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3 DA DISSIDÊNCIA COMUNISTA DA GUANABARA (DI-GB) AO

3.7 Buriti cristalino

Em janeiro de 1971, a direção nacional publicou o texto “Orientação para a prática”. Esse documento fazia uma leitura da realidade da luta guerrilheira nacional e internacional, assim como da relação entre massa/vanguarda, apontando as fragilidades da luta na cidade e no campo. Foi o mais significativo escrito dessa tentativa inicial de propor outros caminhos à luta armada. Defendia o retorno ao trabalho de massa combinado ao enraizamento social da luta armada, tendo como finalidade possibilitar o arranque da guerrilha rural.

É certo que a esquerda revolucionária tem um passado de subestimação do trabalho no campo. De 1967 para cá isso ficou cabalmente demonstrado, quando empregamos mal muitas forças na cidade, enquanto os trabalhadores rurais continuavam demonstrando seu imenso potencial nas lutas espontâneas. No Nordeste, a esquerda está assistindo hoje a utilização da violência pela massa em desespero, sem conseguir, no entanto, ir lá e dar consequência à luta daquelas populações. É muito importante estabelecer isso para que consigamos encontrar as formas para superar esta falha de caráter político-ideológico – subestimação da massa camponesa. Mas a saída desse erro não pode significar a caminhada para outro que, se verificando, levará a consequências talvez mais desastrosas ainda. Tal é o perigo que alguns companheiros correm na tendência afeita de definir a principalidade rural. [...] Hoje queremos evitar a questão da principalidade, no âmbito da definição campo-cidade. E isso porque, no caso da guerra revolucionária no Brasil a manifestação do caráter combinado tem de se dar desde o início. Além dessa afirmação estratégica que fazemos para não definir principalidade cidade-campo vemos que, na atual conjuntura, a esquerda tem tarefas essenciais na cidade, e não só no sentido do próprio encaminhamento da logística para o trabalho rural. Estamos buscando uma implementação para a guerrilha urbana, que aqui no Brasil adquire uma roupagem nova, não podendo ter as conotações dúbias que lhe dávamos, anteriormente.186

Desencadear a guerrilha no campo era o principal objetivo das organizações armadas. Com exceção do PCdoB, praticamente todas as outras organizações estavam limitadas à ação

185 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São

Paulo: Ática, 1987. p. 199.

nos centros urbanos. No caso do MR-8, como veremos mais à frente, a tentativa de um trabalho de fôlego no campo não se concretizou a tempo.

A formação de um trabalho rural em Brotas de Macaúbas, no interior da Bahia, foi a principal repercussão dessa tentativa incipiente de olhar criticamente a luta armada e o cerco nos centros urbanos. Situado em uma região de caatinga, com baixo desenvolvimento e pobreza extrema da população, Brotas de Macaúbas atendia aos critérios estabelecidos pela direção do MR-8 para dar início a um trabalho de fôlego no campo. Além disso, o fato de não haver a presença constante da repressão colaborava. Em texto publicado no Jornal Resistência, em 1972, o MR-8 destacou os critérios que levaram à escolha da região.

O primeiro critério para a escolha da região foi a situação objetiva da população, sua miséria extrema, sua fome crônica, suas doenças e seu abandono por qualquer governo. Outros critérios estiveram presentes na escolha como as boas condições militares do ponto de vista topográfico, a ausência de centros de concentração e a existência de uma liderança já firmada. Nessa liderança destacamos o papel de Zequinha (José Barreto), nascido e criado na região exerceu grande influência sobre a população.187

O trabalho de massa era o ponto de partida para a formação da coluna guerrilheira, parte da estratégia revolucionária do MR-8. A formação de grupos táticos regulares que tiveram rápido funcionamento em municípios próximos a Brotas de Macaúbas, como Seabra, era uma parte deste processo.

Nossa visão de campo é uma visão que levava em conta o que a gente chamava que não abandonava a idéia da coluna guerrilheira, estratégica e tradicional, que seria o grande eixo da revolução brasileira, a revolução armada da luta revolucionária. Mas a gente achava que para chegar na coluna guerrilheira existiam muitas etapas anteriores, inclusive uma que era a mais importante que era a que a gente chamava de ‘formar os grupos táticos regulares’. 188

A pretensão da organização era simultaneamente construir grupos regulares nas diversas regiões, ganhando a simpatia dos trabalhadores e em uma década desencadear a coluna guerrilheira, como destacou João Lopes Salgado:

A coluna estratégica vai ficar sendo arrumada aí durante dez anos, enquanto esses grupos vão acumulando força, ganhando a simpatia e a confiança dos trabalhadores. Porque na verdade o que os trabalhadores nunca tiveram no Brasil foi confiança na luta armada, nunca apresentamos isso para eles. Nunca teve uma organização que apresentasse para o movimento operário camponês uma opção. Essa aqui é viável? Entendeu?! E esse momento em que tudo estava regulado no Brasil inteiro, ou pelo menos as regiões

187 Jornal Resistência, ano 4, série 2, n.1, p. 2-3, fev. de 1972.

estratégicas principais, tivessem acumulado bastante força, bastante respeito, aí sim, a gente partiria para a coluna guerrilheira.189

Zequinha e Lamarca se integraram no cotidiano da população com pequenas atividades educacionais, como a alfabetização dos camponeses, numa escola construída em um mutirão que envolveu trabalhadores rurais e os revolucionários. Luiz Antonio Santa Barbara, militante do MR-8 que também havia sido deslocado para a região, era o responsável pela escola. Nesse período, existiu inclusive um caderno semanal que tratava da condição do camponês, estimulando sua participação na luta contra o poder.

Como instrumento de educação, editávamos um caderno de educação, o ‘Luta camponesa’, que tinha um caráter formativo. Saía semanalmente e partia do horizonte ainda restrito dos camponeses, para ir ampliando aquela visão menor para a visão maior da guerra revolucionária. Como a maioria dos habitantes era analfabeta, agíamos em dois níveis. Primeiro lendo e discutindo muito pacientemente cada parágrafo, sempre exemplificando com fatos existentes no horizonte intelectual do camponês. Conseguimos eliminar quase completamente a situação professoral e pedagógica neste tipo de relacionamento. O fato do trabalho conjunto estreitava a amizade e confiança dos camponeses, proporcionando-lhes uma participação menos inibida nas reuniões. Concretizavam sua participação no movimento, aplicando-se às tarefas com grande zelo, conseguindo ler com pouco tempo de aprendizado e aplicando rigorosamente à sua vida diária os temas discutidos.190

As atividades formativas começaram a dar resultados. Os moradores das comunidades mais próximas passaram a circular no espaço da escola. Feiras, partidas de futebol, festas e brincadeiras faziam parte do ambiente, reforçando os laços entre os revolucionários e os camponeses.

A escola passou a ser um ponto de reunião de toda população nos seus momentos de folga. Assim, desde as crianças aos velhos, passaram a ter uma vida que diariamente os levava a se reunir naquele ambiente que eles construíram coletivamente. As festas passaram a ser lá e até o campo de futebol foi puxado para as proximidades da escola. É muito comum a população de outros lugarejos se concentrar numa ou noutra área, para festas que incluíam uma feira extra, jogo de futebol (baba), arrasta pé, comida e etc. Um fim de semana em Brundué, outro no Buriti, na lagoa, no Rio do Peixe, Saco D’Anta, Palmeira, Zabelão e etc., e sem muito critério de revezamento se repetiam num local na dependência só de ter o que comer naquele lugarejo.191

As atividades formativas colaboravam com o amadurecimento político da comunidade. A escola virou o ponto de encontro para o convívio coletivo e o debate permanente. Para além das atividades na escola, o teatro foi outra maneira de contribuir para o amadurecimento político da comunidade. Lamarca escreveu uma peça que tratava da

189 Ibidem, p. 18.

190 Jornal Resistência, ano 4, série 2, n.1, p. 2-3, fev. de 1972. 191 Ibidem , p. 5.

realidade local e do comportamento da população. Santa Barbara foi responsável por dirigir o espetáculo que tinha como atores trabalhadores locais que relatavam, através dos personagens, as condições de vida da população local.

Na peça procuramos ligar os impostos extorsivos e ausência de qualquer assistência à região; mostrar a injustiça daquela situação de pobreza agravada pelos impostos; caracterizar a truculência e a violência feita no ato da cobrança por um fiscal ladeado por dois policiais de metralhadora.

Em pouco tempo, a população incorporou o diálogo vivido pelos personagens e participava ativamente dos ensaios todas as noites, dizia que a peça era do Buriti para os outros lugarejos. O dia da apresentação materializou o estreitamento de relações entre trabalhadores rurais e os revolucionários. A arte ganhou ares de engajamento político.

O dia da apresentação se transformou num dia de consagração, para os moradores e para nós. Para eles, porque concretizava mais uma criação coletiva; para nós, porque víamos comprovada a força da construção coletiva e a intimidade da população com os primeiros passos do trabalho revolucionário. Como a idéia do teatrinho da massa havia entusiasmado e influenciado outras áreas, discutíamos um aprofundamento do nível de novas peças e sua extensão.192

Mesmo com muitos obstáculos, o trabalho rural do MR-8 apresentava avanços em relação à prática da organização nos centros urbanos. O elemento central era a formação política permanente e o enraizamento na comunidade, que teria como desdobramento a guerrilha em médio prazo. Além disso, expressou uma nova leitura sobre as condições da luta contra a ditadura, mesmo que de maneira embrionária.

Poucos meses após o início do trabalho político na região, Zequinha, Lamarca e Santa Barbara foram descobertos pela repressão. Com a ajuda de um militante do MR-8 de Feira de Santana, apelidado de “Pacote”, que passou a colaborar com a repressão, começou uma das perseguições mais violentas da história recente do Brasil.

A morte de Lamarca e Zequinha encerrou as ações armadas do MR-8 no país. O balanço sobre o desfecho do trabalho em Brotas de Macaúbas indicou o completo isolamento social e político em que se encontrava a esquerda. Resultado disso foi o aprofundamento da autocrítica ao militarismo. “Inconsciente desde o começo, o projeto de guerrilha rural se esfumava. Os dirigentes do MR-8 migraram para o exterior e, através de discussões e rachas no exílio, reciclaram a organização já definitivamente afastada da perspectiva de luta armada”.193

192 Idem, p. 5.

193 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São

O novo já nasce velho. A realidade se encarregou de mostrar o grau de isolamento em que se encontravam as organizações de esquerda armada e mesmo a aposta numa alternativa menos militarista se mostrou ineficaz. Derrotada militarmente numa guerra desigual, a direção nacional do MR-8 saiu da incipiência e aprofundou seu olhar crítico e autocrítico sobre a realidade da luta revolucionária no Brasil.