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Capítulo I: O Complexo Econômico-Industrial da Saúde como motor do Desenvolvimento

2.4. Os Laboratórios Oficiais

2.4.1. Breve histórico

O início da produção pública de tecnologias em saúde no Brasil teve início em meados do século XIX, quando foi inaugurado, por D. João VI, em 1808, a Botica Real Militar, que hoje é denominado Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx) (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006; ALFOB, 2019). No início do século XX, diante de diversas endemias que passaram a afetar as zonas urbanas no Brasil, como a peste bubônica, a cólera e a febre amarela, provenientes, principalmente, das áreas portuárias (o que, portanto, causava elevados impactos econômicos ao país), foram criados dois institutos estatais de produção de soros e vacinas: o Instituto Soroterápico Federal do Instituto Oswaldo Cruz, em 1900, e o Instituto Butantã, em 1901 (CHAVES et al., 2018), que tiveram importância ímpar na produção de vacinas para o controle de tais doenças. Durante as primeiras décadas do século XX, a produção desses laboratórios foi especialmente voltada para medicamentos de uso tópico, vacinas e soros antipeçonhentos (ALFOB, 2019).

No período de 1964 a 1974, em meio à percepção de que era necessário o fortalecimento da indústria químico-farmacêutica nacional, foram criados oito laboratórios oficiais de produtos farmacêuticos, como resposta a uma orientação política desenvolvimentista. Neste contexto, conforme apresentado na seção 2.1, a criação da Ceme (Central de Medicamentos), em 1971, foi um elemento muito importante para a consolidação do parque público de produção de medicamentos, pois tanto agiu de forma a realizar investimentos na estrutura de oferta desses laboratórios, como na garantia de demanda, uma vez que a Ceme tinha também responsabilidades em realizar a distribuição de tais produtos. O desenho

apresentado pela política também determinava o estabelecimento de produtos prioritários, por meio da elaboração da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), como forma de orientar as estratégias de desenvolvimento industrial dos insumos farmacêuticos ativos e da produção de medicamentos (CHAVES, 2016; CHAVES et al., 2018).

Como também apresentado na seção 2.1, ao longo das décadas de 1970 e 1980, acirraram-se as disputas entre os setores público e privado de produção de medicamentos e, de maneira progressiva, os LFOs foram perdendo espaço entre as aquisições realizadas pela Ceme: se em 1972 a participação do setor público nas compras realizadas era de 73,6%, esse número passa a 45% em 1977. Na década de 1980, diante da grande crise da dívida externa vivenciada pelo país, intensificaram-se os incentivos para a produção interna de medicamentos e de insumos farmacêuticos, por meio de medidas de proteção do mercado interno, regulação de preços e instrumentos de fomento ao desenvolvimento tecnológico das empresas nacionais (CHAVES et al., 2018).

Neste contexto, os laboratórios oficiais foram favorecidos, principalmente diante dos programas governamentais de Autossuficiência Nacional de Imunubiológicos, em 1985, que buscou fortalecer a produção de vacinas realizadas pelos laboratórios públicos, e o de Farmácia Básica, em 1987, que também contou com medicamentos provenientes da produção pública para a oferta de medicamentos gratuitos de atenção básica à população contemplada pelo programa. Na mesma década, em 1986, na ocasião da realização da VIII Conferência Nacional de Saúde, na qual houve a consolidação da perspectiva da saúde como um direito que deveria ser garantido pelo Estado, houve a defesa aberta da produção pública de tecnologias em saúde, na qual esteve presente o argumento de que os setores industriais associados à saúde deveriam passar por estatização (CHAVES; HANSECLEVER; OLIVEIRA, 2016).

A década de 1990, no entanto, como mencionado nas seções anteriores, representou um rompimento com as políticas voltadas ao desenvolvimento industrial brasileiro, contexto no qual os LFOs também sofreram as consequências. Ainda que a Constituição Federal de 1988, por mais que não tenha imposto a estatização completa dos serviços de saúde e nem dos setores industriais a eles atrelados, conforme fora defendido durante a VIII Conferência Nacional de Saúde, tenha reconhecido como papel do Estado não apenas a garantia do direito à saúde de toda

a população, mas também a sua participação na produção de medicamentos, equipamentos, hemoderivados, imunobiológicos e outros insumos, a realidade do início da década mostrou-se bastante diversa, principalmente diante da progressiva deterioração das atividades exercidas pela Ceme (CHAVES et al., 2018).

Assim, entre os anos de 1990 e 1997, a Ceme apresentou dificuldades para assegurar a aquisição e a distribuição de medicamentos produzidos por LFOs, os quais, por sua vez, passaram a apresentar participação decrescente dentro da demanda governamental. Alegava-se, à época, que o desempenho dos produtores públicos de medicamento era deficiente e ocioso, assim como a atuação da Ceme, que passou a ser fonte de críticas crescentes sobre a sua gestão ineficiente, gerando erros constantes no planejamento e na distribuição dos medicamentos (CHAVES et al., 2018). A instituição também passou a ser alvo de acusações de corrupção e mau uso dos recursos públicos (ALMEIDA, 2018). Desta forma, em meio a uma série de denúncias de desvio dos objetivos iniciais, a Ceme é extinta em 1997 (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006), em um contexto em que as empresas farmacêuticas multinacionais ganhavam força no mercado brasileiro, sem que, no entanto, agissem de forma coordenada com as necessidades apresentadas pelo SUS – muito pelo contrário. Também estava em curso a desverticalização da cadeia produtiva farmacêutica no Brasil, de forma que, entre 1990 e 2000, as importações de farmoquímicos passaram de US$ 750 milhões para US$ 1,8 bilhão, o que representou um aumento de 138%, frente a uma elevação de apenas 44% das exportações5 (CHAVES et al., 2018). Os laboratórios públicos vivenciaram, portanto, no período, uma situação de “vácuo” em termos de estratégia e direcionamento político e institucional (ALMEIDA, 2018).

Com a extinção da Ceme, em 1998, é lançada a Política Nacional de Medicamentos (PNM), que apresentou, em duas de suas oito diretrizes, orientações para o fortalecimento da produção local de medicamentos e para a realização de investimentos de ciência e tecnologia, de forma que essas duas esferas estivessem vinculadas às necessidades do SUS (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006; ALMEIDA, 2018; CHAVES et al., 2018). O lançamento da política deu-se em um momento em que eram crescentes as pressões por parte da sociedade civil para o cumprimento do dispositivo constitucional que assegura o direito universal à saúde,

que tornavam urgentes as ações por parte do governo para que o quadro desfavorável ao desenvolvimento e à sustentabilidade do SUS pudesse ser amenizado. Assim, a PNM pode ser considerada um marco importante para o SUS, uma vez que apresenta, pela primeira vez, um posicionamento formal e abrangente por parte do governo brasileiro em relação a questão da produção e da oferta de medicamentos no contexto da reforma sanitária (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006).

No entanto, apesar de ter aberto espaço para importantes avanços subsequentes (os quais serão tratados com maior detalhamento na seção 3.2), a PNM, como apresentam Chaves et al. (2016), trouxe diretrizes bastante contraditórias em relação aos rumos que deveriam ser tomados pelas estratégias dos LFOs: ao mesmo tempo em que se previa que os laboratórios públicos deveriam voltar as suas atividades para o atendimento das necessidades apresentadas pelo SUS, havia a percepção de que também deveriam voltar-se a estratégias de elevação da competitividade (a partir da redução dos preços) e também a redução da participação de financiamento com recursos públicos para a realização de seus investimentos e manutenção das suas atividades. Ou seja, ao mesmo tempo em que eram vistos como essenciais para a oferta de medicamentos ao SUS, eles deveriam agir em prol de conquistarem a sua autossuficiência em termos financeiros.

Com a expansão da política de assistência farmacêutica, os desafios associados ao acesso universal a medicamentos e as delicadas questões associadas à incorporação tecnológica pelo SUS passam a compor a agenda de preocupações centrais para a gestão da saúde no país. Entre as demandas crescentes, que contava com ampla mobilização da sociedade civil, estava o acesso ao tratamento para o controle do vírus HIV. Em um primeiro momento, houve mobilização dos laboratórios públicos para a produção de medicamentos não patenteados. No entanto, quando há incorporação pelo SUS de antirretrovirais (ARV) utilizados para tratamento da Aids que estão dentro do período de proteção patentária (o nelfinavir e o efavirenz), os primeiros efeitos da entrada do Brasil de maneira precipitada no TRIPs passam a ser sentidos pelo poder público, pelo elevado valor cobrado pelas empresas detentoras de patente. Inicia-se, assim, um importante trabalho de P&D no âmbito dos laboratórios públicos para fossem evidenciados os verdadeiros custos de produção desses medicamentos, o que garantiu ao Ministério da Saúde subsídios para a negociação de preços com essas

empresas (CHAVES, 2016; ALMEIDA, 2018). Além disso, os LFOs foram direcionados à produção de medicamentos voltados ao tratamento de doenças negligenciadas (por não oferecerem margem de lucro satisfatória aos produtores privados), como o caso do medicamento benznidazol, o qual, por ter sua produção descontinuada pela Roche, passou a ser produzido pelo Lafepe, que figurou por muitos anos como único produtor mundial do produto (CHAVES et al., 2018).

Também estiveram entre os instrumentos de incentivo à produção pública de medicamentos o Projeto Guarda-Chuva, que vigorou entre os anos de 1997 e 2002, que se utilizou de investimentos para a modernização dos laboratórios públicos (que atingiram, no período, a faixa dos R$ 40 milhões), e a compra centralizada desses produtos, por meio de aquisições realizadas pelo MS. A combinação entre os dois instrumentos apresentados resultou em uma elevação de 367% da capacidade produtiva dos laboratórios o que significou, em termos de unidades farmacêuticas, uma elevação, entre 1995 e 2002, de 2,1 bilhões para 5,3 bilhões de unidades adquiridas. Estima-se, além disso, que as compras de antirretrovirais provenientes dos LFOs tenham representado uma economia de US$ 960 milhões ao MS (CHAVES et al., 2016). Também no período, entre os anos de 1999 e 2000, foi realizada uma Comissão Parlamentar de Inquérito que tinha como temática os medicamentos e procurava compreender os movimentos de elevação dos preços de diversos produtos farmacêuticos que ultrapassavam os índices inflacionários, além de casos de suspeitas de falsificação dos produtos. Nesse contexto, foram descobertas diversas irregularidades e os laboratórios oficiais foram apontados como elementos importantes para a regulação do mercado – de forma que se tornassem referências de preços, custos e qualidade para as compras realizadas também no âmbito do setor privado (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006).

No entanto, ainda no final da década de 1990, ao mesmo tempo em que se procurava o alinhamento entre as estratégias de implementação do SUS e das decisões de produção e investimento por parte dos LFOs, este movimento não foi linear e apresentou aspectos contraditórios. Um deles, que trouxe muitas dificuldades aos LFOs, foi a descentralização das compras de medicamentos utilizados para tratamentos no âmbito da atenção básica, em que os estados e municípios passam a assumir as responsabilidades de aquisição dos produtos. Isso gerou complicações às possibilidades de manutenção da competitividade desses

laboratórios frente à redução expressiva de demanda, o que fez com que perdessem espaço para empresas do setor privado, que eram capazes de produzir em escalas maiores, para mercados mais amplos (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006; CHAVES et al., 2018). Tal movimento também dificultou a articulação das estratégias desses laboratórios em uma perspectiva nacional, o que fez com que se concentrassem nas necessidades das localidades em que estavam inseridos (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006). Além disso, a promulgação da Lei dos Genéricos, em 1999, que abriu espaço ao setor privado para a fabricação de medicamentos a um preço muito mais baixo (processo que contou, por sua vez, com financiamento via BNDES para a adequação das empresas privadas ao novo cenário), também dificultou a manutenção das possibilidades da competitividade dos LFOs frente às estratégias da iniciativa privada – quadro que será parcialmente modificado ao final da primeira década dos anos 2000, como será abordado na seção seguinte.

Destaca-se assim, que desde o seu surgimento, no início do século XX, a trajetória institucional dos laboratórios públicos brasileiros foi marcada, de maneira expressiva, pela articulação direta com a dinâmica das políticas de saúde no país. Estas, no entanto, apresentaram diferentes formas, mas sempre contaram com a produção pública para a abertura de possibilidades frente aos movimentos contraditórios provenientes da profunda relação de dependência tecnológica existente no âmbito da cadeia produtiva farmacêutica brasileira (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006). Mesmo diante dos movimentos complexos vivenciados durante a década de 1990, em que, ao mesmo tempo em que era prevista pela Constituição Federal de 1988 a garantia do direito universal à saúde, a economia passava por um amplo processo de liberalização e redução do papel do Estado como coordenador da economia, os LFOs demonstraram-se como uma importante alternativa aos impasses vivenciados e contribuíram, de maneira direta, para a continuidade na implementação do projeto do SUS.

No entanto, é importante que se ressalte que, como destaca Almeida (2018), diferentemente de laboratórios públicos que atuam em economias desenvolvidas, como nos Estados Unidos e na Alemanha, que têm seus laboratórios e institutos públicos voltados, majoritariamente, à produção de conhecimento e ao fortalecimento de seus sistemas nacionais de inovação em saúde (MAZZUCATO, 2014), no Brasil os LFOs exercem, desde o seu surgimento, menos esforços

direcionados à realização de P&D e mais ações voltadas à produção farmacêutica associada às necessidades apresentadas pelas políticas públicas de saúde. Desta forma, ainda que alguns laboratórios públicos no Brasil tenham se capacitado de maneira bastante satisfatória na realização de atividades de P&D, a grande maioria deles enfrenta enormes dificuldades relacionadas à capacitação tecnológica, o que é reflexo da subordinação desses laboratórios às decisões políticas do contexto histórico em que se encontram (ALMEIDA, 2018). Mais sobre este assunto será discutido durante a próxima seção.

2.4.2. Os Laboratórios Farmacêuticos Oficiais no contexto atual (2003-2018)