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CAPÍTULO II – Orientações teóricas da pesquisa – Semântica da Enunciação

2 O ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO NA PERSPECTIVA DA

2.7 Onde o acontecimento se instala – o entremeio da singularidade e da recorrência

2.8.1 Um breve percurso

Tentemos, antes de explicitar diretamente a perspectiva que adotamos sobre a significação, demonstrar como se organizaram, ao longo da história, as várias percepções sobre esse fato. Na intenção de pretendermos esclarecer o percurso histórico das relações que foram estabelecidas entre as representações e o que é representado, ou seja, entre as palavras e as coisas, trazemos como teórico balizador desse ponto de nossa análise, Michael Foucault (1999).

Para o filósofo, a representação apresenta nuances que dizem respeito à própria historicidade, ou seja, à epistèmê onde está inserida. Sendo assim, Foucault captou três epistèmês com características bem definidas (e distintas) no que diz respeito à relação entre as palavras e as coisas.

Segundo ele, a semelhança desempenhou um papel fundamental na constituição do saber, até finais do século XVI. Era através da semelhança que se realizavam o conhecimento das coisas e a forma de representá-las, ou seja, estabeleceu-se no mundo a ordem do mesmo. O mundo era regido por um sistema de similitudes capaz de conferir a todas as coisas, desde a mais simples à mais complexa, um certo grau de proximidade. Dessa forma, cabia à linguagem, funcionar como repetição. Segundo Foucault (1999, p.39), nesse período, a forma que

constituía o signo no seu singular valor de signo era a semelhança. A palavra significava à medida que tinha semelhança com o que indicava. Aquilo que se oferecia nas coisas estava arraigado na linguagem. Os dizeres eram para as coisas como marcas presentes em sua superfície. Palavras eram, portanto, coisas a serem decifradas por um comentário, que aparecia quando alguém tinha a capacidade de estabelecer uma relação perfeita entre o signo e o mundo através da decifração das assinalações.

Pensar a linguagem dessa maneira é realizar um quase apagamento do seu existir, é desprezar

a materialidade do linguístico, é ter “a pretensão de fazer falar a linguagem por sob ela própria e o mais perto possível do que, sem ela, nela se diz.” (FOUCAULT, 1999, p. 414).

A grande questão proposta pelo autor é como captar o sinal daquilo que um signo é? Para ele,

“tudo seria imediato e evidente se a hermenêutica da semelhança e a semiologia das assinalações coincidissem sem a menor oscilação” (1999, p. 41), mas sabemos que isso não é

possível, afinal, os enunciados não nos fazem ver a coisas, assim como o que é visto não pode se tornar algo perfeitamente legível. Essa posição assumida por Foucault aparece, por exemplo, quando afirma que

[...] por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aqueles que as sucessões da sintaxe definem. (FOUCAULT, 1999, p. 12).

No período clássico – segunda epistèmê elencada por Foucault – a representação começa a ser pensada. O signo, que antes era visto como a relação entre a palavra e coisa passa a ter seu valor pela possibilidade de representar. O século XVII começa a prestar atenção na linguagem separada do mundo. Os dizeres ganham força de observação, o olhar volta-se para o signo por se entender que ele é o controlador da relação entre as palavras e as coisas, uma vez que a linguagem pode ser manipulada e a coisa, não.

Se até o século XVI a ideia central era a semelhança, o que percebemos agora é a descontinuidade desse pensar. A palavra-chave para os clássicos é a diferença. O processo de observação é meticuloso, não mais geral e, para tanto, instala-se o método. Antes, as semelhanças eram constatadas por crenças e não por cientificidade. Pensar na diferença significa admitir que a relação entre as palavras e as coisas está sujeita ao erro e ao acerto e é por isso que, na época, o pensar se funda na teoria de que o conhecimento estava marcado pela representação das coisas numa ciência geral da ordem (mathésis). A matemática

funcionava como recurso de que dispunham os clássicos para chegarem ao acerto na esfera da representação. O teste, a experimentação, o método, garantiriam que no ato de dizer que o signo representa as coisas do mundo, se tivesse certeza disso. Na concepção clássica, a ausência de verificação faz das similitudes o lugar do erro.

Na epistèmê do século XVII, “o limite do saber seria a transparência perfeita das

representações nos signos que as ordenam” (FOUCAULT, 1999, p.105). O enunciado

funciona por uma espécie de mecanismo próprio e é caracterizado pela evidência. Ou seja, o que se realiza é um trabalho de percepção das evidências por meio da utilização de maquinaria formal que não desprende atenção às particularidades da significação e desconsidera aquilo que não pode ser inserido no universal. Segundo Foucault (1999, p.419),

“...para os que querem formalizar, a linguagem deve despojar-se de seu conteúdo concreto e só deixar aparecer as formas universalmente válidas do discurso...”

O surgimento da epistèmê moderna é causado pela constatação de que há coisas que existem além dos limites da representação. O mundo agora é visto como exterior e apresenta contornos muito mais profundos do que aqueles propostos pelas técnicas de formalização. A passagem do mundo clássico para o moderno se dá quando o homem passa a perceber que a língua tem forma, ou seja, que a ligação da representação de um sentido à representação de uma palavra deve ser feita observando-se os aspectos linguísticos que se apresentam. Segundo o autor, “as disposições gramaticais de uma língua são o a priori do que aí se pode enunciar.” (FOUCAULT, 1999, p.412).

Ampliando esse processo de análise, Foucault afirma, ainda, que as palavras não são só

formas porque “grupos e indivíduos se representam nas palavras.” (FOUCAULT, 1999, p.

488). Nesse sentido, o que as coisas nos oferecem como verdade interior é apenas uma

aparência. “Dessa forma, o lugar dos objetos não está inscrito neles mesmos. Há algo de

externo a eles que nos informa o seu lugar, que os torna visíveis, que os torna objetos de

discurso, vale dizer, objetos de História.” (DIAS, 2001, p.193).

Isso posto, caminhamos para a concepção de que, se queremos ver sentido na linguagem, precisamos olhar para ela, mas não imaginá-la transparente, afinal, as palavras estão habitadas por sentidos que advém de grupos e constituem-se até mesmo à revelia deles. O espaço do linguístico é habitado por recortes de significação advindos de vários sujeitos, o que impossibilita à língua a captação do que o sujeito pensa, uma vez que as palavras não são

propriedade só dele. Nessa perspectiva, admite-se que antes de se chegar ao mundo há um conjunto de discursividades perpassando-o e o valor referencial que esse mundo apresenta corresponde aos efeitos de sentidos que esse conjunto de discursos nomear.

Esse fato permite admitir que mesmo não havendo equivalência entre as palavras e as coisas, as duas formas se insinuam uma na outra, extrapolando a mera função de refletirem-se para assumirem, finalmente, sua capacidade de (re)construir e (re)dimensionar o enunciável.