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Côncavos: taquígrafos e o registro de oralidade

CAPÍTULO 5 – CÔNCAVOS E CONVEXOS: Os espelhos da metarretórica

5.1 Côncavos: taquígrafos e o registro de oralidade

O serviço de estenografia no Congresso Constituinte foi realizado por particulares. Examinando o Regimento do Congresso identificamos, segundo o Art. 13, que “as atas das seções, que serão escritas, sob sua [2°. Secretário] inspeção, por um dos oficiais da Secretaria, o qual para esse fim terá na sala uma mesa especial, em lugar que for designado”2

. Ao que tudo indica esses oficiais da Secretaria se compunham dos profissionais da taquigrafia. Pela ausência de informações sobre essa atividade, as investigações sobre a atividade taquigráfica podem ser pesquisadas principalmente a partir do próprio registro textual.

Passamos a apresentar o uso de uma de suas atribuições, quando o estenógrafo registrou as circunstâncias em que seria lida a Mensagem de Deodoro da Fonseca ao Congresso Constituinte:

O Sr. Presidente declara que se acha em uma das ante-salas o Sr. Secretário do chefe do Governo Provisório, portador da Mensagem dirigida ao Congresso Nacional pelo mesmo Sr. Chefe do Governo Provisório, Manoel Deodoro da Fonseca, e convida os Sr. 3°; e 4°. Secretários à introduzi-lo até a mesa.

Apresentada e recebida a Mensagem, o Sr. Presidente convida o Sr. 1°. Secretário a lê-la.

Procede-se à leitura da seguinte Mensagem, que é, por ordem da mesa, imediatamente distribuída em avulso aos membros do Congresso.3

2 Annaes do Congresso Constituinte da República, vol. I, p. 306. 3

O registro do taquígrafo extrapola a grafia dos discursos e abrange uma descrição espacial e ritualística. Salta aos olhos nessa descrição, a ritualização que envolve a leitura da Mensagem, atestando seguramente uma herança do Império. Destaque-se: foram convidados o 3°. e o 4°. Secretários para buscar na ante-sala o Secretário Chefe do Governo Provisório. Se tratava de João Severiano da Fonseca Hermes, sobrinho de Deodoro.4 Tal cerimonial, atenuado em relação aos do Império, estava dialogando com as leituras da Fala Trono Imperial. Ao mesmo tempo que essa “escolta” revela a dignidade do convidado, que tem a honra de abrir os trabalhos, expressa a penetração em um espaço de poder autóctone.5

Era do 1°. Secretário a incumbência pela “leitura de ofícios e quaisquer outros papéis presentes à Mesa”6

, dirigida em voz alta para que o Congresso e o público que ocupava as galerias pudessem escutá- lo. E pela hierarquia de sua posição, presume-se que tal ato era digno e nobre.

Mas a atividade do ofício da estenografia foi bem diversa nesse caso do registro do discurso de Júlio de Castilhos:

Júlio de Castilhos – [...] fiz parte como soldado raso... Vozes – Não apoiado; como chefe. Outras vozes – E chefe de muito prestígio. Júlio de Castilhos – ... dessa cruzada[...].7

Percebe-se aqui o registro direto do discurso, acrescido de intervenções nominadas, intervenções não nominadas e das reações do público. Percebe-se pela ordenação das intervenções a explicitação de um discurso de humildade de Júlio de Castilhos e a não aprovação de tal postura por parte do Congresso.

4 Cf. MAGALHÃES JR., R., Rui o Homem e o Mito, p. 148.

5 Para o desenvolvimento do tema da continuidade das fórmulas e ritualizações na República ver os trabalhos que tratam do Império, especialmente: RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros,

Os Símbolos do Poder – Cerimônias e imagens do estado monárquico no Brasil, Brasília:

UnB, 1995; e, o trabalho clássico: TORRES, João Camilo de Oliveira. A Democracia

Coroada, Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. Esta última obra aborda o funcionamento do

poder legislativo e oferece alguns exemplos importantes da forma solene – as formulas retóricas usadas – utilizadas pelo parlamento, especialmente, que é o nosso caso, nas suas relações com o governo. p. 128-132.

6 Annaes do Congresso Constituinte da República, vol. I, p. 306. 7

Esse caso explicita os limites da presença da oralidade nas atas, quando não se sabe mais o que é estilo do redator ou transcrição estenográfica. O trabalho parece ser um pequeno recorte dos debates, e quando se trata do registro das reações do auditório, aprovando ou desaprovando, é desanimador perceber a quantidade de apartes pontuados sem a informação de suas autorias.

No discurso de Júlio de Castilhos estudado no capítulo anterior encontramos o equilíbrio de quatorze intervenções nominadas8 e quatorze não nominadas9. Das nominadas, duas intervenções foram a seu favor e onze contra; nas inominadas quatro foram contra e dez a seu favor. Tal equilíbrio transparece uma certa artificialidade para a valorização do orador, como pudemos verificar.

Vale destacar que o trabalho taquigráfico não era isento de interferências. Uma possibilidade reconhecida pela sistemática regimental, no Art. 30, era de que “qualquer membro do Congresso pode fazer inserir o seu voto na ata, sem motivá-lo, contanto que mande por escrito, podendo, porém, fazer inserir no Diário Oficial a sua declaração motivada de voto”10

.

Exemplo da distância entre a palavra falada e o discurso registrado, que se reproduz ao longo do Congresso, se deu na sessão ordinária de 6 de janeiro de 1890 quando, discutindo sobre a natureza da soberania, o Sen. Augusto de Freitas acusava o Sen. Amphilophio porque “não publicou até hoje o discurso que aqui proferiu” e “foi mais adiante, não permitiu que o redator dos debates desse no Diário Oficial o extrato do seu discurso”11

. As atas que chegaram até nós não foram registros isentos, eles passaram pela aprovação, correção e, por que não, adulteração.

O mesmo parece ocorrer no discurso de Rui Barbosa abordado no capítulo anterior. A dinâmica de seu discurso em relação às intervenções lembra uma conferência que ao final se abre para debates. As intervenções se iniciam somente a partir do parágrafo quarenta e três, lembrando em muito uma conferência literária. Cabe aqui lembrar o

8 Intervieram ao seu favor: Sr. Zama (2 vezes); Intervieram contra: Sr. Correia Rebello, Sr. Lopes Chaves, Sr. Ubaldino do Amaral (3 vezes), Sr. Campos Salles, Sr. Annibal Falcão, Sr. José Hygino (2 vezes), Sr. Serzedello (2 vezes), Sr. Presidente.

9 Intervieram ao seu favor: Voz (5 vezes), Outra Voz (2 vezes), Um Sr. Deputado, Um Sr. Representante (2 vezes); Intervieram contra: Um Sr. Representante (4 vezes).

10 Annaes do Congresso Constituinte da República, p. 308. 11

cuidado que Rui Barbosa tinha com os seus discursos, tanto no sentido de prepará-los como o de evitar qualquer publicação que não houvesse revisão intensa, ou mesmo o impedimento de que discursos que viessem à público fossem comprometê-lo.

Com relação às atas: “O próprio Rui guardou, no seu arquivo,uma carta de Fonseca Hermes, datada de 16 de fevereiro de 1890, na qual o secretário dizia: „Amanhã lá irei para combinarmos a ata da última sessão do Conselho‟.”12 Em 1901 veio à público pelo punho do Jornalista Dunshee de Abranches no jornal O Dia, uma série de atas de reuniões fechadas do Governo Provisório, que Rui Barbosa julgaria apócrifas.

A ata mais danosa à reputação de Rui é a que se refere à discussão posterior à lei de reforma bancária. [...] Na reforma bancária, o açodado Ministro da Fazenda criara, para regular as emissões, um Banco do Norte, com sede na Bahia; um Banco do Centro, com sede no Rio de Janeiro; e um Banco do Sul, com sede em Porto Alegre, ignorando inteiramente São Paulo. Todos esses bancos eram entidades privadas que o Governo Provisório, ou melhor Rui, cumulava de escandalosos favores.13

Na no discurso registrado de Rui Barbosa encontramos dezoito intervenções – onze intervenções nominadas14 e sete não nominadas15 – expressando bem o quão pouco dialogal foi o seu discurso quando comparamos com o de Júlio de Castilhos, três vezes menor e com quase o dobro de intervenções.