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BREVES REFLEXÕES SOBRE O POEMA “CONTRANARCISO”, DE LEMINSKI, A PARTIR DE ANTONIO CANDIDO

Michelle Pereira de Oliveira1

Resumo: Este texto apresenta breves reflexões sobre o poema “Contranarciso”, de Paulo Leminski, sustentadas

pelas visões de Antonio Candido, no antológico artigo “O direito à literatura”. A proposta desta abordagem é homenagear o crítico brasileiro, abrindo espaço a um poema que resgata o melhor de nós: o outro.

Palavras-chave: poesia brasileira; Leminski, Antonio Candido

Em “O direito a Literatura”, Candido (2011) nos leva a refletir sobre alguns pontos que perpassam a questão dos direitos humanos, entre eles, o acesso à literatura, que, em sua opinião deveria ser disponibilizada a todos, tanto por seu grau de importância como manifestação material dos sonhos, desejos, visões de mundo dos indivíduos e dos grupos e aspirações humanas, quanto por seu papel indiscutível de formação de leitores e difusão do conhecimento. Ela estaria inserida naquilo que ele postula como “bem incompressível”, ou seja, seria um dos bens indispensáveis aos seres humanos:

Eu lembraria que são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo a justiça pública, a resistência a opressão etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, porque não, à arte e à literatura (CANDIDO, 2011 p. 176).

Segundo o autor, tendo em vista que ninguém é capaz de passar mais de vinte e quatro horas sem evadir para o universo da ficção e da poesia, ou seja, para o campo da literatura, ela se constitui como um direito e precisa ser garantida: “Ocorre em todo o campo da literatura e explica porque ela é uma necessidade universal imperiosa e usufruí-la é um direito das pessoas de qualquer sociedade” (2011, p. 182).

Candido discorre ainda sobre o poder enriquecedor e humanizador da literatura, que leva o homem a um processo reflexivo, à aquisição do saber, à boa disposição para com o próximo, ao afinamento das emoções, à capacidade de penetrar nos problemas da vida e desenvolve em nós uma porção de humanidade na medida em que nos transforma em seres mais compreensivos e abertos à natureza, à sociedade, e ao semelhante.

1 Graduada em Letras Português pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), mestranda pela mesma institui- ção de ensino, na área de Literatura e Cultura, sob a orientação da professora Dr.@ Ana Maria Leal Cardoso. Atua como professora da Educação Básica na área de Produção textual. E-mail: mychelleg2@hotmail.com.

O poema “Contranarciso”, de Leminski, serve para ilustrar as visões de Candido. Vejamo-lo na íntegra: Contranarciso em mim eu vejo o outro e outro e outro enfim dezenas trens passando

vagões cheios de gente centenas o outro que há em mim é você você e você assim como eu estou em você eu estou nele em nós e só quando estamos em nós estamos em paz

mesmo que estejamos a sós (LEMINSKI, 2013, p. 32)

O próprio título se configura como uma anteposição ao narcisismo, conceito utilizado recorrentemente para denotar indivíduos que expressam um excessivo apreço por si mesmos. Assim, o poema nos apontará uma direção de leitura contrária a essa ideia narcisista, de individualismo/egocentrismo, e nos conduz à importância da consciência da coletividade que nos atinge por estar em nós.

Ao analisarmos a primeira estrofe, verificamos a repetição do vocábulo “outro” e da conjunção “e”: “Em mim/ eu vejo o outro/ e outro/ e outro/ enfim dezenas/trens passando/vagões cheios de gente/ centenas ...” (2013, p.32). Essa repetição, do ponto vista fonético, bem como no morfológico, demonstra um contínuo acréscimo de elementos que confluem a uma gradação progressiva: “mim”, “outro”, “dezenas”, “trens”, “gente” “centena”. Tal progresso sugere também que nós somos seres em crescimento continuado a partir da inserção do outro em nós; pois somos ligados uns aos outros, quer seja pela mesma natureza a que pertencemos, quer pelas constantes relações que estabelecemos em nossa volta.

Em: “enfim dezenas/ trens passando/vagões cheios de gente/centenas” (2013, p.32), podemos denotar que somos muitos, efêmeros, estamos em constante deslocamento como os trens, passageiros, em um contínuo ir e vir. O trem, como metáfora da vida e do tempo em funcionamento, é o elemento que agrega em si essa coletividade. O modo como realizamos a viagem nesse “trem” é que configurará o que Candido entende como “sobrevivência física em níveis decentes” e “integridade espiritual”. O poema de Leminski, por sua vez, aponta para a necessidade de nos vermos parte dessa coletividade, passageiros, portanto, de um mesmo trem.

Os vocábulos “mim”, “outro”, “você”, “eu”, e “nós”, presentes em todo o poema, prefiguram um jogo de alternância que configura a indissolubilidade entre a identidade/alteridade, ou seja, eu sou na medida em que eu me enxergo no outro, em que eu me vejo como parte constitutiva de outrem e este como parte constituinte minha: “Assim como/ eu estou em você/eu estou nele/ em nós...” (2013, p.32)

O poema nos convida a considerarmos o outro a tal ponto em que nós entendamos que aquilo que lhe fizermos estará afetando diretamente a nós mesmos, uma vez que somos uma coisa só e juntos aos demais constituímos a mesma humanidade.

A experiência da leitura literária, portanto, incita reflexões que podem contribuir para que o olhar para o mundo encontre o espelho da humanidade, compatível com o que também diz a canção de Gonzaguinha,

“Caminhos do coração” (1982):

Há muito tempo que eu saí de casa Há muito tempo que eu caí na estrada

Há muito tempo que eu estou na vida Foi assim que eu quis, e assim eu sou feliz Principalmente por poder voltar

A todos os lugares onde já cheguei Pois lá deixei um prato de comida

Um abraço amigo, um canto prá dormir e sonhar E aprendi que se depende sempre

De tanta, muita, diferente gente Toda pessoa sempre é as marcas

Das lições diárias de outras tantas pessoas E é tão bonito quando a gente entende

Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá E é tão bonito quando a gente sente

Que nunca está sozinho por mais que pense estar É tão bonito quando a gente pisa firme

Nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos É tão bonito quando a gente vai à vida

Nos caminhos onde bate, bem mais forte o coração E aprendi ...2

O “E é tão bonito quando a gente sente/que nunca estamos sozinhos” dos versos da canção de Gonzaguinha e os versos de Leminski “E só quando/ estamos em nós/ estamos em paz...” (2013, p.32) comungam da mesma ideia: a de que, quando temos o reconhecimento do outro como parte de nós, redimensionamos a nossa participação na humanidade e compreendermos o valor do outro em nossa vida

Que o “direito à literatura” e o “direito à vida” possam ganhar mais espaço neste trem que, tantas vezes, está repleto de “eus” que não se fazem espelho para ninguém.

Referências bibliográficas

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011, p. 169-193.

GONZAGUINHA. Caminhos do coração. Disponível em https://www.letras.mus.br/gonzaguinha/280648/. Consulta realizada em 30/04/2017.