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Pode-se identificar, segundo Costa (1978, p. 177), de modo esquemático, até os anos 1960, três grandes tendências de análise da sociedade brasileira; em sua vigência, elas enformaram as investigações e as inquietações das gerações de intelectuais sobre o Brasil, e se disseminaram como concepção geral e imaginária da brasilidade. A primeira nasceu no século XIX e se estendeu até o fim da Segunda Guerra Mundial; em seu interior situam-se desde o projeto romântico até o modernista, e sua maior expressão é a tentativa de definir o “caráter nacional brasileiro”, através de explicações da natureza brasileira pela raça, meio e geografia. Segundo Chauí (2000, p. 21), “território, densidade demográfica, expansão de fronteiras, língua, raça, crenças religiosas, usos, costumes, folclore e belas artes foram os elementos principais do “caráter nacional”, entendido como disposição natural de um povo”. A segunda tendência emergiu em meio ao otimismo e as profundas transformações dos anos 1940 e 1950; enquanto as explicações naturalistas caiam em descrédito, ela atribuía à coexistência de realidades díspares, opostas e inconciliáveis a principal característica do Brasil: o “modelo dualista” operava pela busca de oposições. E a terceira caracteriza-se por assinalar a dependência econômica como elemento primordial na construção do Brasil moderno,

e demarca a especificidade do capitalismo brasileiro – especialmente no caso de Florestan Fernandes: o “modelo da dependência” emerge com a débâcle do populismo que começa com o golpe militar de 1964.

Assim, nos anos 1950, o modelo dualista procurava explicar a realidade brasileira não mais pela raça e pelo meio, mas sim através de oposições binárias, cuja coexistência conflitante assinalava a sua principal característica: entre o atrasado e o moderno, o rural e o urbano, a agricultura e a indústria, a sociedade brasileira encontra-se dividida, dilacerada por interesses antagônicos, porém contemporâneos. Segundo Costa (1978, p. 177), a principal implicação desse modelo, tanto para a análise sociológica quanto para a política, reside em atribuir a cada um dos elementos dessas oposições a ação de um grupo social específico, que é então caracterizada de acordo com a sua orientação em relação à mudança histórica. De um lado, foram considerados reacionários, tradicionalistas ou conservadores, os proprietários de terras e os camponeses, acorrentados à terra e ao passado; de outro, foram designados como progressistas, os empresários e os trabalhadores, considerados como os agentes sociais impulsionadores da modernização e do desenvolvimento social e econômico. Em conseqüência, afirma a autora,

[...] todos os movimentos reformistas que ocorreram no Brasil desde o século XIX em política, literatura ou arte – a Abolição da Escravidão, a Proclamação da República, o “tenentismo”, “o modernismo”, a Revolução de 1930 – foram atribuídos à burguesia. As crises nas áreas tradicionais, os movimentos messiânicos, por exemplo, foram encarados como resultantes da repentina desagregação da ordem tradicional efetuada pela modernização. E sempre que um grupo “moderno” não se comportava de acordo com as expectativas do modelo – quando os trabalhadores brasileiros pareciam “muito passivos”, os industriais brasileiros não tão ativos quanto “deveriam” ser, ou ainda a visão de mundo da classe média “muito aristocrática” – esse comportamento “inquietante” e “inadequado” era visto como uma sobrevivência dos padrões tradicionais. Os trabalhadores provinham de áreas rurais e ainda não estavam “preparados” para desempenhar o seu papel no mundo moderno. Os industriais e as classes médias ainda se

encontravam sob a “influência” da aristocracia. (Costa, 1978, p. 177)

Essa maneira de compreender a realidade brasileira e seus agentes sociais coincide com o período inaugurado pelo fim da Segunda Guerra Mundial – a Era de Ouro do capitalismo, segundo Hobsbawm (1999). De fato, não só nos países “centrais”, mas em grande parte da “periferia” do capitalismo, observam-se mudanças drásticas, relacionadas à industrialização, à urbanização e ao aumento populacional, que se distribuem de maneira desigual tanto no interior dos países “periféricos” quanto em relação aos países “centrais”. Nestes, sobretudo, observa-se um acentuado crescimento econômico aliado à expansão tecnológica, uma melhora considerável no nível de vida e nos padrões de consumo. Nos anos 1950, como mostra Hobsbawm, o fantasma dos anos de crise do entre guerras já havia sido há muito afastado, embora “[...] só depois que passou o grande boom, nos perturbados anos 70, à espera dos traumáticos 80, os observadores [...] começaram a perceber que o mundo, em particular o mundo do capitalismo desenvolvido, passara por uma fase excepcional de sua história; talvez uma fase única”. Ao mesmo tempo em que crescia a economia, expandiam-se os regimes políticos que se colocavam sob a rubrica da democracia – como o Brasil. Além disso, as profundas, súbitas e sísmicas transformações históricas atingiam o globo inteiro, de tal modo que “para 80% da humanidade, a Idade Média acabou de repente em meados da década de 1950; ou talvez melhor, sentiu-se que ela acabou na década de 1960. (Hobsbawm, 1999, p. 283) Entre as principais mudanças desse período, ocorrem a) o declínio do campesinato – a mais impressionante e de longo alcance, que estabelece uma cisão definitiva com o passado; b) a ascensão da juventude – tanto como grupo social que toma consciência de si, quanto como crescimento de estudantes e de sua atividade política; c) as mudanças na classe operária – principalmente em sua composição e na crise dos movimentos sociais e partidos que se baseavam nela; d) a ampliação da participação econômica, política e cultural das mulheres – tanto em termos do mercado de trabalho quanto dos movimentos sociais e do feminismo. Contudo, os anos 1950 foram não só um período de prosperidade e euforia, mas sobretudo de disputas e definições, especialmente com a instalação da Guerra Fria – a divisão geopolítica do mundo, e todas implicações a ela ligadas, especialmente as que irromperam nos anos 1960 – da qual voltaremos a falar.

No caso do Brasil, os anos 1950 foram marcados pelo otimismo que precedeu o fim do período ditatorial, a instalação do regime democrático, e os auspícios da industrialização e do desenvolvimento que prometiam suprimir as diversas e profundas desigualdades econômicas, sociais e regionais, e colocar o Brasil no patamar dos países desenvolvidos. Acreditava-se que o desenvolvimento era uma estrada aberta inclusive para os países de passado colonial – como parecia mostrar o caso dos EUA – e que bastava cumprir “apenas” algumas etapas para alcançar o status de nação desenvolvida. Assim, “o modelo dualista não era nada mais do que a formalização teórica de uma experiência coletiva”. (Costa, 1978, p.178) Mais ainda, pode-se afirmar, por um lado, que o modelo dualista expressava a tentativa de cristalizar a aparente conciliação entre as classes sociais que fora engendrada pelo populismo de Vargas; por outro lado, ao associar-se ao nacionalismo, tornou-se praticamente universal nesse período, desde em setores que proclamavam a aliança com o capital internacional, até no seio do Partido Comunista, em sua concepção de revolução.

Com efeito, desde a Revolução Russa, a expansão do comunismo absorveu as demais tradições revolucionárias ou as relegou às margens de movimentos radicais, e tornou-se predominantemente a principal corrente revolucionária do século XX – lembre-se que o Partido Comunista Brasileiro surgiu nesse processo. A enorme ascendência dos Partidos Comunistas sobre os movimentos sociais de todo o globo somente foi colocada em questão no final dos anos 1950; até então, sua hegemonia é praticamente inconteste, assim como o que preconizava para a “transformação social revolucionária”. Nesse sentido, desde o VI Congresso da III Internacional Comunista, em 1928, países como o Brasil eram classificados como “semi-coloniais”. A partir disso, a linha política exaltava o caráter progressista da “burguesia nacional” e apregoava a aliança entre ela e o proletariado contra a aristocracia rural e as forças conservadoras, ligadas ao imperialismo; disso seguia que a resolução dos problemas nacionais ocorreria pela via pacífica, através da etapa “democrático-burguesa” da revolução – antiimperialista e antifeudal; somente depois de cumprida a primeira etapa é que se poderia seguir a segunda, então socialista. A partir dos anos 1960, como mostra Ridenti (1993, p. 30), as divergências nas esquerdas crescem, especialmente com a derrota sofrida em 1964, e a fragmentação dos diferentes grupos, e colocam em cheque não somente essa concepção da revolução brasileira, mas principalmente os meios de realizá-la – isto é, a luta armada.