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Foto 15 – Pirouette

3. NAS PONTAS

3.1. BREVE HISTÓRICO DA SAPATILHA DE PONTA

Compreendo que a sapatilha de ponta é hoje, se não a maior, uma das maiores representantes do feminino no ballet clássico. Que bailarina nunca sonhou em dançar nas pontas? Quantas bailarinas, mesmo em meio a dor, continuaram a insistir nesse sonho? Quantas bailarinas se sentiram realizadas ao ir aos palcos na pontas? Como é possível que um objeto cause tantas emoções contrastantes? De fato, a sapatilha de ponta demarca um lugar, o lugar da bailarina, que se eleva, que está acima do humano. As pontas têm o poder de legitimar a bailarina como ser inalcançável, idealizado, separando-a, inclusive, do bailarino que é humano, real e falho.

O ballet, logo nos seus primeiros anos, demonstrou profundo interesse pelos pés. Segundo Homans (2010 apud RIGOBON 2016), inicialmente quando o ballet foi descrito, muitos movimentos do corpo não foram determinados, por outro lado, os movimentos dos pés foram descritos minuciosamente. “Esses movimentos são tão específicos, que essa pode ser a razão de cada movimento de ballet ser chamado de passo” (RIGOBON, 2016, p. 8).

Os calçados utilizados nesse gênero de dança passaram por diversas modificações. Tais transformações acompanharam a evolução dessa dança, que se tornou mais complexa e, portanto, necessitou de calçados que permitissem maior agilidade dos pés e posteriormente maior desempenho técnico. Entretanto, não foi apenas sua função prática que se alterou, os sapatos – comumente conhecidos como sapatilhas – passaram a indicar diferenças entre personagens (humanos e sobrenaturais) e de gênero (bailarino e bailarina), como afirma Harris (2003),

Os calçados no ballet sugerem várias distinções que podem ser feitas entre bailarinos. A primeira e mais óbvia é a diferença de gênero. Mulheres usam sapatilha de ponta, e homens usam sapatilha de meia ponta [...]. [No período romântico], a primeira diferença de traje e coreografia é que enquanto a personagem etérea encarna tudo o que é leve, tênue e vertical, sua colega terrena usa sapatilha de meia ponta ou sapatos a caráter, e dança de uma maneira mais forte e com os pés no chão. Por isso, as

sapatilhas de ponta facilmente indicam o desejado, o inatingível, o belo, temas passados em todos ballets Românticos (HARRIS, 2003, p. 4 – tradução minha). O período romântico do ballet vai de 1830 a 1970, e foi influenciado por um movimento que abrangeu todas as formas de arte da época. Temas relacionados a natureza, mitos sobrenaturais, paixões avassaladoras e profunda melancolia serviram de inspiração para autores literários desse período, que foram seguidos por libretistas e coreógrafos. “Em 1927, ‘La somnambule’ do francês Aumer, foi considerado por muitos críticos como o primeiro ballet romântico da história” (CAMINADA, 1999, p 136). Apesar disso, foi “La Sylphide”, de Filippo Taglioni, estreado em 1832, que ficou conhecido como o primeiro ballet romântico.

Taglioni confiou a sua filha, Marie Taglioni, o papel principal nessa obra, no qual conheceu “sua consagração definitiva e passou para a história como a mais perfeita idealização da bailarina romântica (CAMINADA, 1999, p. 139) e segundo Cavrell (2012) ela se tornou o modelo para as outras bailarinas. A imagem criada por Taglioni, de bailarina delicada e frágil é a que genericamente se tem de bailarina ainda hoje. O ballet foi se tornando cada vez mais feminino, as mulheres foram elevadas para serem admiradas e desejadas e, no entanto, eram intocáveis.

Imagem 1 - Marie Taglioni

Fonte: https://culturdanca.com/2012/10/16/o-inicio-do-ballet/

A busca pela verticalização dos bailarinos, a fim de reforçar os ideais românticos resultou no aparecimento dos saltos realizados pela bailarina, bem como sua elevação e

sustentação por meio de fio invisíveis permitindo que ela colocasse apenas os dedos dos pés no chão (CAMINADA, 1999). O que também deu passagem para o surgimento da sapatilha de pontas. O feito de ser a primeira bailarina a dançar um ballet inteiramente nas pontas é dado a Marie Taglioni em “La Sylphide”. Nesse momento o bailarino perde ainda mais espaço, já que agora serve de suporte para sua partner. Segundo Garafola (1985-86), a poesia, expressividade e graça se tornaram uma competência reservada às mulheres e a feminilidade se tornou a ideologia do ballet.

Cavrell (2012) afirma que a “mudança da dominação tradicional do bailarino para a proeminência feminina deveu-se, principalmente, à virtuosidade quase grotesca da técnica masculina” (CAVRELL, 2012, p 59). Ainda segundo a autora, o bailarino mostrava que a dança era algo físico – um tabu na época - através de seus saltos muito altos, múltiplos giros e baterias. A obra prima do período romântico foi “Giselle” (1841), “que sintetiza de forma admirável todas as aspirações técnicas, dramáticas” (CAMINADA, 1999, p. 139). Logo após o grande sucesso de “Giselle”, o ballet romântico entrou em declínio. Em 1870, “Copélia” é levada a cena, sendo o último sucesso do período.

A supremacia da mulher se mantem até a mudança do ballet da França para a Rússia. “A incorporação das danças populares russas pelos coreógrafos estrangeiros trouxe de volta a imagem masculina, fazendo do bailarino o exemplo máximo da energia robusta masculina. (CAVRELL, 2012. p. 62). Cria-se então uma oposição entre bailarinos e bailarinas, leveza e fragilidade para elas, e força e coragem para eles.

A sapatilha de ponta passa por transformações, por exemplo, “Pierina Legnani usava sapatos com uma plataforma robusta e plana na extremidade dianteira do sapato, em vez da ponta mais afiada dos modelos anteriores”. (HISTORY COOPERATIVE, 2016 – tradução minha), ela ainda realizou, pela primeira, vez os trinta e dois fouettés en tournant7, no ballet “Cinderela” e repetiu a proeza em “O lago dos cisnes” (CAMINADA, 1999). Sobre o papel feminino deste ballet, Caminada afirma que “se constitui numa das maiores aspirações de uma bailarina; sua dualidade [..] exige das bailarinas uma das mais difíceis composições dramáticas da história; poucas conseguem realizar de forma nivelada os dois personagens” (CAMINADA, 1999, p 155-156).

Enrico Cecchetti, foi convidado pelos russos para lhes ensinar a técnica italiana, que posteriormente combinada a francesa, deu origem à técnica russa. Com a técnica italiana, foram

7 “Este é um giro popular, no qual as (os) bailarinas (os) executam uma série de giros na perna de suporte enquanto são impulsionados pelos movimentos de chicote da perna de trabalho. A perna que chicoteia deve estar na altura do quadril com o pé fechando no joelho da perna de base” (GRANT, [1967] 1982, p. 72 – Tradução minha).

importadas também as sapatilhas de pontas. “Os sapatos usados por Legnani eram menos pontudos do que os usados por Taglioni” (A BRIEF HISTORY OF POINTE SHOES – tradução minha). Os russos usavam várias técnicas para endurecer as pontas como, por exemplo, cortar papelões utilizados para dar suporte. Rumores dizem que Anna Pavlova possuía técnicas secretas na preparação de suas sapatilhas. “Ela arrancava o papelão, o tecido e o forro de couro e os substituía por uma sola interna misteriosa de seu próprio design. Há relatos que ela usava sapatilhas com plataformas muito largas, que lhe proporcionava um balance8 superior” (A BRIEF HISTORY OF POINTE SHOES – tradução minha).

As sapatilhas de pontas chegam ao século XX, e posteriormente ao séc. XXI, através dos ballets criados por Fokine, Massine e Balanchine para os “Ballets Russes” sob a direção de Diaghilev. Irina Baronova e Tamara Toumanova realizaram sessenta e quatro fouettés, seis

pirouettes9 sem suporte e longos balances para o deleite e aplausos das plateias. (A BRIEF HISTORY OF POINTE SHOES). Apesar da evolução técnica alcançada pelas bailarinas e das mudanças na estrutura da sapatilha,

seus materiais básicos são antiquados: couro, aniagem, papel, cola e pequenos pregos, o que cria um grande problema para as bailarinas de hoje. Uma sapatilha de ponta nova é excessivamente dura, porque a palmilha e a caixa são excessivamente fortes. Uma vez quebrada, permitindo a articulação do pé realizar facilmente os saltos e subir na meia-ponta, dura pouquíssimo tempo. Usá-las é mais doloroso do que precisa ser e pouco é feito para minimizar o trauma ao dançar em superfícies duras (SANTOS, 2009, p. 30).

Atualmente encontramos no mercado sapatilhas de diversas marcas, com os mais variados tamanhos, cores e algumas variações nos formatos, mas sua estrutura básica é a mesma, composta por: caixa, plataforma da caixa, gáspea, sola, palmilha, calcanhar, e costura lateral reforçada.

8 Equilíbrio – Pode ser realizado nas pontas ou na meia ponta, sustentando-se o peso do corpo sobre uma ou ambas as pernas.

9 Rodopios, giros. Um giro completo do corpo em um pé, na ponta ou meia ponta. Pirouettes são feitas en dedans, girando para dentro em direção da perna de apoio, ou en dehors, girando para fora na direção da perna levantada [...]. Pirouettes podem ser realizadas em algumas posições determinadas, como sur le cou-de-pied, en attitude, en

Imagem 1 – Estrutura da sapatilha de ponta

Fonte: http://looucaporballet.blogspot.com/2013/06/pontas.html

É importante salientarmos a íntima ligação entre a tríade ballet, bailarina e sapatilha de ponta, que vigora no imaginário coletivo. Ao mencionar a palavra ballet, comumente, surge a imagem de uma bailarina “na ponta dos pés” girando com a mãos sobre a cabeça. A figura masculina, em geral, não é associada a essa atividade. “Ballet é coisa de menina” é uma das frases que gerações de crianças ouvem e que, ao longo dos anos, reforça a ideia dessa prática sendo uma atividade exclusivamente feminina. As salas das escolas que ensinam esse gênero de dança são preenchidas por dezenas de meninas, com poucos ou nenhum representante masculino.

A presença do homem no ballet é associada a homossexualidade e “torna-se evidente uma ordem compulsória do sexo/gênero/desejo manifesta na lógica binária” (SANTOS, 2009, p. 51). Se o ballet é uma atividade destinada ao feminino, um homem, ao ingressar nessa prática, estaria revelando sua sexualidade orientada para o mesmo gênero. Em uma sociedade machista, o medo de repressões oriundas do preconceito resulta no afastamento dos homens do ballet.

Apesar da relação feita entre ballet, homem e homossexualidade, não se pode esperar que este realize o papel da bailarina e vice-versa. Cada um possui atribuições extremante definidas e distintas. Segundo Ann Daly (1997), a bailarina é o objeto de desejo masculino, enquanto ele atua de forma mais ativa. Mesmo que os papéis principais fossem destinados a ela, era o bailarino que lidava com conflitos e tomavam decisões (DALY, 1997 apud SANTOS, 2009). As diferenças “naturais” dos gêneros são refletidas nas vestimentas, no desenvolvimento técnico, nas mímicas, nos corpos, nas movimentações e treinamentos. Partindo dessas oposições, Santos questiona:

se o discurso do balé endossa os padrões de gênero na sua forma naturalizada, utilizando-se da clássica e tão controversa oposição binária masculino-feminino, não poderiam os meninos ter mais interesse na dança, visto que ela delinearia sua força, habilidade e resistência, enfim, seus traços de masculinidade? Nas narrativas, não são os homens que agem e fazem as escolhas, endossando a noção de superioridade masculina? Apesar de todas essas, digamos, vantagens em relação às mulheres, o balé segue configurado como uma atividade feminina (SANTOS, 2009, p 50).

A autora retorna ao ballet romântico para explicar as origens desse fato, onde a atuação do bailarino era permitida nas partes de ação, ou seja, “o problema da participação do homem na dança clássica estaria localizado nos momentos em que ele não age, ou seja, não dá suporte ou manipula a bailarina, e não interpreta seu teatro gestual” (SANTOS, 2009, p. 50). Sem esses elementos, restaria ao bailarino os movimentos puros de dança, que o colocariam na posição de (objeto) observado, uma posição que não era – e ainda não é – aceita socialmente.

O ballet continua, portanto, historicamente fundamentado, a ser relacionado à leveza e delicadeza, características atribuídas ao feminino. A supremacia da bailarina nessa técnica é reafirmada pela introdução da sapatilha de ponta, que aparece como artefato de ascensão técnica e realce do papel feminino. Essas ideias se enrijeceram de tal maneira ao longo dos anos que parece utópico pensar em um afrouxamento das normas vigentes.