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c Pisada de elefante

No documento INEZ PEREIRA DA LUZ O CINEMA AUDIOVISUAL (páginas 135-137)

IV. 4 Veja esta canção

IV.4. c Pisada de elefante

Pisada de elefante, Jorge Ben Jor, é a única canção original do filme Veja esta canção. É um bem humorado poema concreto cuja síntese verbal/sonora traz a sugestiva imagem da amante, construída na repetição da metáfora: jararaca vaidosa, jararaca maliciosa, jararaca perigosa... ela está com pé quebrado, bem feito, foi pisada de elefante na voz/canto do Ben Jor. A carpintaria dramática e irônica do filme parece toda vinda da analogia cantada por Ben Jor.

O roteiro do filme foi livremente inspirado em Carmen, obras de Merimée e de Bizet e a construção da paródia é indiciada pelos nomes dos personagens: a protagonista é Lili, bailarina de uma boate/churrascaria da Tia Carmem, o José é o policial e o toureiro é substituído por um jogador de futebol. O filme tem início com um plano aberto onde vemos uma rodovia e de fora deste campo visual ouvimos um narrador esportivo de um programa de rádio: o mengão de Jorge Ben Jor... . A câmera em movimento aproxima de um posto policial onde o personagem José ouve o final do jogo do Flamengo. São as falas dos policiais que deixam claro a personalidade de José: policial honesto, fanático por futebol e apaixonado pela esposa. Corte para outras imagens que mostram os policiais, José e o amigo, indo pra casa, carro quebrado, chuva e a entrada na churrascaria da Tia Carmen, indiciada num velho cartaz. Todos esses índices formam o habitat dos personagens que compõem essa tragicomédia.

A canção Pisada de elefante, além de dar título ao filme, é tocada em um aparelho no palco para a protagonista dançar, constituindo o cenário da sedução. Conhecemos o ritmo das canções de Jorge Ben Jor e como elas agem sobre o corpo: as relações entre o tato e a audição são evidentes nas reações fisiológicas de pele e ouvido, e o corpo todo se movimenta. Os primeiríssimos planos apresentam Lili à platéia, reiterados pelo ritmo da canção. A câmera se afasta e num plano mais distante vemos a personagem que sai do palco dançando, para abordar José. O ritmo da canção é cúmplice do movimento rápido do corpo de Lili recortado em primeiros planos, enquanto as palavras da canção prevêem o desfecho da

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narrativa, cantadas na primeira pessoa num outro tempo: Castigo, castigo chega a todo instante, ela está com o pé quebrado, bem feito. É pisada de elefante . Ao abordar José, Lili é derrubada por ele e a canção é interrompida bruscamente, mudando a atmosfera de sedução. Os cortes secos da canção/poema são índices para a mudança de ação. Áudio e imagem separados e integrados dão continuidade à narrativa.

A canção Pisada de elefante é um funk exagerado que fala de vingança, castigo, num tom jocoso. O ritmo funk/soul iconiza a ginga e a sedução e a repetição das palavras jararaca, perigosa, maliciosa e vaidosa, é mote para a associação com a tragicomédia audiovisual neste curta metragem. O jogo sonoro e verbal da canção trata da relação ambígua entre a paixão e o ódio do ponto de vista do poeta, ambigüidade acentuada na ironia da voz e da levada de Ben Jor e pela repetição verbal que é pura sugestão visual.

A narrativa é construída por cenas sintetizadas e representa, de forma paródica, a dimensão trágica do mito Carmen. O desfecho da tragédia anunciada pela canção se dá no cenário do futebol, numa analogia à tradição da tourada do filme espanhol. Estamos diante de uma farsa onde se movimentam várias imagens cristalizadas: o futebol, o rádio, a tragédia de Carmen e a canção popular brasileira. O argumento nos remete ao arquétipo de Carmen, mas as sugestões trazidas pelos signos audiovisuais que representam esse drama de periferia, são de farsa, e esta é fornecida sobretudo, pelo ritmo e poema da canção de Ben Jor, indiciada pela fala do rádio.

A construção audiovisual da morte da protagonista no Maracanã acentua o tom de farsa. Na montagem final a ironia é reduzida e amplia a ambigüidade. Seqüência rítmica na qual a cena do assassinato é alternada com imagens e sons de batidas de tambor, decupadas em primeiros planos, corte para o plano aberto e distante de José com a Lili nos braços como uma Pietá, ao som do instrumental da canção, dá a verdadeira dimensão de uma tragédia e comédia áudio e visual.

O ritmo da canção Pisada de elefante, construído pela sonoridade conhecida do artista, e o poema falado, ao lado das imagens audiovisuais fazem da tragédia de Carmen envelhecida e rejuvenescida em Lili, uma convenção renovada, nos lembrando por meio dos signos de uma cultura universal e popular já assimilados e repetidos a exaustão que, há formas diversas de leitura. É a legitimidade do texto verbal (da canção, dos nomes e das cenas) que, muito mais do que comunicar a tragédia de Carmen/Lili, chama a atenção para a

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metalinguagem do filme. O procedimento paródico é construído com sutileza para criar uma falsa banalidade e um efeito de estranheza. Por um lado, temos as imagens visuais da tragédia de Carmen, entremeadas pelas referências culturais e construídas com verossimilhança (com direitos às cenas no estádio Maracanã), interpretação teatral e cenografia realistas e uma atmosfera que traduz certa melancolia. Por outro, temos o áudio a apontar tais referências culturais, e a canção que, ao mesmo tempo envolve e seduz, traduz de forma irônica o arquétipo da ópera/teatro que compõe o argumento do filme. A relação entre o áudio e o visual deixa claro a paródia, ao mesmo tempo que potencializa a dimensão poética e conceitual do episódio. A mistura de tragédia e comédia é equilibrada no contraste entre imagem e áudio, ao mesmo tempo o tom construído pela paródia realça o patético e causa o mal-estar e desconforto no espectador.

No documento INEZ PEREIRA DA LUZ O CINEMA AUDIOVISUAL (páginas 135-137)

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