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Breve histórico do Serviço Social: “de onde viemos e para onde vamos?”

A questão social, comumente situada no Brasil a partir da extinção legal da escravização e popularização do trabalho livre nos moldes circunscritos ao modo de produção capitalista em ascensão, é objeto privilegiado ao qual se considera como matéria prima que justifica a criação do Serviço social brasileiro. Uma das referências básicas da profissão, Iamamoto (1991, p. 127) afirma que “a ‘questão social’, seu aparecimento, diz respeito diretamente à generalização do trabalho livre numa sociedade em que a escravidão marca profundamente seu passado recente”.

Para Ianni (1991, p.2), a questão social é um “[...] objeto de interpretações divergentes [...]”, na qual, no período da escravidão, estava colocada de maneira transparente, ou seja, era visível que o segmento expropriado de direitos eram os escravizados negros e que o segmento privilegiado pela força de trabalho de outrem eram os latifundiários brancos. A partir da generalização do trabalho livre a questão social passa por transformações significativas na medida em que seu modo de aparecer está camuflado pelo discurso de que as desigualdades sociais são suscetíveis de “[...] debate, controle, mudança, solução ou negociação” (IANNI, 1991, p.3), predominando a disseminação das ideias liberais legalmente instituídas na carta magna da época.

Ainda sobre a questão social, Cisne e Santos (2018), a partir de um resgate histórico da economia colonial, afirmam que a condição sócio-histórica e econômica do Brasil gerou particularidades à questão social e suas expressões, mesmo que o fundamento do conceito seja a

contradição entre capital e trabalho, a formação de cada país irá definir as diferentes formas de condições de vida e trabalho. Nesse sentido, “a história de um país colonizado e a de um país colonizador imprimem estruturas diferenciadas para a conformação das classes sociais e sua cultura” (CISNE; SANTOS, 2018, p. 100).

Nesse sentido, a questão social, conforme o tempo histórico reúne aspectos raciais, culturais, regionais, de gênero e classe juntamente com os econômicos e políticos, “[...] o tecido da questão social mescla desigualdades e antagonismos de significação estrutural” (IANNI, 1991, p.4). Ao privilegiarmos a categoria racial neste trabalho, não pretendemos ignorar aspectos outros que também atravessam a realidade brasileira, tendo em vista que “a dominação moderna combina racismo, patriarcalismo e luta de classes” (GONÇALVES FILHO, 2007 apud CONCEIÇÃO, 2014, p. 55). É necessário situar a questão racial no cerne da questão social, tendo em vista a centralidade da última no exercício profissional do Serviço social, configurando-se como seu objeto de intervenção e fundação como especialização do trabalho.

A década de 1930, período em que foram criadas as primeiras escolas de Serviço social é marcada pela acelerada urbanização e consolidação do mercado de trabalho nos moldes capitalistas. Há de se destacar a especificidade deste período no qual, tendo em vista os processos diferenciados de formação econômico-social do Brasil, deu contornos particulares ao processo de transição do trabalho escravizado para o livre. Como já explicitado na segunda seção, a substituição do trabalho escravizado pelo livre não se dá por ordem moral ou religiosa da sociedade que se conforma, mas muito em razão das novas exigências do capitalismo industrial e da sociedade de valores modernos, cobiçada pelas elites brasileiras.

Segundo Araújo (2013), o Brasil durante a primeira e segunda república teve como característica um Estado interventor de cunho nacionalista, no qual se buscou fomentar a economia interna a partir do aumento das exportações e diminuição das importações. O esforço empreendido em favor do desenvolvimento nacional perpassou aspectos do campo econômico, social, cultural ou político (ARAÚJO, 2013).

Sendo também observado em outras economias internacionais, as estratégias nacionalistas são reflexos de um contexto de pós-guerras motivadas pelo avanço do capital monopolista, da grande crise econômica causada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, da ascensão da União Soviética pós Revolução Russa, dentre outros acontecimentos que exigem dos governos uma preocupação especial quanto à proteção e desenvolvimento nacional (ARAÚJO, 2013).

No Brasil, as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro caracterizaram-se como hospedeiras perfeitas para a recepção do surto industrial, no qual há uma intensa transplantação de indústrias para o país, tais “[...] transformações se associaram à mudança da estrutura demográfica, econômica e social da cidade, ajustando-a melhor aos requisitos normais da ordem social competitiva” (FERNANDES, 2008, p. 136).

Segundo Ianni (1991, p.3), especialmente dos anos 1930 em diante, o Estado passa a investir na expansão e diversificação da economia brasileira, no qual “[...] mobilizou recursos para transportes, geração e fornecimento de energia, comunicações e serviços de infra-estrutura urbana”. Esse momento, especificamente durante o governo de Getúlio Vargas, é caracterizado por iniciativas estatais com fins de enfrentar a questão social não mais pelo viés da repressão somente, mas sim empregando medidas políticas para o enfrentamento dos conflitos sociais. Tal preocupação advém, conforme Iamamoto (1991, p. 128), da luta do operariado em ascensão que provoca nos setores dominantes uma preocupação com os valores morais, religiosos e políticos estabelecidos, impondo a “[...] necessidade de controle social da exploração da força de trabalho”.

Mesmo com movimentos importantes como a Frente Negra Brasileira (FNB), as conquistas para criação de políticas específicas de inclusão do negro no Brasil republicano foram tímidas, sendo ainda menos pautadas durante o Estado Novo, com a consequente extinção da FNB e outras iniciativas que ameaçavam expor as contradições raciais do país.

Fernandes (2008) afirma que a ampliação da participação no mercado de trabalho pela população negra se dá de forma individualizada, impondo-se ao negro o ajustamento como forma de se incluir aos requisitos da ordem social vigente. Desta “saída” é que se ampliam os esforços de assimilacionismo e negação dos traços, cultura, ética ou qualquer elemento que possa aproximar o negro brasileiro da sua raiz africana. A busca por autonomia, possibilidades de competição com o branco e ascensão social fazem com que a população negra se insira individualmente, não a partir de reivindicações coletivas, na massa de agentes do trabalho braçal assalariado.

Nesse cenário, a população inserida no mercado formal de trabalho das grandes indústrias é em sua maioria, branca ou imigrante, configurando-se enquanto minoria populacional marginalizada geográfica, política e socialmente das grandes cidades em desenvolvimento (IAMAMOTO, 1991). Nesse contexto, destaca-se por Jacino (2007), a participação das mulheres pobres, enquanto um segmento amplo e plural, no qual representavam um problema à ordem social estabelecida na medida em que não se enquadraram nos padrões de gênero impostos pela Igreja Católica. Tais mulheres representavam um papel transgressor, contradizendo a figura da mulher

sensível, submissa, boa esposa e maternal e escancarando as contradições da realidade: eram chefes de família, nem sempre estavam em um relacionamento monogâmico estável e ocupavam lugares de destaque no comércio desde o século XIX.

A intensidade com que a exploração da mão de obra livre se dá em contrapartida às baixas remunerações e pouca ou nenhuma proteção social ao trabalhador força com que mulheres e crianças provenientes de famílias imigrantes componham a massa de trabalhadores industriais.

Amontoam-se em bairros insalubres junto às aglomerações industriais, em casas infectas, sendo muito frequente a carência - ou mesmo falta absoluta - de água, esgoto e luz. Grande parte das empresas funciona em prédios adaptados, onde são mínimas as condições de higiene e segurança, e muito frequentes os acidentes. O poder aquisitivo dos salários é de tal forma ínfimo que para uma família média, mesmo com o trabalho extenuante da maioria de seus membros, a renda obtida fica em nível insuficiente para a subsistência (IAMAMOTO, 1991, p. 131).

Sendo assim, com a ascensão dos movimentos operários, as lutas reivindicatórias dos trabalhadores da época baseava-se na necessidade de aumento dos salários, na regulamentação da jornada de trabalho diária, regulação do trabalho de mulheres e adolescentes bem como no fim do trabalho infantil. Além disso, notou-se ênfase na exigência de direitos trabalhistas como férias, seguro contra acidentes e doença, contrato coletivo de trabalho e reconhecimento das entidades representativas dos trabalhadores (IAMAMOTO, 1991). São estes movimentos que irão forçar que os setores elitizados e o Estado reconheçam a questão social no cerne das discussões políticas. Nesse contexto de agitações sociais, a Igreja Católica ascende como uma instituição importante de contenção dos ânimos da classe trabalhadora, propondo um trabalho de ação social vinculados às prerrogativas religiosas e políticas emanadas diretamente do Vaticano por via das encíclicas papais Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo Anno (1931). Tais documentos expressaram orientações de cunho reformista e conservador diante dos problemas sociais emergentes com objetivo de retomar as influências e poder da igreja que foram enfraquecidos com a ascensão dos ideais da modernidade no fim do século XIX (IAMAMOTO, 1991).

É na consolidação do movimento católico leigo, mobilizado pela igreja católica, que o serviço social passa a representar um dos elementos que irão compor a implementação do projeto político da igreja, surgindo como departamento da Ação Social, é dirigido por um segmento majoritariamente feminino que atua junto aos segmentos vulnerabilizados e empobrecidos da classe trabalhadora, com ênfase nas mulheres e nas crianças (IAMAMOTO, 1991; RAICHELIS, 1988; YAZBEK; MARTINELLI; RAICHELIS, 2008). Portanto, segundo Raichelis (1988), os grupos

ligados ao apostolado social fundaram em São Paulo e no Rio de Janeiro, respectivamente, entidades com o objetivo de difundir a doutrina social da igreja católica, a partir dos quais se originaram as primeiras escolas de serviço social, a primeira em 1936 e a segunda em 1937.

Nesse contexto, bastante influenciado pelas contribuições do serviço social franco-belga a partir de uma perspectiva ética, social e técnica da formação profissional a formação era voltada a reforçar uma visão de “[...] adaptação do indivíduo ao meio e do meio ao indivíduo, numa perspectiva de ‘restauração e normalização da vida social’” (YAZBEK; MARTINELLI; RAICHELIS, 2008, p. 11). Percebe-se a similaridade desse discurso com o movimento observado por Fernandes (2008) ao estudar os meios de integração social adotados pelo negro na sociedade brasileira da época.

É então, a partir das bases teórico-metodológicas da Igreja Católica que o serviço social se profissionaliza e sistematiza práticas para além do puro assistencialismo, sob um ponto de vista moralizador e psicologizante da questão social, colocando no indivíduo a responsabilidade pela condição subalterna, buscando adequá-lo às normas e relações sociais vigentes, com ações centradas no indivíduo e na família (YAZBEK; MARTINELLI; RAICHELIS).

Portanto, como fruto da mobilização de recursos provenientes do Estado e do empresariado, com suporte da Igreja Católica, a gênese do serviço social localiza-se no contexto das relações sociais mais amplas que irão incidir diretamente em suas características na época. Diante disso, afirma-se a profissão como fruto de construção histórica, “que somente ganham significado e inteligibilidade se analisadas no interior do movimento das sociedades [...]” (YAZBEK; MARTINELLI; RAICHELIS, 2008, p. 6).

A origem e recusa da questão social como problema estrutural explicam também a aversão ao reconhecimento da questão racial, a marginalização da população negra, sua condição de empregabilidade e empobrecimento é reduzida simplesmente ao desajustamento moral e religioso. Conforme reitera Raichelis (1988, p. 68),

[...] a prática assistencial supera a ação meramente curativa, transformando-se num instrumento de caráter ideológico que tecnifica os problemas sociais, transformando-os em objeto de diagnóstico e tratamento social apropriados. [...] problemas de economia política são reduzidos, muitas vezes, a questões morais e de assistência individual.

O serviço social com sua prática orientada ao disciplinamento e responsabilização da classe trabalhadora, através do trabalho centrado na função social da mulher dentro da instituição familiar, ao atuar com as famílias negras, estigmatizadas com o recente passado escravista no qual eram

visualizadas como fora dos padrões, buscava-se enquadrar-lhes no padrão, sendo alvo importante dos esforços de disciplinamento (COSTA, 2017).

Segundo Pinto (2003), as perspectivas teóricas adotadas pelo Serviço social em sua gênese e processo de profissionalização, a exemplo do positivismo e depois do funcionalismo com as teorias norte-americanas, demarcaram um atendimento baseado no juízo de valor, “[...] que orientam o agir profissional, envolvendo uma visão de homem que, por sua vez, conduz a uma maior ou menor consideração pela pessoa humana como sujeito. Uma menor consideração pela pessoa leva o profissional a tratá-la como objeto de manipulação” (SOUSA, 1977, p. 73 apud PINTO, 2003, p.41). A ideologia do consenso não compreendia a/o negra/o como sujeito que foi racializado e teve seu lugar social historicamente determinado pela cor da pele e origem étnica.

Segundo Faustino (2015, p. 58-59), a racialização imposta pelo colonialismo possui dois aspectos centrais: o primeiro é a “[...] epidermização dos lugares e posições sociais, ou seja, aquilo que se entende por raça passa a ser definidor das oportunidades e barreiras vividas pelos indivíduos [...]”; o segundo aspecto é a interiorização subjetiva das diferenças, no qual “[...] os indivíduos deixam de se reconhecer mutuamente como reciprocamente humanos para ver a si e ao outro através da lente distorcida do colonialismo”. No Brasil, esse discurso é particularizado na medida em que o mito da democracia racial buscou encobrir as diferenças de lugares socialmente estabelecidos entre brancos e negros, o discurso “somos todos humanos” aliado às defesas de um “dia da consciência humana” em substituição ao dia da consciência negra, é utilizado como subsídio para invisibilizar a realidade da condição negra no Brasil.

Dessa forma, ao negar a raça como fator determinante na integração de negros e negras na sociedade a concepção hegemônica era a de que para atingir os padrões de vida do branco, seria preciso que o negro se esforçasse individualmente para isso. “Se, por exemplo, não era aceito no emprego devido à cor, mascarava-se o fato dizendo que o negro permanecia pobre porque ‘não gostava de trabalho’” (PINTO, 2003, p. 45).

Esse é então a resposta rápida para a pergunta “de onde viemos?”, temos enquanto profissão uma raiz conservadora que após processos históricos buscou ser superada, restando ainda identificarmos e enfrentarmos os resquícios que se manifestam no Serviço social principalmente quando se analisa a intervenção prática dos profissionais.

De fato, o conjunto profissional a partir de 1960 buscou ressignificar as bases teórico- metodológicas, técnicas e políticas da profissão. O Movimento de Reconceituação caracterizou-se por denunciar o descompromisso do Serviço social brasileiro com a realidade nacional, pautando-se

somente em teorias importadas que pouco conseguiam responder às demandas dos usuários atendidos. Tais questionamentos estão agregados a um contexto ampliado de revisão da profissão em toda a América Latina e inquietações conjunturais envolvendo “[...] intelectuais, trabalhadores, profissionais, segmentos médios e de classes populares em torno da luta anti-imperialista na defesa de projetos de transformação social” (YAZBEK; MARTINELLI; RAICHELIS, 2008, p. 16).

O Movimento de Reconceituação, que somente aprofundou-se no fim da década de 1970, possibilitou a aproximação da categoria profissional à teoria marxista, adotando-a como referencial analítico. As orientações de tal ressignificação estão expressas no Código de Ética de 1993, que constitui parte do projeto ético-político construído e amadurecido na década de 1990. O Movimento de Reconceituação significou a ruptura com o conservadorismo em nível dos marcos teóricos vigentes na profissão e no discurso hegemônico das representações mais importantes da categoria profissional, atribuindo à profissão um compromisso com a luta de classes.

No entanto, na atualidade autoras e autores irão expor a ferida que ainda não cicatrizou na profissão: a permanência do conservadorismo na formação e prática profissional (YAZBEK; MARTINELLI; RAICHELIS, 2008; NETTO, 1996; BOSCHETTI, 2015). Segundo os autores, o conservadorismo nunca foi extirpado da profissão, “[...] é, e sempre será, alimento imprescindível da reprodução do capital, e por isso nunca sai de cena” (BOSCHETTI, 2015).

Esse conservadorismo é expresso de diversas maneiras, sendo um sintoma muito aparente afirmações que desvinculam a relação teoria e prática, supondo existir a impossibilidade de se aplicarem na realidade os pressupostos do Projeto Ético-Político Profissional. Segundo Cisne e Santos (2018), a ruptura com o conservadorismo nesse cenário não se dá de forma mecânica ou linear, mas configura-se enquanto um processo.

Na atualidade o conservadorismo se fortalece devido às determinações societárias referentes ao campo econômico, com o aprofundamento da crise capitalista e a resposta neoliberal das políticas governamentais, bem como no campo social e ideocultural, explicitado no fundamentalismo religioso e intolerância aos movimentos sociais (BOSCHETTI, 2015). Portanto, persiste como desafio no Serviço social a necessidade de enfrentar o conservadorismo e consolidar a ruptura com o Serviço social tradicional. Para, além disso temos como desafio compreender as demandas dos usuários e usuárias negras, bem como dos estudantes em incorporar problemáticas ainda pouco aprofundadas na formação profissional.

É nessa perspectiva que começamos a pensar o “para onde vamos?”, postulados alguns desafios e práticas profissionais temos a necessidade de compreender o que o Serviço social

acumulou com relação à questão étnico-racial e qual o compromisso real da profissão com a eliminação de todas as formas de preconceito e discriminação racial.