• Nenhum resultado encontrado

Breve história da cor azul

No documento Azuis românticos na lírica de Georg Trakl (páginas 33-40)

O homem reproduziu, fabricou e dominou tardiamente a cor azul. No neolítico, esta cor não é encontrada em nenhuma pintura e muito menos no paleolítico com o aparecimento das primeiras técnicas de pintura. 2532

Povos do Oriente Médio e Próximo e especialmente os egípcios consideravam o azul uma cor benéfica que afastava as forças do mal. Os egípicios produziram tons de azul e de azul-verde a partir de silicatos de cobre. Estes tons possuem um aspecto vítreo e precioso e são encontrados em estatuetas, figurinhas e pérolas da mobília funerária.2633

O estudo teórico da cor azul realizado por Pastoreau não perde de vista a idéia de que a Antiguidade greco-romana apreciava as cores vermelha e púrpura e relegava a cor azul a um plano inferior. Essa argumentação explora o fato de que a reprodução e a fabricação da cor azul no Ocidente se deu tardiamente e de que foram o ramo comercial de tingimento de tecidos e de comercialização de pedras os fatores determinantes de todas as representações ideológicas e estéticas da Antiguidade.

Os celtas e germânicos utilizavam a guède, uma planta selvagem que nascia nos solos úmidos e argilosos de inúmeras regiões da Europa, cujo princípio colorante chamava-se indigotina. Os povos do Oriente Médio importavam da Ásia, especialmente da Índia e da África, uma planta que continha o índigo, princípio de coloração. Já os gregos e romanos conheciam o índigo asiático e o distinguiam do

25 PASTOREAU, Michel. Bleu. Histoire d'une couleur. Paris: Éditions du Seuil, 2002. p. 13. 26 Id. p. 23

azul dos celtas e germânicos a ponto de o terem nomeado indicum. Os gregos e romanos acreditavam que, no caso do índigo, se tratasse de uma pedra que vinha do Oriente, formada por blocos compactos de folhadas secas e prensadas (PASTOREAU 2002:18). Esses povos importavam pedras da Armênia (lapis armenus),

do Chipre e do Monte Sinai (caeruleum cyprium). Os romanos conheciam as pedras preciosas como a safira e o lápis-lazúli. As principais jazidas de lápis-lazúli encontravam-se na Sibéria, na China, no Tibet, no Irã e no Afeganistão. A pálida cor azul das pinturas greco-romanas deveu-se ao alto preço, às dificuldades de extração e purificação do material em pigmento, ao passo que o mundo muçulmano e cristão revelava um azul mais belo e puro.

Estas referências sobre a origem e o comércio dos materiais (plantas e pedras), assim como a utilização da cor azul nas artes plásticas, fornecem indícios sobre a utilização e a percepção negativa da cor azul pela Antiguidade e apontam para o conseqüente estabelecimento do sistema de representações das cores dominantes nas sociedades indo-européias.

Segundo Pastoreau, ainda que a cor azul tenha-se afirmado tardiamente na sociedade humana, nos dias de hoje ela é de longe a cor preferida da Europa ocidental. Mas nem sempre foi assim: da Antiguidade greco-latina ao século XI, o sistema de representações sociais, institucionais e simbólicas fundou-se na tríade das cores dominantes: o branco, o preto e o vermelho. Esta última cor associada à cor púrpura fez parte, na sociedade grega, da supremacia imagética nas artes. Teorias das cores de Demócrito, que enfatizava a substância, e de Platão, que acentuava um caráter estetizante, dignificavam o aspecto brilhante e resplandecente das cores.

As cores vermelha e púrpura traduziam as cores da luz na expressão lírica de poetas como Safo. Não raro as qualidades de Afrodite eram apresentadas na cor púrpura e a cor rosa aparecia em outras figuras femininas. No entanto, a cor vermelha era considerada a cor da poesia - die Farbe der Dichtung. A poesia homérica também elegeu uma seqüência de imagens púrpuras do mar como um símbolo de perigo mortal (1990: 204). Os gregos possuíam afinidades eletivas com as cores vermelha e púrpura, sendo que a composição de quadros, de representações cênicas, nas quais a face de certos personagens ostentava o vermelho como forma de ênfase na apreensão da cena por parte do observador. Também segundo Goethe, “os imperadores romanos eram extremamente ciosos do púrpura”.271334

A propósito de uma paleta de cores mais diversificada na pintura grega, Stulz menciona que, contrariamente à dinâmica das cores na ilustração épica, que atribuía à cor vermelho-púrpura um teor mais poético, mais elevado no escalonamento cromático, os pintores do período micênico fugiam à regra:

“Os pintores dos tempos micênicos encontram-se ainda sob a influência dominante da arte de Creta. Naturalmente aqui e lá têm-se uma impressão não naturalística das cores.(Farbgebung). Essas cores não naturais não vêm de uma paleta limitada. As cores, de que dispunham os pintores de Tirana eram variadas e estendiam-se até o rosa, o violeta, o amarelo e o azul, assim como por exemplo os dois fragmentos de uma cena de caça de Tirns, em 1250, com caçadores, cachorros e presas nessas cores”2814

27

GOETHE, W. Doutrina das Cores. São Paulo: Nova Alexandria, 1993. p. 141.

28

STULZ. Op. cit. p. 72.: Die Malerei der mykenischen Zeit stand noch unter dem beherrschenden Einfluss der kretischen Kunst. Den Eindruck nicht naturalisticher Farbgebung hat man hier wie dort. Diese unnatürlichen Farben kommen nicht von einer beschränkten Farbpalette: Die Farben, die den Malern in Tiryns zür Verfügung standen, waren vielfältig und reichtern bis rosa, violett, gelb und blau, so etwa die zwei Fragmente einer Jagdszene aus Tiryns, um 1250, mit Jägern, Hunden und Wild in diesen Farben. 143434

O azul era mera cor de fundo nas policrômicas escultura e arquitetura gregas e as cores dominantes eram o vermelho (eleita como cor da luz), o preto, o amarelo, o branco e o ouro (amarelo), cores que, como mencionamos acima e que, segundo Plínio, na obra História Natural, constituíam a paleta de pintores. Foi, no entanto, a arte bizantina, vinda do Oriente, que introduziu cores mais verdes e azuladas na paleta dos pintores e elegeu a cor azul como a cor da água e da luz.2915

Os gregos não rechaçaram a cor azul como os romanos e em seu trabalho sobre a caracterização simbólica da cor azul, Tornquist30235

assinala que na Grécia o azul era a cor de Zeus e o índigo de Netuno. Este autor elenca no rol simbólico das cores a concepção de que o azul é a cor mais espiritual e que o azul índigo infunde um tom misterioso e triste. Essa cor é ligada ainda ao mar e à água, que simbolizam as profundezas do inconsciente e de seus domínios encantados. Se as artes pictóricas gregas não aboliram a cor azul relegaram, porém, esta cor a um segundo plano. Os romanos percebiam a cor azul como “uma cor sombria, oriental e bárbara” (PASTOREAU 2002:27).

Para eles, essa cor era freqüentemente associada aos infernos e à morte. Pastoreau assinala o fato de que no começo da república e do império, vestir-se de azul era extremamente desvalorizador e excêntrico. Quanto ao aspecto físico, ter olhos azuis era considerado uma desgraça física: nos homens significava um traço efeminado, bárbaro e ridículo e nas mulheres signos de naturezas não-virtuosas. No teatro, Terêncio (comédia Hecyra, 160 a. C), associa olhos azuis aos cabelos ruivos e frisados, à medida gigantesca e à corpulência adiposa. Pastoreau cita ainda

29PASTOREAU, Michel. Bleu. Histoire d'une couleur. Paris: Éditions du Seuil., 2002. p. 23.

30 TORNQUIST, Jorrit. Colore e Luce- lo spettro orchestrato in teoria e pratica. Milano: Ikon editrice

srl, 1996.

CARONE NETTO. Modesto. Metáfora e Montagem. Um estudo sobre a posia de Georg Trakl. São Paulo, Perspectiva, 1974

numerosos autores e personalidades do mundo romano que desconfiavam e menosprezavam a valorização da cor azul, por causa dos celtas e germânicos. Ovídio, por exemplo, comentou que os germânicos tingiam seus cabelos brancos com a guède, Plínio afirmava que as mulheres dos bretões pintavam o corpo de azul antes de rituais orgíasticos. Também segundo César e Tácito, os bárbaros, celtas e germânicos tinham o hábito de pintar o corpo de azul para assustar os adversários. (PASTOREAU 2002:27).

“Assim como na Roma antiga o azul permanece, na alta Idade Média, uma cor pouco valorizada simbolicamente Ainda que o azul esteja presente na vida cotidiana, nos tecidos e roupas da época merovíngea, como uma herança bárbara, essa ausência na liturgia e no mundo de símbolos e emblemas transforma-se, nos fins da época carolíngea, sobretudo nas miniaturas em uma cor de fundo, que em certas imagens atua como uma iluminação vinda dos planos mais distantes aos mais próximos do espectador”.

Os códigos da vida social e religiosa são fundados nas cores branca, vermelha e preta e na cor azul. Mesmo o céu, ao qual o cristianismo devota um culto privilegiado, é representado de branco, vermelho ou dourado (2002: 32).

De fato se, como dissemos, a tríade de cores dominantes como o branco o vermelho e o preto sempre dominou o plano simbólico, iconográfico e iconológico da Antiguidade greco-latina até o século XI, foi somente a partir do século XII que, na visão de Pastoreau, um fato decisivo mudou radicalmente a supremacia da tríade: a representação na pintura do manto azul da Virgem Maria, como símbolo de luto. Antes disso, a virgem sempre vestira cores sombrias e discretas, que evidenciavam o luto pela morte de seu filho. A própria cor estatuária da Virgem obedeceu à cronologia de quatro cores: a cor dourada da arte barroca, o branco, cor da pureza e

virgindade conferido pela igreja à Virgem, por volta de 1854, e o preto pela dor do filho perdido e o azul, cujo prestígio foi instaurado pelo culto da virgem, culto esse que constituirá o fator de expansão e prestígio da cor azul em todos os domínios da criação artística, sobretudo na produção de vidros nos canteiros das catedrais, nos esmaltes, na produção de objetos litúrgicos. Por sua vez, a iconologia cristã difundiu, popularizou e valorizou a cor azul como um símbolo de purificação e de elevação espiritual então ao atribuir a cor azul ao manto da Virgem. A cor azul passa a denotar uma ascensão espiritual e uma elevação.

O autor Louis Hourticq3136assevera que não podemos conceber o Cristianismo

sem as Escrituras e tampouco podemos conceber e o paganismo sem as imagens, sendo estas as duas formas pelas quais o homem fez a ligação da idéia de Deus com uma realidade material. Assim sendo, as imagens da pintura e da estatuária exercerão uma ação constante no sentimento e na imaginação cristã no curso dos séculos. Ainda que esse autor não delimite a cronologia das relações entre a plástica e a poesia, ele afirma que as relações entre as duas artes se misturam na história do Cristianismo. Atendo-se à plástica bizantina, ele assevera que esta, de uma forma artificial e paradoxal, conciliou o realismo grego e o decorativismo oriental, assim como a religião conciliou as imagens e o monoteísmo iconoclasta. A pintura bizantina perpetua a Grécia clássica, ao passo que a estatuária perdeu o senso de relevo que possuía da escultura. Para esse teórico, a submissão da pintura à literatura é atestada pelos textos evangélicos, que fornecem a base da ilustração das imagens bizantinas (HOURTICQ 1946:145). Ainda segundo ele, o culto da virgem

Maria nasceu mais dos ícones do que dos Evangelhos, pois a pintura bizantina destacou as figuras que emocionavam a sensibilidade cristã da iconografia

evangélica. É nesse período que os monges do Oriente ornamentaram a Virgem de ouro e de esmalte (1946: 147). No fim do século XIII, o tema da virgem e do menino Jesus foi tratado com muito fervor pelos mestres seneses e florentinos.

Mas a cor azul não foi relacionada indiretamente à cor preta apenas pela representação iconológica do luto da Virgem. Da Vinci pautou suas premissas sobre a cor azul em bases físicas, determinando que a visão de um objeto distante, através da atmosfera, ela mesma azul, emitia poucas radiações visíveis. A esse propósito, Lapicque3237

afirma que a idéia mais cara a Leonardo da Vinci era que a cor azul ligava-se a um princípio tenebroso.

Assim, a tradição clássica da pintura postulava que se colocassem os azuis nas distâncias (no segundo plano da tela) e que se reservassem os vermelhos, alaranjados e os amarelos vivos para os primeiros planos. A lógica de disposição cromática de da Vinci corresponde aos princípios clássicos da pintura, que delegavam à cor azul o princípio aéreo e distante. Contudo, foram os impressionistas que mantiveram uma posição de independência em relação à teoria do obscurecimento e dos tons azulados, como da Vinci a formulara.

Ainda que Leonardo da Vinci tenha unido as cores azul e preta ao princípio aéreo e distante, do ponto de vista naturalista este princípio era irracional, uma vez que qualquer mancha de azul evocava um corpo terrestre e sombrio e inviabilizava um ponto de vista naturalista das paisagens (LAPICQUE 1951:124).

32 LAPICQUE. CH. La couleur dans l'espace. In: Formes de l'Art Formes de l'Esprit. Paris: Presses

No documento Azuis românticos na lírica de Georg Trakl (páginas 33-40)

Documentos relacionados