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A breve história de Fábia (1964)

2.3 Indefinições de uma literatura de temática lésbica

3.1.4 A breve história de Fábia (1964)

O livro A breve história de Fábia, lançado em 1964, conta a história de Phaedra, uma jovem professora que se muda para uma pensão em razão de seu novo emprego. Na moradia, ela divide o quarto com a protagonista, Fábia, que, no princípio da narrativa, está ausente do local. Phaedra tem o primeiro contato com Fábia por meio de um diário encontrado no quarto compartilhado e lido pela nova moradora. As duas se conhecem pessoalmente dias depois da chegada da nova moradora à pensão, a qual, oportunamente, questiona a colega de quarto sobre

91 o seu diário, uma vez que ele apresenta, ao mesmo tempo, inquietudes da protagonista e situações que parecem realmente ter acontecido.

Irritada com a invasão de sua privacidade, Fábia reclama: “Considero tudo fruto de imaginação. Fuga de si própria e destruição do que apoquenta.” (RIOS, 1964, p. 94). O diário intriga, uma vez que não há elementos que permitem a confiança na personagem principal, tampouco na narrativa de seus segredos. Interessa-nos, entretanto, não a busca pela análise da verossimilhança narrativa, mas perceber como o erotismo funciona como engrenagem do romance. A fala de Fábia sobre os seus desabafos não deixa dúvidas de que a escrita, para ela, trata-se de uma possibilidade de ausência do real, uma espécie de morte figurativa, o que nos permite, novamente, a associação entre erotismo, descontinuidade e morte. Vejamos um dos exemplos do conteúdo desse diário apresentado por Phaedra:

O vulto que vinha do caixão, pelas ruas do seu sonho, esqueleto que ela descrevera tão horripilantemente, duplicando-se em duas criaturas, ora um homem, ora por vez uma mulher. Depois transformando-se em névoa que lhe invadia o peito, fazendo-a acordar, como se lhe injetasse a vida, era, numa síntese: a sua dupla personalidade, de mulher indefinida, isto é, uma homossexual que julgava às vezes feminina, outras vezes masculina. Isso lhe traria provavelmente tal conflito que ela classificara-se como algo putrefato, alma suja, indigna. A sujeira, o excremento definiam o sentimento daquele amor que ela não conseguia deixar de julgar anormal e impuro. (RIOS, 1964, p. 78)

Observemos que, na narrativa de sonhos da protagonista, há diversos elementos que nos remetem à imagem de morte, como caixões e esqueletos. Existe também referência a uma criatura horrível, que seria homem e mulher, a qual serviu de motivação para que Phaedra interpretasse que esse ser estaria relacionado ao fato de Fábia ser homossexual, ora mais masculina, ora mais feminina, o que seria responsável por um sentimento de sujeira, de impureza. É interessante observar que essa criatura se transforma em névoa, ou seja, desconstitui-se, desaparece. Essa dissolução de uma forma outrora constituída rompe com a unidade de uma representação que se pretenderia, superando a sua incompletude e, por isso mesmo, abrindo-se para uma possibilidade em ser não apenas homem ou não apenas mulher, mas homem e mulher.

Além disso, convém notar que essa mesma criatura desperta sentimentos de nojo, asco, anormalidade e impureza. A ligação entre essa aversão e o desejo da continuidade de um ser que não se fecha nele mesmo, presente no momento da transgressão em que a representação é de uma criatura que se duplica, é própria da essência do erotismo, pois nela o prazer é entendido justamente a partir da ligação que ele tem com o interdito. Logo: “Somos admitidos no

92 conhecimento de um prazer em que a noção de prazer ao mesmo tempo se mistura ao mistério que expressa o interdito determinante do prazer ao mesmo tempo em que o condena.” (BATAILLE, 2013, p. 69).

A ideia da relação entre prazer e interdito percorre o romance, aproximando-se, novamente, da essência de morte. Nunca, humanamente, o interdito aparece sem a revelação do prazer, nem o prazer sem o sentimento do interdito (BATAILLE, 2013, p. 71). A primeira morte da narrativa ocorreu quando Fábia envolvera-se com Alméia, inicialmente porque essa mulher era amante de seu pai, e a protagonista gostaria de preservar a instituição familiar da qual fazia parte, mas, posteriormente, relata que amou, de fato, sua companheira. Na ocasião de estarem juntas, Alméia mudou-se para a pensão. Não temos contato com essa personagem de forma direta, apenas a partir das falas de Fábia. Somos apresentados pela narradora apenas à sua morte, quando nos é informado que o seu rosto estava: “[...] transfigurado, espumando, com manchas negras, arroxeadas em torno da boca escancarada, os olhos vítreos e parados. [...]” (RIOS, 1964, p. 81).

A narrativa nos deixa dúvidas sobre a relação que Fábia poderia ter com a morte da mulher que havia amado. Dúvida que é intensificada quando há, pela segunda vez, a morte de uma companheira de Fábia no romance. Após um breve tempo de relacionamento com Phaedra, há uma ameaça sentida por Fábia sobre a possibilidade de a namorada abandoná-la após ler sobre uma suposta traição escrita no diário:

— Tolinha, preocupando-se com as tolices que escrevo. Foi um sonho mau que tive. Sempre me preocupam os pesadelos. Por isso relato-os. Eu nunca faria isso... eu amo você... seria incapaz de qualquer coisa desagradável... mas se você me deixar não responderei por mim... Terei coragem para tudo! (RIOS, 1964, p. 139)

A afirmação de que “não responderá por si” já evidencia a irracionalidade da ação, a ideia de ser tomada por impulsos, a superação de qualquer interdito, já que “terei coragem para tudo!”. De fato, ocorre uma narrativa de homicídio e posterior suicídio após a ameaça. Phaedra foi envenenada e morreu, quando, ao sair da pensão após uma briga com Fábia, tomou um táxi, “[...] abriu um pacotinho de balas que comprara na bombonière do cinema, na noite passada, em seu último passeio com Fábia. Tirou uma bala, desembrulhou e levou-a à boca.” (RIOS, 1964, p. 142). Após essa ação, enquanto ainda estava no carro, “Phaedra espumava. Agitou-se, vomitou e ficou imóvel de repente com os olhos desmensuradamente abertos.” (RIOS, 1964, p. 142). O taxista voltou para a pensão e pediu a ajuda de todos, devido à situação de Phaedra:

93 Fábia abriu espaço entre os curiosos e ajoelhou-se ao lado de Phaedra. [...] Fábia recolheu as balas, desembrulhando-as uma a uma. [...] — Credo! Tem coragem de chupar as balas da morta? Fábia volto os olhos, arregalados, frios, estranhos. – Coragem? Só coragem? Não. É muito mais que isso [...] O rosto contraiu em uma careta e um sorriso, enquanto ela apertava o estômago com as mãos. (RIOS, 1964, p. 143)

Bataille (2013) aponta que o mais violento para nós é a morte, porque ela é capaz de nos mostrar a nossa descontinuidade; no caso do romance, contudo, a morte indica exatamente o erotismo entrando em ação: a busca pela continuidade que se pode obter com o erótico foi alcançada a partir da morte.

Além disso, é possível percebermos que Fábia sorri após lidar com a amante morta e envenenar-se, encontrando prazer ao superar um interdito. Estamos, mais uma vez, no universo erótico, de forma muito próxima ao que ocorre em Copacabana Posto 6 – A madrasta (1972), quando o impulso por ser completo pode ser realizado a partir da morte, envolvendo o universo erótico. Em ambos os casos, o erótico deixa de manifestar-se no ser amado, que não correspondeu ao desejo de completude, e passa a ocorrer na morte do objeto de desejo.

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