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3 POLÍTICA NAS RUAS E NAS REDES: A CONVULSÃO BRASILEIRA EM 201

3.1 Breve histórico das mobilizações em rede

Perpassadas de maneira mais genérica a temática do presente trabalho e sua respectiva abordagem metodológica, cumpre adentrar propriamente ao objeto de estudo, qual seja, as Jornadas de Junho que ocorreram no Brasil, em 2013, em consonância com o ciberativismo emergido nesse contexto, embora não sem antes demonstrar que mobilizações sociais na Internet não são fenômenos tão recentes quanto se poderia imaginar. Explorar, ainda que brevemente, esse histórico é importante no sentido de mais uma vez evitar as rupturas abruptas que contrapõem modelos arcaicos a formas absolutamente novas de sociabilidade, inclusive em sua dimensão política, articuladas pela Internet.

As chamadas Comunidades Virtuais são, pode-se dizer, a fase embrionária da utilização da Internet como base material de mobilização social em sentido amplo, ou seja, não estritamente política. Nos primórdios da rede de computadores, pesquisadores ligados à ARPANET criaram listas de correio temáticas chamadas SF-Lovers destinadas a fãs de ficção científica, com autorização do Departamento de Defesa norte-americano (CASTELLS, 2004). Já nos anos 90 surgiram Boletins de Anúncios Eletrônicos (BBS) para fins sexuais chamados Kinky Computer, na Baía de São Francisco, o que pode ser considerado o prelúdio da profusão de conteúdo pornográfico hoje encontrado na Internet. Na mesma época, o Instituto Para a Comunicação Global (Institute for Global Comunication – IGC), também de São Francisco, “articulou algumas das primeiras redes informáticas dedicadas ao progresso de causas sociais, tais como a defesa do meio ambiente e a manutenção da paz mundial” (CASTELLS, 2004). É também o IGC que contribui para o surgimento de um dos mais emblemáticos movimentos políticos articulado na aurora da Internet, a La Neta, rede informática composta por mulheres mexicanas indígenas que foi utilizada pelos zapatistas

para chamar a atenção para a exploração de minorias indígenas (CASTELLS, 2004). Também fazem parte desse contexto as redes comunitárias de Seattle, a Cidade Digital Amsterdã e a REALCOM soviética, articulada por acadêmicos no intuito de lutar pela democracia e liberdade de expressão.

O que torna a La Neta um caso emblemático é a articulação das comunidades indígenas de Chiapas com o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e Organizações Não Governamentais para montar uma “rede de guerra Zapatista” (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 80). O EZLN, organização política paramilitar que nasceu na década 1990, tinha como objetivo criar um exército guerrilheiro para atuar na região de Chiapas, rica em urânio, madeira e petróleo em território de várias comunidades indígenas. O interessante é que o grupo inicial não tinha ascendência indígena direta, sendo composto por pessoas de classe média escolarizada que se opunham ao NAFTA (North American Free Trade Agreement - Tratado Norte-Americano de Livre Comércio) (MALINI; ANTOUN, 2013). Ocorre que, diante dos fracassos militares ocorridos nas primeiras semanas de luta armada, os integrantes do EZLN procuraram apoio tanto dos indígenas como de ONGs interessadas em resistir ao avanço do neoliberalismo através de um aprofundamento da democracia no México. Só após essa articulação com outros atores políticos é que a conquista do governo mexicano é retirada do discurso do ELZN, que incorpora pautas como os direitos de populações indígenas, o reconhecimento da participação feminina nas decisões políticas (além do respeito aos seus direitos sociais), a luta pela preservação ambiental, a luta pelos direitos humanos e pelos direitos trabalhistas (MALINI; ANTOUN, 2013). As ONGs engajadas conseguiram mobilizar outras ONGs na luta política, o que desencadeou uma grande mobilização que freou o ímpeto do Exército Mexicano. Embora o EZLN não tivesse seus próprios equipamentos eletrônicos e conexão com a Internet, uma rede de apoiadores solidários à sua agenda foi formada através da Internet, contando inclusive com a ajuda de hackers após um massacre indígena em Chiapas no ano de 1997. Assim:

Em 1998, o grupo Teatro Eletrônico de Distúrbios (Eletronic Disturbance Theatre – EDT) criou o inundanet (floodnet) – uma aplicação em java para os navegadores (browsers) que repetidamente envia pedidos de recarregar para um sítio da Internet –, concebido como um modo de realizar uma manifestação virtual onde uma multidão podia tentar paralisar ou derrubar uma página web usando esta aplicação (o projeto chama-se significativamente SWARM, que significa enxame). O software foi chamado de Zapatista inundante (floodnet) e inaugurou o casamento dos hackers com o ativismo político, mais tarde chamado de hacktivismo (Wray, 1998). (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 83).

Há ainda o caso da Falun Gong, movimento político e espiritual chinês que, segundo Castells (2004), contou com dezenas de milhões de seguidores que conseguiram se articular através da Internet para desafiar o poder do Partido Comunista naquele país.

O fato é que a Internet se revelou um instrumento de mobilização social extremamente importante para a dinâmica política e, por isso, não pode ser mais subestimada pelos analistas. Se o ciberespaço é uma extensão do espaço não-virtual, ou seja, se não se pode tratar a Internet e todo seu instrumental de comunicação como uma realidade paralela e, no mais das vezes, falseadora da “realidade concreta”, parece ser um equívoco contrapor ocupação e mobilização das e nas ruas e mobilização virtual. Quando David Harvey diz que a ocupação coletiva dos espaços públicos pelos corpos mostra inequivocamente que a expressão de sentimentos no Twitter e no Facebook não passa de “balbucios” (HARVEY, 2012, p. 61), resta evidente que não apenas a potência mobilizadora própria do ciberespaço é menosprezada como a relação de influência mútua entre o espaço virtual e não-virtual não é bem compreendida. As próprias manifestações desencadeadas mundialmente a partir de 2010 não podem ser completamente compreendidas por esse viés analítico aprioristicamente assimétrico.

Assim como o espaço virtual é diretamente influenciado pela dinâmica dos atores e suas redes que atuam largamente fora do ciberespaço, o ciberespaço ressignifica através da linguagem, da sociabilidade virtual, da economia de afetos (que se traduz em desejo) as relações sociais não virtuais. Os próprios analistas políticos possuem sua rede não virtual ativa que se traduzem, trasladam e ajudam a formatar as redes de mobilização virtuais tanto com teorias como com práticas no ciberespaço. Isso precisa ser compreendido para que seja possível superar definitivamente as visões que relegam à Internet um papel de coadjuvante na prática política contemporânea. Os balbucios já se tornaram gritos que facilmente ecoam globalmente.

A praça Tahrir no Cairo, a praça do Sol em Madri, a Praça Syntagma em Atenas, Wall Street em Nova Iorque, o Vale do Anhangabaú, a Avenida Paulista e a Estrada do M'Boi Mirim em São Paulo, depois ruas e praças de todo Brasil; todas foram ocupadas por corpos mas com o auxílio imprescindível das redes sociais virtuais. As Jornadas de Junho no Brasil, depois de todas as outras rebeliões populares mundo a fora, demonstraram a potência da mobilização em rede.

As manifestações que tomaram as ruas e dominaram as redes sociais no Brasil em junho de 2013 são de uma complexidade profunda. A precariedade dos serviços públicos, como o transporte coletivo; o momento econômico turbulento atravessado pelo país; a

indignação com a corrupção; a crise de representatividade política; precarização do trabalho; marginalização dos movimentos sociais por parte dos governos; injustiça social, dentre outros fatores, formaram – e ainda formam – o cenário perfeito para a convulsão social que ficou conhecida como Jornadas de Junho, que reuniu manifestantes em número não visto desde que as ruas do país foram tomadas pelos “caras pintadas” que pediam o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello em 25 de agosto de 1992 (PROTESTO..., 2013, s. p.). Certamente o ano de 2013 permeará o imaginário de grande parte dos brasileiros por muito tempo.