• Nenhum resultado encontrado

Capítulo I Elementos procedimentais: Registros documentais e a construção de uma peça de

1.5. De cadernos de campo à peça de teatro

Ao resgatar os cadernos de campo escritos durante o período em que trabalhei como técnica, em um deles prevalecia a relação entre a escola e a medida socioeducativa de liberdade assistida em meio aberto. Como em várias outras situações presenciadas, o término da aplicação dessa medida socioeducativa tinha como condição a matrícula e a frequência escolar. Porém, naquela narrativa tanto o questionamento sobre tal obrigatoriedade como o desfecho do caso puseram mais em evidência uma aparente contradição entre o direito à escola e a sua corporificação como apenas mais uma formalidade, mais um dentre os inúmeros papeis a serem anexados ao processo para que fosse considerado concluído. Assim se deu a escolha pela personagem “Alguém” bem como qual seria o desfecho da peça de teatro: ela terminaria na audiência convocada pelo poder judiciário para averiguar as justificativas para a solicitação do término do acompanhamento, posto que as exigências da matrícula e da frequência escolar31, tão fortemente relembradas pelo sistema judiciário, não ocorriam dentro do esperado.

Com a autorização do responsável pelo serviço de medidas socioeducativas no qual trabalhei, realizei a leitura de todos os relatórios e documentos oficiais relativos ao caso que eu havia escrito e enviado para o judiciário. Eles foram arquivados na versão impressa e na digitalizada, mas ficam apenas em poder do serviço de medidas socioeducativas, de modo que, ao sair desta função, não pude levar cópias pessoais destes documentos. Também fiz a releitura dos registros de todos os atendimentos – presenciais e por telefone – realizados com o adolescente e seus familiares ao longo do período em que durou o acompanhamento deste cumprimento de medida socioeducativa, arquivados na versão manuscrita. Esses documentos não eram enviados ao judiciário, eram escritos durante o período de acompanhamento da medida, e, ao término desta, arquivados por tempo indeterminado. Não havia um formato pré- estabelecido para tais registros, a exigência era apenas o registro de data, horário ou período do dia e a identificação do(a) interlocutor(a).

31

O documento de frequência escolar expedido pela instituição escola traz como informações o número absoluto de faltas, a porcentagem que representa e também as notas considerando o período do início do ano letivo até o momento da solicitação.

Retirei boa parte dos diálogos da peça de teatro aqui construída a partir destes registros, principalmente as falas entre as personagens “Alguém” e “Técnica” quando a narrativa é feita a partir do ponto de vista da personagem da Técnica. Além desses manuscritos, a elaboração do enredo da peça de teatro também contou com a evocação da minha memória, pois diversas situações, embora não registradas, foram relembradas ao ler estes documentos.

Já os relatórios e documentos enviados para e pelo judiciário, deram sustentação à peça de teatro nos momentos em que o(a) narrador(a) ou determinada personagem faz a especificação do trânsito daquilo que está sendo conversado entre a técnica e o adolescente, daquilo que será encaminhado tendo como justificativa o estipulado pelo judiciário, ou do que será efetivamente enviado para o judiciário. Ou seja, as evocações da existência da personagem “Juiz” na peça – como justificativa ou não de uma ação – que se dá sem a presença dela, foram amparadas nestes documentos oficiais.

Da leitura desses relatórios, agora já arquivados, da memória da atuação enquanto técnica e com o recurso da ficção, foram elaborados os diálogos do segundo e terceiro ato da peça. Pois, ainda que a técnica esteja presente na cena, a narrativa está sendo realizada com a ideia de que aquela não é a versão dela dos fatos, e sim, o modo como as demais personagens compreendem a situação. Nas cenas em que a técnica não está presente, a escrita foi feita a partir de documentos, da observação de falas dessa natureza durante a minha experiência profissional e do recurso da ficção.

Há então uma mescla entre diálogos que estão registrados em documentos arquivados, diálogos que foram relembrados por mim a partir dessa releitura e diálogos ficcionais. Estes últimos se amparam na experiência de dois anos do trabalho como técnica de medidas socioeducativas e como pesquisadora.

Na esteira de Pirandello (2009) e Beckett (s/ano), na peça de teatro há um(a) narrador(a) que descreve o ambiente, que revela os pensamentos e sentimentos das personagens bem como as suas reações. Um(a) narrador(a) que busca descrever um acontecimento, sem se reportar diretamente nem com as personagens, nem com o(a) leitor(a). O início de cada ato é a escolha de um fato desencadeador (tendo clareza de que outros eventos desencadeadores podem dar início a outras versões da mesma história), de forma que os três atos da peça referem-se à mesma história e terminam na mesma cena, mas como cada uma das personagens conta sua versão, o fato que desencadeia o começo do ato é diferente entre eles. A personagem do “Juiz” na peça

aqui construída, representa não apenas os(as) diversos(as) juízes(as) que atuam cotidianamente nessa área, mas simboliza também a questão da hierarquia e da posse do poder, que há nesses dois dramaturgos. Assim, esta personagem tem falas que denotam o exagero, tendo uma de suas facetas, a do poder, sobrepondo-se às demais, como se fosse necessária a sua constante afirmação para manter o controle, ou, ainda, para restaurá-lo como negação daquilo que já se perdeu. O recurso à caricatura é utilizado no intuito de colocar em evidência, ao escancarar o ridículo, a centralidade de determinados temas. O nome da peça – Três personagens à procura de justiça – também é inspirado e faz menção direta a Seis personagens à procura de um autor de Luigi Pirandello (2009).

O que buscamos evidenciar com esta escolha é que a literatura permite representar um campo de ações fortemente presente nas relações de poder em uma dimensão na qual a análise dos documentos ou o relato de um caso correm o risco de tornarem-se mero registro formal, muito semelhante ao exigido no próprio campo jurídico do serviço de medidas socioeducativas.

Capítulo II - Os enunciados discursivos sobre a escola como direito e

Documentos relacionados