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Busca de uma definição para a justiça

A TEORIA DAS VIRTUDES NA VISÃO DE PLATÃO

2. Busca de uma definição para a justiça

O início do Livro II exibe uma cena dramática em que Trasímaco se mostra quieto e passivo, fazendo agora o papel de espectador diante da inquietação de outros personagens que entrarão em cena. O primeiro será Glauco, que se revela inconformado com a discussão entre Sócrates e Trasímaco. Para ele, nenhum dos dois conseguiu definir a justiça. Na verdade, a própria defesa de Sócrates sobre a justiça já deveria conter sua definição, o que não foi concretizado. Para demonstrar que Sócrates não definiu nem provou em seu argumento que a justiça é melhor que a injustiça, Glauco classifica, então, a noção de bens em três distintas categorias e pergunta a Sócrates em qual das três alternativas se encontra a justiça:

a) bens que almejamos possuir por si mesmos e não por suas conseqüências, ex: alegria, prazeres inocentes;

b) bens que desejamos tanto por si mesmo como por suas conseqüências, ex:

conhecimento, a saúde;

c) bens que não desejamos em si mesmos, mas pelas conseqüências, ex: vantagens monetárias ou de qualquer natureza que nos possam proporcionar

(357b-d).

Sócrates coloca a justiça na segunda alternativa146, mas Glauco adverte que a maioria não a concebe por esta via; a terceira opção seria a escolhida. A noção de justiça, para a maioria das pessoas, se encontra na terceira classe, aquela que se refere aos bens que se almeja somente pelas conseqüências. Evidentemente, Sócrates não concorda com esta concepção, uma vez que a justiça não pode ser vista como conseqüência de alguma coisa, do contrário, seria o mesmo que considerá-la um meio, um instrumento para se atingir algo. A justiça deve ser concebida primeiramente como um bem em si mesma. Sócrates começa sua resposta conversando com seus interlocutores que, num segundo momento, são os irmãos Glauco e Adimanto.

Glauco não se conformou com o desfecho da discussão entre Sócrates e Trasímaco quanto à defesa da justiça e da injustiça, mesmo porque a vitória aparentemente havia sido de Sócrates, pois Trasímaco se isolou da discussão. Glauco, então, faz algumas objeções ao argumento socrático a partir da seguinte premissa: a justiça, segundo sua opinião, não foi devidamente defendida. Sócrates somente exaltou suas conseqüências por estarem relacionadas a alguma arte. Glauco quer saber o que é a justiça e a injustiça em si mesmas e a força que cada uma tem quando presente na

146 Ao se pensar a justiça como um bem que é desejável por si mesmo tanto quanto por suas

conseqüências, alguns comentadores tais como Julia Annas justificam que esta alternativa escolhida por Platão trata-se de uma mistura confusa de razões morais e não morais no que diz respeito a ser justo. Ora, toda concepção consequencialista tem como alicerce o utilitarismo, “segundo a qual uma ação é justa se ela maximiza a felicidade, mas numa argumentação consequencialista a justificação moral só provém das conseqüências, evidentemente isto tende a negar a afirmação que uma coisa tenha em si mesma um valor moral”. Se a assertiva platônica fosse analisada por estas correntes modernas da filosofia moral, tanto a argumentação consequencialisrta como a deontológica (que concebe bens desejáveis em si mesmo sem levar em conta as conseqüências) não poderiam conviver juntas devido à natureza específica de cada uma. Porém, a discussão por esta via talvez não seja pertinente pelo fato de que a teoria platônica não pode ser forçada a se enquadrar em modelos atuais. ANNAS, J. Introduction a la République de Platon, P.80-81.

alma (358b). Para provocar posteriormente a argumentação de Sócrates, Glauco começa sua defesa da injustiça estrategicamente nos seguintes passos: a) resgatou a concepção de Trasímaco começando por definir a justiça a partir da sua origem, como um pacto social. O pacto, que é necessário para garantir a segurança dos sujeitos sociais para que eles não fossem vítimas das injustiças alheias147, é resultado de uma insegurança generalizada. Garantido pela lei, o pacto é a transmutação em lei do que é a natureza da justiça. Isso, no entanto, não quer dizer que a justiça seja amada como um bem. Ela é necessária e tolerada por serem os homens impotentes para a injustiça (359 a).

a) Então, se a prática da justiça é conduzida por contrato e punição, isto significa que a injustiça é melhor que a justiça, segundo Glauco. A proposição é elucidada pelo “mito de Giges”. A ilustração de Giges serve para mostrar a questão do “ser” e “parecer”, ou seja, ser justo não traz vantagem nenhuma, mas o que verdadeiramente se deve levar em conta é o parecer justo. O homem justo somente o é por questão de necessidade. Se ele se encontra em situação de impunidade, tornar-se-á injusto; contudo, parecer justo é mais vantajoso do que ser verdadeiramente. Aquele que demonstra ser justo, mas não o é de fato, pode levar uma vida de injustiças bem melhor se for às escondidas, enquanto aquele que é verdadeiramente justo, mas não demonstra ser, sua vida não se torna vantajosa perante os outros, quando ele não passa essa impressão. O “parecer” para Glauco é tão importante que foi ilustrado o exemplo de dois tipos de vida: aquele homem injusto que parece justo é o que manipula bem

147 PLATÃO República, 358e – 359 a-b, Glauco em seu argumento continua apelando para as

conseqüências da justiça, assim como Sócrates, segundo sua versão. Na verdade, a idéia do pacto seria um comum acordo entre os homens ao viverem em permanente estado de insegurança, em que a partir de então comece a imperar a lei como uma forma de inibir ou coibir a ação voluntária de possíveis agressões de todos entre si. O pacto é a segurança e garantia de uma vida tranqüila, pois cada um se privará da posse do seu próprio poder em nome do bem-estar da maioria.

as artes das malfeitorias, ou seja, deve ser hábil o suficiente para poder reparar algum engano e nunca ser exposto ao flagrante. O outro, o homem justo que parece injusto sempre acaba de forma trágica: perseguido, torturado ou mesmo morto. O exemplo do próprio Sócrates se enquadra nesta perspectiva visionária de Glauco, assim como os irmãos Polemarco e Lysias, que foram vítimas dos trinta tiranos pela má aparência da justiça.

O mito de Giges serve para mostrar que a justiça não é um bem em si; ela é necessária, mas todos a praticam por coação, devido ao fato de serem inaptos à injustiça (359b).

Após as considerações de Glauco, Adimanto ainda não satisfeito com o elogio que seu irmão Glauco havia feito à injustiça, intervém na discussão. Ainda complementa a tese do irmão ao afirmar que a injustiça em si mesma não é um mal e algumas coisas que se consideram justas se tornam males inevitáveis, tais como o medo da punição ao se aceitar a justiça por medo dos castigos dos deuses ou da retaliação causada pelo próprio homem (367 a). Adimanto conclui seu discurso fazendo um elogio à injustiça pelas conseqüências negativas da justiça, segundo sua concepção. Todo aquele que tem como referência de vida a justiça, acabará sempre em desvantagem com relação ao outro que é injusto (366 e – 367b). Adimanto deseja que Sócrates faça uma defesa que justifique a necessidade da justiça, no que diz respeito a ela própria e suas conseqüências, enquanto Glauco manifesta-se interessado numa defesa de caráter deontológica (desejo da justiça por si mesma), mas isso não significa objetivos que se oponham. Na verdade, tanto um quanto o outro deseja uma defesa que não evidencie uma mera aparência da justiça, embora cada um se expresse sob aspectos diferentes.

A defesa da justiça que Sócrates vai proferir segundo as exigências de seus interlocutores seguirá a busca do que seja justiça em si mesma, independentemente das conseqüências que dela possa ser gerada, porque ao

se encontrar a natureza da justiça, segue-se necessariamente que a escolha que se faz refletirá o sentido de que ela se basta por si só (tese da suficiência), embora não se possa deixar de pensar numa conclusão: ela deve beneficiar a todos (tese da necessidade em que a justiça é necessária, mas não suficiente para a felicidade).

A relação justiça e felicidade leva a pensar que Platão advoga a tese de que justiça é um componente essencial, mas não suficiente para a felicidade. Se a justiça é um componente, significa dizer que é uma parte ‘x’ de um todo que é a felicidade. A justiça seria similar a um órgão vital ‘x’ de um corpo que é essencial ao bom funcionamento deste, mas não suficiente para preencher todas as funções. Mesmo querendo afirmar que o homem justo é mais feliz que o injusto, não quer dizer que a felicidade esteja presente em todas as situações da vida do justo, mas se refere ao fato que a felicidade possui componentes que não são assegurados pela justiça. Glauco dá exemplos que se reportam ao homem justo, que, por alguma razão, é visto como injusto e sofre danos e torturas (361c). Logo, a justiça não é suficiente para a felicidade, embora ao começar sua defesa a favor da justiça, Sócrates descreva o surgimento de uma cidade para demonstrar a origem da necessidade que os indivíduos têm uns para com os outros. A base do argumento tem como referência a assertiva que revela que nenhum indivíduo se basta a si mesmo, ou seja, todos precisam de ajuda mútua para construir um bem estar social. Isto significa que a finalidade da cidade ideal é a felicidade de todos, mas com base sólida na justiça.

Contudo, o início da defesa se dá de maneira indireta, pois o que havia sido proposto era a definição da justiça e sua manifestação na alma do indivíduo, porém Sócrates não fala do indivíduo. Ele se refere sempre à cidade como se não tivesse uma idéia clara do que fosse a justiça na alma

do indivíduo148, por isso vai traçando um perfil do modo de vida de uma comunidade elementar. Na verdade, Sócrates está buscando demonstrar todo o processo de construção de uma cidade e imagina, por meio de observação da situação econômica de seu tempo, as condições para que uma tal sociedade possa existir. Ao fazer sua conjectura, parte de um tempo imaginário em que os indivíduos não mantinham vínculos sociais e alimentavam-se frugalmente, não havendo ainda a necessidade de acúmulo de riquezas, nem competições. Glauco, no entanto interrompe-o ironizando a forma simplória de vida que Sócrates descreve, afinal, num estado assim, como se manifestaria a justiça ou a injustiça? A descrição passa, então, para uma segunda etapa em que as relações se ampliam a tal ponto que comportam a entrada de bens de consumo destinados aos indivíduos para que eles se sintam confortados e consumam cada vez mais, pois os produtos, paulatinamente, irão sofisticando-se dando vazão ao luxo, que é o gosto pelo conforto.

O luxo instalar-se-á quando os homens descritos por Sócrates não mais se conformarem com o necessário para a sobrevivência, buscando, então, os excessos, tais como: lugares e móveis confortáveis para fazerem suas refeições e, após, poderem saborear uma bela sobremesa e outras iguarias. Além do que, produzirão outros artefatos para a vaidade pessoal como belas vestimentas, calçados e perfumes, além de importarem ouro e marfim. Surgirão as classes de imitadores e dos músicos, poetas e atores, dentre outras, para o deleite do espírito. Conseqüentemente, ocorrerá a

pleonexia, gerada pelo acúmulo de bens e riquezas, levando alguns a

terem mais do que outros. Com o luxo, também ocorrerão as doenças originadas pelo excesso, tornando-se necessária a presença do médico, além dos pedagogos, que terão a missão de ensinar as crianças, e, para

amenizar as situações de violência interna e segurança externa, é preciso um comando político e militar com um exército forte (373 – 374 a).

A sociedade elementar é descrita por Platão como uma sociedade de especialistas, ou seja, cada um procura fazer uma tarefa específica para suprir da melhor maneira suas necessidades. A base da especialização é fazer com que as diferenças se complementem numa relação de cooperação entre indivíduos que contribuem para a cidade (âmbito social) e a cidade para eles. O resultado da cooperação é a harmonização da cidade, pois Platão pensa o homem essencialmente como um ser social. Seu lugar natural é viver em associação com o outro, porque ninguém é auto suficiente (369 b-c) e todos precisam desenvolver seus talentos, sendo isto possível somente em sociedade. Os talentos são diversos porque as pessoas possuem naturezas múltiplas, logo terão necessariamente interesses e desejos diversificados. Nos diálogos socráticos, a virtude = saber e os desejos são vistos como desvios que precisam ser dominados. Na

República, Platão abandona esta visão intelectualista e admite, em prol da

efetivação da justiça na cidade ideal, o elemento não-cognitivo (emoções, desejos), porque é ele que propicia o homem ser conduzido à ação. Veremos, a seguir, de que maneira isto se realizará. Quanto à diferença de naturezas, há uma divisão em três tipos: amantes do dinheiro; amantes da honra e amantes do saber. Cada tipo possui finalidades diferentes e são governadas pelas três partes da alma: concupiscível (apetite); irascível (aspiração); racional.

Após a referida necessidade de classes especializadas na forma de vida elementar e na progressiva cidade ideal, teremos em continuidade (livro III) a descrição de como deve ser a melhor forma de educar os cidadãos. Começaremos pelos guardiães que salvaguardarão a cidade. As características principais que devem ser evidenciadas serão a docilidade para com os idênticos e a ferocidade para os estranhos (comparação com

cães de raça que reagem docilmente ou ferozmente de acordo com o conhecimento que tem da pessoa) em 375a. Platão possivelmente queira demonstrar que o desejo de conhecer seja próprio de todo animal dotado de inteligência149.

A educação dos guardiães começa a ser detalhada a partir do Livro II, mas não será uma descrição de competências técnicas ou baseada em informações meramente teóricas, mas uma educação que possibilite uma visão de classe ou de mundo pela via da moralidade. Todas as classes terão especificamente uma visão daquilo que é pertinente a ser produzido, sem perder a noção da totalidade.

O livro II termina com um delineamento do sistema educacional platônico. Neste esboço, há uma discussão sobre as artes, e de forma mais específica sobre a poesia. Em seguida, Platão dá o seu veredicto: a poesia que representa uma expressiva forma de educar as crianças é questionável, no sentido de fazer com que elas internalizem valores morais deseducadores, especialmente as fábulas de Homero, que se configuram como cultura popular e são passadas pelas mães ou amas. Eram estórias consideradas bizarras, pois relatavam conflitos entre deuses e homens, ou entre os próprios deuses. Para Platão, isso é uma manifestação de impiedade, portanto devem ser banidas da educação dos cidadãos.

A educação dos guardiães e dos dirigentes tem como objetivo a boa formação do corpo e especialmente da alma, pois a finalidade é torná-los conscientes de seus papéis, o que compreende a boa condução da política e todos os elementos que levam ao bem-estar do Estado. Qualquer interesse individual deve ser suprimido em nome desse todo. O final da descrição em 412 b da educação dos guardiães, serve para demonstrar que são os mais

149 ANNAS, J. Introduction à la République de Platon, P.104-105 – Na verdade, o exemplo e

comparação dos guardiães com os cães é somente uma imagem para ilustrar o tipo de comportamento que deve ter o guardião. Todas as classes serão educadas segundo os preceitos da filosofia, de tal forma que não cabe no processo educativo de fato, qualquer tipo de metáfora ou recurso ao senso comum.

velhos, os dirigentes que estão mais aptos a governar o Estado com seus auxiliares (os guerreiros - epikouroi ). Os guardiães são considerados a proteção ou a ousia da cidade, a substância no sentido de propriedade, embora o sentido mais geral da palavra seja o de designar a essência de uma coisa150.

Os governantes propriamente ditos (philakes) administrarão os interesses da cidade, pois possuem a tarefa de fazer crer com uma “nobre mentira”, ou seja, um mito que os outros cidadãos pertencem a diferentes classes porque contêm desde o nascimento constituições diferentes em suas almas, embora tenham nascido da mesma mãe (terra). A crença deve servir para que todos aceitem suas próprias condições por questão de natureza, de forma que ninguém passe a desejar estar em outro lugar que não o seu. Por

conseguinte, nenhuma classe deve ser mais rica que outra para que não haja cobiça entre si. Todos são responsáveis e devem prezar pela felicidade do Estado (420 b-d).

No livro IV está contida a resposta que Platão quer