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c Personalização do produto (personalized format)

Se nos formatos anteriores os actores publicitários se encontravam mais ou menos desvalorizados, quer como simples apresentadores ou manequins (infor- mação-produto), quer enquanto estereótipos (imagem-produto), este formato vai impor uma valorização dos seus desempenhos que vai redundar numa ‘hu- manização’ da publicidade. As suas actuações integram-se principalmente no testemunho de uma relação com os produtos. Subjacente à sua performance também se encontra uma dramaturgia mais ou menos ‘narcisista’ com o pro- pósito de conseguir fazer reflectir o destinatário na representação. É nesta perspectiva que a publicidade se enriquece a partir da transferência para o universo dos produtos de toda uma gama de emoções sobre outros domínios

farm4.static.flickr.com/3262/3152768155_a21fa3d0e1.jpg?v=0 Figura no33

de experiência a partir dos quais se gera a afirmação das suas identidades (pes- soais).

Inerente a este formato publicitário encontra-se toda uma apropriação e adaptação das teses de Sigmund Freud sobre o papel do id, ego e do superego nas condutas humanas, mas também dos modelos da psicologia social, concre-

tamente os de Abrahan Maslow e Thorstein Veblen136. A publicidade, cons-

ciente dos mecanismos dos impulsos, das necessidades, latentes ou assumidas (de cariz físico, social e pessoal), das motivações e dos factores (culturais, sub-culturais, sociais, grupais e familiares) que regem os comportamentos, faz reflectir todo este background nas suas mensagens. Os actores publicitários admiram-se, exprimem inveja, têm medo, exibem orgulho, sofrem, mostram prazer, vivem a ansiedade decorrente da carestia ou da pobreza; enfim, o pro-

duto é fundamental na afirmação nas suas histórias de vida. . . (figura no33).

Salientamos que no âmbito desta formatação publicitária, as mercadorias e os serviços não são simples adereços neste quadro de afirmação humana. Adquirirem qualidades, sendo nesta perspectiva que a publicidade ganha a tal dimensão narcisista. Não só é importante que os destinatários reconheçam as suas necessidades nas propostas comerciais, mas que se revejam também, enquanto indivíduos, nos próprios produtos. O resultado desta dinâmica favo- rece uma diluição dos códigos dos produtos e das pessoas, até ao ponto má- ximo da antropomorfização das mercadorias. Sobre este assunto, verifique-se o fenómeno das mascotes publicitárias: o coelho da Nesquick, o Joe Camel da Camel, o Jaguar da Esso, o homem composto por pneus a fazer lembrar as pinturas de Giuseppe Arcimboldo, da Michelin, etc.

No que concerne ao fenómeno da ‘exaltação publicitária’, Georges Péni- nou concebe esta antropomorfização como o cerne que fundamenta as ima- gens de marca:

“Tratada en analogia con la persona, la marca herdará una psicologia y se incorporará a una história. Tendrá derecho a rasgos de carácter (la «per- sonalidad» de la marca) que salvaguardan su individualidad e impidan su reabsorción en el colectivo anónimo. Se la convidrá a participar en el in- tercambio de los hombres, como agente de la imagen que se les propone ambicionar o a cuya entrega se les convence; entrará en su património, par- ticipará en sus trabajos cotidianos, en el emblellecimento de los cuerpos, en la calidad de la vida”137

Salientamos que esta antropomorfização se assume como o fundamento de um retrato psicológico idealizado do próprio destinatário. A questão que nos surge agora é a de averiguar a natureza desse tal retrato: em que consiste, quais os seus contornos? Graças a Olivier Reboul (que, por sua vez, se fun- damenta num estudo de Dieter Flader, de 1976), suspeitamos do facto desse perfil psicológico pressupor, entre outras dimensões, uma regressão à idade infantil do próprio destinatário. Estará relacionada com a necessidade de os consumidores se sentirem seguros e amados e também com um sentimento de absoluta liberdade decorrente de um estilo de vida sem o peso das res- ponsabilidades ou das consequências dos actos. Curiosamente, este aspecto

regressivo da linguagem publicitária é característico de alguma propaganda revolucionária138:

“Es lohnt sich bestimmt (Sim, vale a pena!”), proclama o slogan, incitando a deixar de lado a angústia da dúvida, a entregar-se à voz paterna onisciente e onipotente. Lee match frei (“Lee é liberdade”); Lee já não é um objecto, calças banais, porém um ser personalizado que cuida de nós, e a liberdade que nos proporciona encontra o verdadeiro sentido no inconsciente: livra- nos da angústia de sermos adultos. Significa que todas essas mensagens, ao eliminarem o tempo e as relações causais, ao criarem uma fusão narcísica entre o objecto e o ego, jogam com a necessidade de regressão afectiva. Vê- se o mesmo fenómeno nos “revolucionários” de 1968; seus slogans mais fortes:

Sob a calçada a praia. É proibido proibir. Seja realista, peça o impossível. faziam parte da recusa de ser adultos.

Poder-se-ia retorquir a Flader que a sua explicação é parcial, pois há outras motivações além do retorno à infância; a liberdade de Lee talvez seja tam- bém a comodidade do corpo, a liberação sexual, a saída da infância (e não a volta a ela!).”139

(os itálicos são do autor)

No formato da personalização dos produtos, William Leiss et al identi- ficam algumas variações na significação das relações dos produtos com as pessoas. Salientamos que estas deverão ser sempre concebidas a partir do prisma da afirmação das identidades: a representação dos actores na publici- dade já não se encontra absolutamente ao serviço da promoção do produto, como acontecia no formato de informação-produto com os apresentadores, mas em nome da significação de um projecto de afirmação individual (felici- dade, segurança, prosperidade, etc.) mediado por mercadorias. Esta particula- ridade implicará a existência de papéis dramatúrgicos que são desempenhados

138FLADER, D. – Strategien der Werbung [Estratégias de Publicidade] Scriptor Verlag Kron-

bert/TS, 1976, apud: REBOUL, Olivier – Introdução à Retórica, p. 86.

por várias categorias de actores publicitários. A classificação que agora pro- pomos é da nossa autoria: i) o papel de testemunha; ii) o de herói; iii) o de Dr Jeckyll e, iv), o papel de amigo fiel.

i) No desempenho do papel de testemunha, o actor publicitário é alguém que relata o modo como superou um problema ou protagonizou uma situação de bem-estar pessoal ao consumir determinado produto. Relembramos que esta dificuldade está cada vez menos associada a uma interacção económica.

Na figura no34 propomos um anúncio ilustrativo desta tese.

www.esquire.com/cm/esquire/images/sexy-candy-ad-092310-xlg-49112127.jpg Figura no34

O papel de testemunha pode ser protagonizado por um artista pouco co- nhecido do público-alvo (mas suficientemente evocativo dos seus atributos para facilitar processos de identificação) ou, pelo contrário, por uma celebri- dade que ‘empresta’ o seu ethos para a credibilização da mercadoria: Eliza-

beth Taylor (figura no 35), Madonna, Catherinne Deneuve, Nicole Kidman,

Bárbara Guimarães, Fernanda Serrano, etc.

ii) A segunda variação dos papéis publicitários está ligada à emergência do herói: alguém que protagoniza uma história, evocando uma situação de sucesso com o produto ou através dele. O herói é um personagem idealizado,

media.photobucket.com/image/elizabeth taylor celebrities advertising/belldandy112/elizabeth-taylor-white-diamonds12.jpg Figura no35

dotado de uma gama limitada de atributos, procurando transferi-los para as mercadorias publicitadas. Por exemplo, a rudeza e a virilidade do cowboy da Marlboro ou o sex appeal da personagem de óculos escuros das campa- nhas da Three Red Dots da Martini. Os actores nestes anúncios representam campos de referência psicológica ou pessoal. Esta dimensão da personali- dade é complementada, por sua vez, por uma gestualidade ou por um look estilizado. Ressalvando as devidas distâncias, este herói publicitário é confi- gurativamente semelhante às personagens da Commedia Dell Arte. Como já referimos, a propósito da moda na publicidade,

“esta particularidade oferece grandes desafios para a actividade do próprio criativo publicitário e do estilista. O primeiro procurará conceber um su- jeito, alguém digno de personalizar o produto. Tanto será um ser humano (por exemplo, os irmãos Carls e Berg, a cigana da Gitanes), um animal (Joe Camel) ou uma figura mitológica (Pégaso no que respeita à Ferrari). Já o estilista terá de conceber um figurino, um look que seja evocativo do

seu carácter: despreocupado, descomprometido, sedutor, aventureiro, ma- nhoso, trágico, etc. O objectivo é o de fazer o espectador adivinhar instan- taneamente o carácter da mascote e indirectamente reconhecer a imagem de marca do produto a partir do traço vestimentar. Há aqui um trabalho de pro- dução de sentido através da roupa que é muito semelhante aos dos efeitos de sentido decorrentes dos figurinos teatrais, sobretudo dos da Commedia Dell Arte.”140

iii) A terceira variação da actuação publicitária remete para uma disposi- ção que é simétrica à da mitologia da dupla personalidade patente na obra de Robert Louis Stevenson, The Strange case of Dr Jeckyll and Mr Hyde sobre os fantásticos poderes de uma poção que possibilitava ao Dr Jeckyll transformar- se no homicida maníaco, Mr Hyde. À semelhança da beberagem naquele livro de terror, também o produto promovido no anúncio é uma espécie de poção fantástica que contribui para uma auto-transformação do actor publicitário, mas, desta vez, com contornos positivos.

O papel do Dr Jeckyll publicitário exige um protagonismo cujo epílogo redunda sempre numa derrota da fraqueza, do sofrimento, em suma, da vul- nerabilidade decorrente do empobrecimento, do envelhecimento, da doença, etc. Complementarmente à existência de actores publicitários que protagoni-

zam uma transfiguração através do produto (figura nov36) surgem também ou-

tros recursos (expressivos) interessantes: é o caso da polarização do discurso verbal no ‘antes’ e no ‘depois’, da representação iconográfica caracterizada por imagens de antecipação de situações mais ou menos idealizadas ou do re- curso a adereços, como é caso dos espelhos, que visam sublinhar a natureza psicológica da transformação.

Sobre os espelhos, William Leiss et al salientam que são adereços utiliza- dos para realçar uma relação de diferença relativamente a estados subjectivos

reais e idealizados141. Esta posição, na qual se repescam as teses de Jacques

Lacan sobre a fase do espelho, encontra-se aprofundada em Judith William-

140CAMILO, Eduardo J. M. – “A moda na publicidade: apresentações com estilo e o estilo

nas apresentações”, in: LUSOCOM – Comunicação, Identidades, Migrações e Culturas na Lusofonia. Anuário Internacional de Comunicação Lusófona. Lisboa, Intercom, 2005, p. 99- 100.

141LEISS, William, et al – Social Communication in Advertising. Persons, Products and

3.bp.blogspot.com/-VXuzGNgkjSk/TZCRLtEKDDI/AAAAAAAAAA0/CdI3AVAdKUM/s1600/vichyfn9.jpg Figura no36

son142 onde se discorre sobre a funcionalidade ideológica deste objecto na

publicidade, uma utilidade que remete para a gestão e para a afirmação de uma personalidade (mediada por uma mercadoria). O espelho na publicidade significa algo já perdido e que, por isso mesmo, se assume como a versão ide- alizada de uma identidade, estando associado à afirmação de um conflito (isto

é, de uma separação) entre o sujeito e a sua representação (figura no37).

O que é importante salientar no imaginário publicitário subjacente ao pa-

142WILLIAMSON, Judith – Decoding Advertisings. Ideology and Meaning in Advertising.

radigma do Dr Jeckyll & Mr Hyde é o fundamento de uma categoria de perso- nagem que impõe uma dramaturgia publicitária baseada na dicotomia do ego e da sua idealização.

rarebirdfinds.typepad.com/rare_bird_finds/images/ 2008/06/25/0000001295.jpg Figura no37

iv) A quarta e última variação do formato referente à personalização do produto exigirá outro tipo de desempenho de papel, que classificámos como sendo o do ‘amigo fiel’ por nos faltar uma designação mais adequada. Im- põe uma performance que já não está relacionada com a gestão da subjectivi- dade do destinatário, mas da sua identidade grupal, social. É o/a compincha

do grupo de amigos (figura no 38), o/a colega confidente, o/a pai/mãe extre-

moso/a, o/a amante insaciável, o/a capitão da equipa desportiva, o/a cônjuge, etc.

A sua existência concretiza-se num tipo de representação cujos contornos implicam uma abertura da publicidade ao mundo da vida social, no âmbito da qual os actores representam, ostentam e gerem publicamente estatutos e papéis sociais mediados pelas mercadorias. Por exemplo, a representação da

www.cyclone.net.au/folio/huffy/Huffy3.jpg Figura no38

família já não é determinada pelo agregado dos seus membros, mas igual- mente pela colecção de produtos que consomem e ostentam. As interacções humanas, familiares, íntimas, passam a ser protagonizadas pela aquisição e usufruto de certas mercadorias.