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BUCHALLA, Anna Paula Guia Veja: Cachaça para degustar Veja Edição

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A partir da observação direta de um engenho real no Recôncavo Baiano, chamado Engenho Sergipe do Conde, Antonil (1976) descreveu, em dez dias, os pormenores de tudo o que achou de inte- resse quanto ao fabrico do açúcar e ao funcionamento do engenho. Segundo as informações dos profissionais que o administravam e do mestre do açúcar, além de outros mestres à execução do fabrico, fez descrições miúdas, como mesmo disse, no intuito duplo, tanto de demonstrar a operacionalização da indústria, quanto ao escla- recimento aos que, por interesse, intentem ao engenho da droga (açúcar).

Afirma que o Senhor de Engenho é um título desejado por mui- tos devido obediência e respeito a ele requeridos, do mesmo modo que um fidalgo do reino, e destaca o esforço que dele se exige. O governo do engenho requer mais que braços, aparelhagens, terras e ofícios, demanda cabedal, atitudes firmes e temperança à resolução de problemas que surgem sempre. Desta forma, a administração do engenho não é para qualquer aventureiro, mas para aqueles dedica- dos ao trabalho e responsáveis de suas obrigações.

Se o açúcar fez a fortuna de muitos, certamente isso ocorreu pela dedicação e empenho que eles desprenderam para tanto. Aquela imagem de aventureiro e de homem cordial tão bem analisada por Holanda (1997), que relações afetivas e sentimentalidades em movi- mento conduzem o brasileiro na sua cordialidade típica, parece aqui contradita segundo Antonil.

Ao contrário do homem cordial, o Senhor de Engenho teria ares de empreendimento, controle de gastos, empenho e muito traba- lho, ou seja, uma ética do trabalho fundada na ideia de senhor de suas posses e que as defendia a todo custo. Seus escravos, oficiais, capelão, máquinas e animais estavam em obediência aos mandos, orquestrados, enfim, pelo receituário disciplinar fundado na pessoa do senhor.

Tal regime disciplinar imposto por ele definia o êxito do enge- nho, de tal modo que, descuidos, ingerências ou fraqueza moral culminavam na bancarrota. Tal Maquiavel, Antonil esmiúça o passo a passo daquele que seria o manual dos interessados em gerir ou manter o engenho de açúcar, então principal fonte de riqueza da colônia. Que terras comprar, como agir com os oficiais, de que forma tratar os lavradores etc., tais foram seus ensinamentos. O governo do engenho exige atenção dedicada para não se converter em fogo de palha a presunção de senhor sem o cabedal requerido.

Publicado em 1711 e logo em seguida caçado pelo governo real, pois estaria divulgando aos estrangeiros as riquezas da principal colônia portuguesa, Cultura e Opulência do Brasil é um documento da vida colonial e das condições para o implante daquela que seria a principal fonte de riquezas do Brasil por séculos, o açúcar.

O interessante da obra, mais que as precisões gerenciais, são as atitudes, a postura segundo a qual todo o empreendimento deri- vava. Embora seus conselhos e registros tenham sido escritos há tanto tempo, a atualidade da obra nesse quesito merece destaque especial. Do mesmo modo que os Senhores de Engenhos reais da colônia, os atuais donos de engenho em um contexto de economia globalizada devem atentar, e muito, aos ensinamentos do jesuíta.

Suas observações ocorreram em dez dias. Para a elaboração desta tese, foram necessários quatro anos e, nem de longe, aproxima-se do seu brilhantismo. Seus ensinamentos inspiram sugestões aos enge- nhos atuais, especialmente aos da Paraíba.

A dedicação meticulosa como os negócios devem ser tratados e a convicção de que o engenho, mais que espaço econômico, significa dedicação, envolvimento sentimental, a postura de quem o adminis- tra, as ações gerenciais precisas e a firmeza ética sobre o trabalho são a principal receita para o sucesso.

A partir dos anos 90, alguns engenhos da Paraíba iniciaram um processo de revisão de suas atividades, tanto ao fabrico, quanto à redefinição da imagem atrelada à cachaça. Motivados pelo exemplo mineiro, muito foi feito para tanto, como por exemplo, melhorias na produção, pela seleção da parte mais nobre da cachaça, o coração, na destilação, a higiene do engenho e os cuidados para um aumento da qualidade da bebida, assim como, a procura de parceiros como o SEBRAE redefiniram a fabricação da cachaça na Paraíba. No mesmo caminho de inovações, o fortalecimento das marcas a partir do investimento em propaganda, participação em festivais e várias premiações de porte nacional refletiram esse empenho no quesito imagem da cachaça.

A tradicional postura de Senhor de Engenho, centrado, exclusivo de seus domínios, vem se modificando pelo espírito associativista e cooperativista, com a criação da ASPECA e da COODERCANA, as quais sinalizam o interesse da ação conjunta para a expansão do setor no Estado.

Aliado às iniciativas no campo produtivo, quanto à valorização das marcas e, consequentemente, da imagem da cachaça, eviden- cia-se o investimento nos engenhos como espaços turísticos, para visitação e degustação de seus produtos. Tais iniciativas contribuem para o incremento de possibilidades de exploração econômica dos engenhos, os quais, tradicionalmente eram espaços fechados, reclusos àqueles que neles trabalhavam. De certo modo, vive-se, na Paraíba, a abertura das portas dos engenhos, no sentido estrito do termo, não apenas para novos ares que os transformam produtivamente,

mas também, os que transformam em espaço público, de visitação, de mídia, etc.

Se Antonil inspira e orienta quanto às atitudes do senhor para a administração do engenho, José Lins do Rego lhe enriquece de sentimentalidades e mesmo de melancolia. Analisa-o segundo as memórias de infância até destacar sua decadência com o surgimento das usinas, mas principalmente lhe destaca como espaço de acon- chego, morada, acolhida, comida farta e tranquilidade.

O engenho, mais ainda, o mundo da cana-de-açúcar, nos seus aspectos mais diversos, como explorados no primeiro capítulo da tese, mostra quanto a Paraíba foi, na sua construção histórica, um reflexo desta cultura. No presente, essa importância não mudou, ao contrário, sem citar as usinas que ainda atuam no Estado, os engenhos produtores de cachaça vêm desempenhando um papel bastante significativo como espaço econômico e cultural, embora ainda em estado germinal.

Todo o contexto pesquisado, especialmente durante o trabalho de campo, revelou o potencial econômico do setor, mas também problemas sérios que merecem tratamento especial por parte de seus atores. O primeiro deles diz respeito à insipiente capacidade de associativismo, embora já existam, como citado, a representa- ção de classe e uma cooperativa. A tradição do Senhor de Engenho, isolado, ainda define o perfil de alguns proprietários e inviabiliza o fortalecimento e a organização do setor, tanto quanto a padro- nização regional como em Minas (AMPAQ) ou uma certificação geográfica, como existe em Paraty/RJ.

Os produtores de cachaça da Paraíba se revelaram bastante efi- cientes quanto ao fabrico, porém, no tocante à comercialização, muito há o que ser feito. Cuidar do plantio, da indústria e ainda se encarregar pela distribuição do produto requer um nível de profis- sionalização ainda não alcançado pelos produtores. Com exceção das marcas consolidadas, segundo o presidente da COODERCANA,

Jornandes de Araújo Medeiros, os produtores encontram grande dificuldade na distribuição comercial de suas cachaças. Falta-lhes conhecimento, profissionalismo para a comercialização, assim, ainda há vários engenhos produzindo cachaças de boa qualidade e vendendo a granel, quer dizer, no próprio engenho em pequenas quantidades e sem um trato comercial adequado.

Uma coisa é certa, este momento, denominado nesta tese de novo ciclo da cana-de-açúcar, revela-se como um importante espaço para a exploração econômica desse setor, seja em pesquisas, seja no processo de fabricação, seja no comércio da cachaça. O mer- cado da bebida, embora bastante concorrido, demonstra, segundo os proprietários de engenho entrevistados, capacidade crescente de expansão, sem se falar nos outros subprodutos da cana como o açúcar mascavo, o melaço e a rapadura que deixaram de ser fabrica- dos pela maioria dos engenhos do Estado. Para se ter uma ideia, na cidade de Alagoa Nova e Areia, a produção de rapadura está em fase de decadência. O mesmo que foi feito para a cachaça, ao se copiar o exemplo mineiro, deve também, na Paraíba, ocorrer na produção dos outros subprodutos da cana-de-açúcar.

Portanto, para aqueles que são proprietários de engenho ou que pretendem atuar no setor, esta tese lhes dá um suporte compreen- sivo inspirado em dois pensadores: Antonil e José Lins do Rego. Com relação a José Lins do Rego, a influência foi ainda maior. Em todo o trabalho de campo, o cenário que se mostrou diante dos olhos daquele que pretendia compreender as relações sociais dos engenhos paraibanos, eram os romances de José Lins as lentes para o filtro daquela complexidade.

Um engenho, ao seu bom funcionamento, requer muitas exi- gências, mas duas são as mais importantes: a disciplina atenta e rigor ético ao trabalho e dedicação, e sentimentalidades passionais às pes- soas e ao lugar, como um menino ou senhora de engenho.

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