, Jaramillo decompõe a TGRT marxista, evidenciando as especificidades da análise de Marx e principalmente suas contradições. A partir da elucidação das contradições, Jaramillo propõe alternativas teóricas à TGRT, viabilizando sua transposição à análise do solo urbano. Juntamente com aqueles dois autores franceses, Jaramillo compõe o referencial teórico deste trabalho.

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O conceito da DESE será abordado no estudo da estrutura urbana. Em poucas palavras significa a distribuição imbricada dos usos urbanos e das classes sociais no espaço da cidade.

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Em sua crítica à teoria da renda como uma categoria de análise apropriada ao capitalismo, Csaba Déak (1985) cita os seguintes autores do “renascimento marxista” da Inglaterra: M. Ball, B. Fine e Murray.

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No Brasil, diversos investigadores adentraram a seara da TGRT para análises urbanas. Entre as décadas de 1980 e 1990 destacaram-se Martim Smolka, Norma Lacerda e Luiz César Queiroz Ribeiro; a partir da década de 1990, Fernanda Furtado e Pedro Abramo tiveram maior destaque. Daquele primeiro grupo, as análises e conclusões que mais interessam a este trabalho foram aquelas desenvolvidas por Norma Lacerda. A partir da TGRT, Lacerda investigou, em sua dissertação de mestrado, a origem e a consolidação da produção imobiliária capitalista no Recife sob a égide do capital financeiro, bem como seu papel na reprodução da estrutura urbana da cidade. Em sua tese de doutorado, a pesquisadora adentrou o universo dos valores simbólicos atribuídos ao lugar, considerando-os fatores determinantes da renda fundiária de monopólio, a partir da análise do caso do Recife, derrubando por terra a hegemonia do fator acessibilidade32 como determinante daquele tipo de renda.

Do segundo grupo, com alcance internacional, destaca-se o trabalho de Pedro Abramo. A partir das formulações da “Escola Francesa da Regulação” 33

, Abramo define o conceito de Regimes Urbanos como fases particulares da relação entre o capital e a estrutura urbana, em paralelo à definição “regulacionista” de “regimes de acumulação” capitalistas. Desta forma, o estudo dos regimes urbanos aborda as particularidades históricas e geográficas que cada regime de acumulação do capitalismo inscreve na espacialidade urbana (ABRAMO, 1995, p.511). Do conceito de “regime urbano”, Abramo chega ao de “regulação urbana”, como o mecanismo que reproduz o regime urbano, ou seja: a produção de espaço construído e a reprodução da estrutura urbana. Partindo do conceito da DESE desenvolvido por Lipietz, Abramo identifica o regime urbano concorrencial, reflexo do regime de acumulação concorrencial; e o regime monopolista, reflexo do fordismo na estrutura urbana. A regulação urbana concorrencial é a própria DESE, por meio do que Lipietz chama “tributo (fundiário) diferencial exógeno”, que reproduz a DESE. O regime monopolista, por sua vez, pressupõe a alteração da DESE e a criação do “tributo diferencial endógeno”, a partir da criação de espacialidades construídas inovadoras com respeito à localização na DESE existente. O mecanismo da regulação urbana deste último regime vai depender da participação ou não do Estado no processo de produção de espaço construído: regulação monopolista, quando o

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Acessibilidade a valores de uso, como: infraestruturas urbanas, equipamentos públicos e privados, comércio e serviço. O fator acessibilidade é determinante na análise de estudiosos franceses como Lipietz e Topalov. A tese de Lacerda parte da contestação da hegemonia desse aspecto nos trabalhos daqueles autores.

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Abramo (1995, p.511) parte da hipótese da escola francesa da regulação de que “as relações sociais de

produção capitalistas assumem formas históricas e geográficas diferentes ao longo da historicidade capitalista e de que se manifestam nas maneiras e nas formas de organização e distribuição da produção comandada pela valorização capitalista”, o que define o conceito de regimes de acumulação.

Estado participa direta ou indiretamente da operação; e regulação “mimética” ou “convencional” quando se trata de uma operação capitalista autônoma.

O conceito de regulação urbana “convencional” (ABRAMO, 1996) ou “convenção urbana” é a grande contribuição de Abramo para o estudo da dinâmica intra-urbana e, consequentemente, da renda fundiária urbana. Refere-se à noção keynesiana de “convenção”, elaborada a partir do “Tratado sobre as Probabilidades” de Keynes, que aplicada ao caso urbano, representa, de um modo geral, o processo de formação de um consenso entre capitalistas, e entre estes e os consumidores de espaço construído, a partir do “jogo especulativo” daqueles agentes sobre as decisões de localização das operações imobiliárias. É a convenção urbana que diminui o peso da “incerteza urbana radical”: a partir dela os produtores sentem certo grau de segurança quanto à realização da produção; e os consumidores, quanto à configuração da nova DESE. A convenção urbana é o motor do que Abramo define como “Ordem Espacial Caleidoscópica”, grande contribuição teórica ao debate acadêmico atual. Apesar de ser um dos autores de maior destaque na atualidade sobre a dinâmica intra-urbana, o cerne da contribuição de Abramo se refere a um regime urbano ainda não dominante na cidade do Recife34, menos ainda é a regulação “convencional” deste regime. É por este motivo que este autor não compõe o marco teórico deste trabalho.

Nos últimos anos, a produção de trabalhos acadêmicos que adentram a temática da dinâmica intra-urbana resgatando a questão da renda fundiária parece crescer. Como exemplo, podem-se citar os trabalhos elaborados no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com destaque àqueles orientados por Abramo, como os dos colombianos Melba Rubiano Brinez (2007) e Oscar Alfonso Roa (2009), que analisam a produção do espaço urbano e a coordenação do mercado imobiliário a partir da idéia de ordem espacial caleidoscópica. Na Universidade de São Paulo, as teses doutorais de Ricardo Dualde (2009), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo; e de Aluisio W. Ramos (2006) e Adriano Botelho (2005), ambos do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, tratam de resgatar a renda fundiária marxista como uma categoria válida para as análises urbanas.

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É verdade que no Recife existem algumas ações autônomas do capital de construção de novas espacialidades, especialmente na zona sul da cidade, como os grandes condomínios “Evolution” e “Le Park”. Ambos são direcionados para a classe média alta. O primeiro deles não chega realmente a propor uma nova DESE, o segundo, sim. Existem outras operações no grande Recife de criação de nova DESE, para a classe alta, como a urbanização da Reserva do Paiva, no município do Cabo de Santo Agostinho. No entanto, esta não se trata de uma ação autônoma do capital, e sim de uma operação consertada com o Estado. No que concerne ao objeto de análise empírica deste trabalho, o Bairro de Casa Forte e vizinhança, pode-se afirmar que este tipo de promoção imobiliária não existe.