• Nenhum resultado encontrado

Buenos Aires: um pacto político pela américa e pela república

No documento 2014MurilloDiasWinter (páginas 196-200)

C ONCEITOS POLÍTICOS NA REGIÃO C ISPLATINA

4.2 Buenos Aires: um pacto político pela américa e pela república

No dia 23 de agosto de 1822, Manuel Torres, um dos mais comedidos periodistas cisplatinos, destaca com entusiasmo na segunda edição do jornal El Patriota a marcha positiva dos negócios públicos em Buenos Aires. Segundo o redator, o progresso dos Portenhos era irrefutável e “a todo liberal debe ser de sobre manera agradable que prospere un pueblo de este continente”, visto que “Buenos Aires no parece una ciudad sino un estado, por su orden interior en grande, por sus establecimientos dignos, por sus relaciones exteriores.” As rápidas transformações da cidade contrastavam com os anos anteriores, “porque bajo de ellos jamas alcanzaban los fondos ni aun para el pago ordinario de los sueldos, y se veian á los empleados y militares mendigando”, já “al presente para todo alcanza y siempre sobra, sin embargo de emprenderse obras de gran costo que insumen ingentes cantidades.” 440

A evolução buenairense que agradava a todos os liberais, inclusive o próprio Manuel Torres, seguia

440

200

o espírito do novo século, ou seja, Buenos Aires representava a ilustração, o desinteresse pessoal e a negação dos valores decorrentes do período colonial. Características refletidas na vocação para as ações filantrópicas e nas novas práticas e instituições que surgiram em grande número materializando essa ideologia:

Administracion de justicia, universidad, academias, sociedades, periódicos ilustrados, establecimientos consoladores de la humanidad, decencia política, el fuego de la libertad circulando entre todas las clases, y entre todos los individuos con la rapidez del rayo, la ilustracion generalizándose, las tinieblas desapareciendo. . . .tal es el estado actual de Buenos Aires, tal es su marcha de gobierno, y en decirlo no se hace sino justicia al mérito.441

Desse modo, os séculos de dominação espanhola marcados pela ignorância e incapacidade administrativa foram trocados pelas luzes e pela ilustração dos novos governantes buenairenses. O principal expoente desse processo civilizador da cidade era Bernardino Rivadavia, poderoso ministro do Presidente Martín Rodríguez, que instituiu uma série de reformas que procuravam levar as Luzes e o progresso para Buenos Aires, além de buscar o reconhecimento e a legitimação estrangeira para a nova posição dos buenairenses em relação ao mundo. As negociações de Rivadavia com nações estrangeiras e o aval de grandes potências mundiais como Inglaterra e França, e novos países do continente a exemplo do Chile e do Peru, também foram motivo de evidência para Manuel Torres. O redator ainda cita os próprios espanhóis como um dos povos que corrobora a posição progressista dos portenhos:

Las cortes extranjeras lo reconocen, lo respetan , y no se desconfían de tratar con él. Cônsules agentes le llegan à porfia, y S. A. R. desde el Brasil se ha apresurado à reemplezar al Sr. Figueredo, con en illmo. Sr. d. Antonio Manuel Correa de Cámara, quien ha recibido reconocido el 1.º del corriente. Chile, Lima, los Estados Unidos, Inglaterra, Francia, todos estào en relaciones diplomáticas con Buenos Aires; la España misma vá à remitirlos embiados y solo duda, del carácter que ha à darles. Pueblos de América: echad los ojos sobre ese cuadro con detencion, y contemplade!!!442

441Idem.

201

Portanto, para os primeiros periodistas cisplatinos, com a região ainda sob dominação lusitana, Buenos Aires era sinônimo dos novos tempos que o continente americano vivia, sobretudo, a partir das revoluções de independência. Tal posição era marcada pela ilustração e razão em contraposição ao período nebuloso de dominação colonial europeia. Esta linha argumentativa era igualmente seguida por Santiago Vázquez. O redator do El Ciudadano afirmava que “nada mas justo, ni mas glorioso que la revolucion empezada en Buenos Aires en 810”, afinal “la independencia que sostuvo estaba escrita en los decretos de la razón, porque el gobierno de la antiga metrópoli era vicioso, e mesmo que não fosse, a permanência do colonialismo “chocaría con el voto de la naturaleza que colocando entre uno y otro hemisferio al anchuroso océano, marcó en él su necesaria separación.”443

A atitude portenha em liderar os movimentos que acabaram separando os americanos e europeus seguia a razão, pois, como já era destacado por Manuel Torres, a metrópole espanhola era inapta na administração de suas colônias e opressora dos direitos dos habitantes americanos. O movimento também era natural, afinal, América e Europa são separadas por um enorme oceano, o que já deveria determinar a impossibilidade de união entre os povos destes dois continentes. Nos periódicos cisplatinos, a independência era o sentido natural e racional que os povos americanos deveriam seguir. A argumentação se embasava nos principais intelectuais da época e foi pautada no discurso decorrente do iluminismo e do liberalismo, a exemplo do que ocorria no restante do continente desde meados do século XVIII e a partir das primeiras décadas do XIX.

Sobre a compreensão do vocábulo independência, Ana Frega aponta que justamente a crise da monarquia na Europa e as revoluções de independência na América Latina iniciaram um processo de rápidas alterações semânticas. No intrincado processo de formação dessas novas unidades políticas a adjetivação do termo independência expressava os diferentes projetos políticos em jogo. É nesse sentido que a historiadora recorre a Eugenio Petit Muñoz, que desde a década de 1950 apontava a necessidade de distinguir como os textos da época compreendiam a “independência absoluta” daquelas que se referiam a “la independência a secas”. Portanto, Frega aponta que “Mientras que las primeras apuntaban al significado actual del término, las segundas remitían a lo que entendemos ‘autonomía”, ou seja, “expresaban la libertad de gobernarse por sus propias leyes o elegir sus autoridades, y no eran contradictorias con

202

distintas formas de unión o asociación con otras unidades políticas.”444

Cabe ainda lembrar que estas duas possibilidades não eram inéditas e estavam presentes em distintos manuais de Direito Natural e da Gentes e textos frequentemente referenciados na época. Então, mesmo que se discutisse a independência e exemplificasse Buenos Aires como o caminho mais correto a ser seguido, a própria terminologia da época apontava para diferentes soluções e possibilidades na ruptura com os laços coloniais.

Em relação à compreensão e aplicação do conceito de América/americano no mundo ibero-americano, João Feres Júnior que apresenta o vocábulo no Diccionario político y social del mundo ibero-americano oferece significativas contribuições. Ainda que o texto não tenha a intenção central de contemplar o peso identitário presente no conceito de América, a partir das independências são evidentes algumas definições sobre as formas de pertencimento coletivo sendo construídas no continente e as tensões presentes nos diferentes projetos políticos em disputa no espaço geográfico que antes fazia parte do mundo colonial. É nesse sentido que nos anos imediatamente posteriores às independências o vocábulo sofre um processo de grande politização e passa a ser utilizado como oposição à dominação colonial e ao mundo europeu, processo comum em todos os países hispânicos analisados, embora todos tenham tido particularidades e temporalidades específicas445. Em síntese o pesquisador afirma que “en las primeras décadas del siglo XIX, el término América se convirtió en importante bandera de movilización, acabando inclusive por integrar el nombre de algunas de las comunidades políticas recientemente liberadas del yugo colonial.”446

Nas Províncias Unidas do Rio da Prata, onde o processo de politização do conceito de América teve continuidade maior do que no restante do continente, as disputas pela unidade ou pela federação foram mais intensas e a afirmação de uma identidade regional mais lenta, os vocábulos América e América do Sul batizaram diferentes projetos políticos, em sua maior parte, de liberação do jugo colonial e de integração do que antes era o Vice-reino do Prata447. É dessa forma que os portenhos

444FREGA, Ana. Independencia. Los significados de la independencia desde la colonia hasta la

afirmación del estado-nación. In: CAETANO, Gerardo (coordinador). Historia conceptual. Voces y

conceptos de la política oriental (1750-1870). Montevidéu: Banda Oriental, 2013. p. 35.

445

Para a nossa principal preocupação no trabalho, a região platina, ver: SOUTO, Nora. América- Argentina- Río de la Plata. SEBASTIÁN, Javier Fernández (director). Diccionario político y social del

mundo ibero-americano... Op. Cit. p.68-80.

446FERES Jr., João. El concepto de América en el mundo atlántico (1750-1850): Perspectivas teóricas y

reflexiones sustantivas a partir de una comparación de múltiples casos. In: Diccionario político y social

del mundo ibero-americano... Op. Cit. p.56.

447SOUTO, Nora. América- Argentina- Río de la Plata. SEBASTIÁN, Javier Fernández (director).

203

eram vistos pela imprensa periódica cisplatina, como os grandes exemplos de americanismo e de liberdade e a quem os Orientais deveriam se unir para construir a unidade política platina, pretensamente desejada desde a revolução de maio. Contudo, Vázquez é crítico com os rumos tomados por Buenos Aires após a independência. A preocupação fundamental do periodista era, justamente, a desintegração que as Províncias Unidas do Rio da Prata sofriam na segunda década do Oitocentos. A quebra da unidade representava os vícios dos governantes que começaram a revolução - e depois perderam seu sentido inicial -, a guerra e a sobreposição das paixões à racionalidade:

las ventajas de esta debían hacerse sentir en todas las clases de la sociedad: todas eran interesadas en sostenerla, y todas las sostuvieron: pero esta noble marcha que debió terminar en breve tiempo la flaca oposición de los ministros del despotismo, se vió mil veces detenida y mil veces arriesgada, por que las divisiones intestinas relajaron el nervio de la unidad: no es lisongero decirlo, pero es justo confesarlo: manchamos la carrera de la revolucion que era pura, sencilla, con nuestros vicios y errores , fruto de la inesperiencia: prodigamos la sangre, prodigamos los crímenes, hicimos gemir à la humanidad. 448

No texto que havia sido publicado na edição de número três do periódico El Ciudadano, mais além do período que a historiografia vai consagrar como “anarquía del año XX”, os conflitos internos e as sangrentas batalhas entre os caudilhos platinos, é clara a posição política de Santiago Vázquez para o futuro da Província Cisplatina. O periodista defende a união de todo o Prata sob o mesmo governo, todas as províncias da região deveriam formar uma unidade sob a liderança de Buenos Aires. Nesse sentido, a dominação estrangeira imposta aos Orientais deveria ser combatida por todos os habitantes das províncias platinas que formariam a unidade supostamente planejada desde 1810, afinal “unidos asegurariamos no tan solo el triunfo sino la tranquilidade”. Após mais de uma década dos movimentos iniciados pela liberdade de toda a região, “ya todos saben que la funesta division en los ejércitos las províncias, los pueblos y las famílias; dilatando la guerra contra el despotismo español, ha producido tambien la sangre, desolacion y horrores que se ha visto envuelta la mayor parte del territorio.”449

448

El Ciudadano. Montevidéu, nº 03, 16 de junho de 1823.

449

No documento 2014MurilloDiasWinter (páginas 196-200)