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BREVE NOTA SOBRE O TÍTULO

No documento Catálogo de ressentimentos (páginas 48-54)

Há também um pouco de autobiografia no Catálogo de ressentimentos, se continuarmos brincando de imaginar aquele roubo de autoria que mencionei páginas antes. O livro, então, seria essa coleção de acontecimentos, esse inventário dos ícones do seu protagonista, esse scrap-book, na escolha de palavras de Compagnon (2007).

O livro é um catálogo, ora.

A escolha do título veio bem nesse sentido: solicitar autorização para a escrita de uma obra fragmentada. Sorte minha que ele surgiu rápido, logo após as primeiras páginas estarem rascunhadas. O título, em parte, me libertou. Ao anunciar desde sempre as tintas intertextuais do projeto, ajudou a me balizar no restante do

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processo. Organizou as coisas. O título nunca escondeu de mim, nem esconderá de seus possíveis leitores, o fato de que temos aqui uma grande caixa (imaginária) onde (quase) tudo cabe:

O colecionador, ao registrar/catalogar as coisas, retira-as do estado dispersivo em que se encontram no mundo e as recontextualiza num outro espaço, regido por leis próprias. [...] A coleção tende a criar suas próprias regras e princípios, de acordo com as inquietações e obsessões do colecionador, sobretudo quando o valor afetivo ou estético predomina. (MACIEL, 2010, p. 26-27)

Em parte, o segmento linear da carta acomoda as melancias, mas sabemos claramente que o Catálogo é uma coleção de acontecimentos e de sentimentos que se apresentam em manifestações distintas. Uma coleção é,

[...] como afirmou Susan Stewart, “uma forma de arte como jogo”, já que sua função deixa de ser “a restauração de um contexto de origem para ser a criação de um novo contexto”, por um processo de deslocamento.

A coleção está, portanto, regida por princípios mais espaciais que temporais, podendo se circunscrever à caixa, ao álbum, ao armário e à serialidade das gavetas, num jogo de dentro e fora, exposição e ocultamento. Graças a sua potencialidade de recolher as coisas e salvá-las da dispersão através do deslocamento, ela assume inclusive uma função de arquivo, de dimensão memorialística, convertendo-se numa espécie de antídoto contra o esquecimento ou, como bem a definiu Philipp Blom, em “um teatro da memória, uma dramatização e uma mise-en-scène de passados pessoais e coletivos, de uma infância relembrada e de uma lembrança após a morte”. (MACIEL, 2010, p. 27-28)

O Catálogo de ressentimentos é, justamente, uma tentativa de reorganização da memória – essa entidade de natureza tão dispersa. É o impulso último no sentido de abrir diálogo entre um filho e um pai.

O filho revisita fantasmas do passado e também do presente e a catalogação dos seus tantos ressentimentos parece ser a forma com que busca “organizar a ordem desordenada da vida” (MACIEL, 2010, p. 30).

! POR FIM

Na aparência, é um jogo.

Recorte, transformação e colagem de referências literárias ou não literárias. Intertextos diversos – a intertextualidade é a memória da literatura (SAMOYAULT, 2008). Surgem brincadeiras com a mídia, elas superam a página; surgem jogos metalinguísticos, pega-pega entre ficção e realidade, muitas paródias. Um tangram literário: partes irregulares entre si que podem compor outras formas quando reunidas.

Em essência, é uma busca pela identidade.

Sequer sabemos o nome do protagonista e narrador dessa história. Sabemos que ele é o filho. Apenas isso. O filho, subjugado pelo pai. É só o menino, o guri, a criança, o filho adolescente ou filho adulto rancoroso. Sabemos apenas que ele tem o mesmo nome do seu pai. Fardo inescapável.

Nossa identidade muda ao longo da vida. O nosso nome, não. Deveríamos ter autorização para mudar de nome, especialmente nos desvios definitivos de nossa existência; quando ganhamos um filho, por exemplo. Recordo Um, nenhum e

cem mil, romance de Luigi Pirandello, outro norte referencial para o desenvolvimento

deste projeto:

Se pelo menos – por mais que me parecesse estúpido e odioso ser carimbado assim, para sempre, e não poder conferir-me um outro nome, tantos outros possíveis – eles se dessem conta de vez em quando das diferenças nuanças dos meus sentimentos e das minhas ações. Ou quem sabe, repito, habituado como estava a carregar aquele nome desde que nasci, eu pudesse não me importar com aquilo e pensar que, afinal, eu não era aquele nome, que aquele nome era para os outros apenas um modo de me chamar [...]. (PIRANDELLO, 2015, p. 67)

O filho do Catálogo quer encontrar-se. Quer outra vida, quer escrever, quer atar laços mais fortes. É como se quisesse um novo nome próprio, a alforria do determinismo paterno. Para isso, precisa matar o pai. Mas precisa salvar o pai. Um antagonismo impossível, o seu fracasso se dará de qualquer forma. Encruzilhada. Ele não tem nome, porque é semelhante ao tirânico ascendente, seja na alcunha ou,

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como devagar compreende, nos gestos mais triviais da vida. É diferente, por vezes invertido, mas é igual. Como num espelho. Faz-se Narciso, e a revelação do seu reflexo, o descortinar das proximidades com a suprema entidade do pai, odiada, rechaçada, negada ao longo dos anos, igualmente o arruína.

Pela escrita de uma autobiografia pluriestilística, roubo o termo de Bakhtin, deve-se dar a redenção. A morte (do fantasma do pai) e a salvação (de sua carne). Denúncia de abusos. Fast food para o ego do potencial escritor. Uma vingança pela linguagem. Aí estão as funções do inventário dos seus rancores, para o filho. A literatura é a chave que destrancará, enfim, as suas passagens mais íntimas: elaborar a memória através da literatura, compor um arquivo por escrito que, enquanto vai se organizando no presente, ponha rédeas no passado.

Verbos como acomodar, agrupar, catalogar, classificar, dispor, dividir, distribuir, enumerar, etiquetar, ordenar, etc. Nunca deixarão de ser imperativos para nossa necessidade de fixar as ordens que nos permitam sobreviver ao caos da multiplicidade e da diversidade. (MACIEL, 2010, p. 16)

O passado transforma-se na escrita do presente. Vira ficção, porque escrever não é simplesmente relatar o que se viveu, “escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida” (DELEUZE, 2011, p. 11). Não tem relevância se os acontecimentos se deram exatamente do jeito que são contados pelo filho. “Escolhemos o que lembramos, ignoramos fatos, selecionamos. A realidade, o presente, é de verdade. A memória é ficcional. Quem não possui a linguagem, está preso no presente. O passado só é possível graças à linguagem” (informação verbal)7.

A ficção tem lá suas manias: se apropria dos fatos, os corrompe, contamina a narrativa da memória. Nasce daí uma outra coisa.

Nasceu Tom, o meu filho, a minha escrita definitiva no mundo, a minha pretensiosa inscrição no futuro. Junto dele vem um impulso, nasce uma ideia para esta novela. É claro que a ideia, logo em seguida, precisa ser elaborada, arquitetada. Afinal, “planejar escrever não é escrever. Traçar o projeto de um livro

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7 Informação obtida em aula ministrada por Gonçalo M. Tavares no Instituto Ling, em 3 de novembro

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não é escrever. Pesquisar não é escrever. Falar com as pessoas sobre o que você está escrevendo, nada disso é escrever. Escrever é escrever” (E.L. Doctorow). É preciso levar a cabo a ideia, portanto. Pensar com os dedos no teclado. Escrever e reescrever. Escrever é reescrever.

“Grosso modo sabemos muito bem que o romance é um jogo literário aberto que pode se desenvolver até o infinito e que, segundo as necessidades da trama e a vontade do escritor, em dado momento termina, não tem um limite preciso.” (CORTÁZAR, 2015, p. 28). Faz-se necessário organizar. Conter a memória em uma caixa. Ordenar o que já foi. Arquivar as angústias. Decidir o que fica e o que sai e em que ordem fica. Por um instante, parar a vida. Catalogar. E, então, talvez permanecer.

O objetivo de todo artista é deter o movimento, que é vida, por meios artificiais, mantendo-o fixo, de modo que, cem anos depois, quando um estranho olhar para aquilo, ele se movimenta de novo, por ser vida. Como o homem é mortal, a única imortalidade possível para ele é deixar algo atrás de si que seja imortal porque sempre vai se movimentar. É a maneira de o artista pichar “Kilroy esteve aqui” no muro do esquecimento final e irrevogável pelo qual ele um dia terá de passar. (FAULKNER, 2013, p. 33) Por fim, pôr um fim na organização desses meus pedaços. Fazer nascer o

Catálogo de ressentimentos, enfim.

! REFERÊNCIAS

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No documento Catálogo de ressentimentos (páginas 48-54)

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