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O calçado brasileiro ganha o mundo: o impacto das políticas instauradas pela

1 A FABRICAÇÃO DE CALÇADOS BRASILEIROS: DA OFICINA

1.3 O calçado brasileiro ganha o mundo: o impacto das políticas instauradas pela

Durante o período da Ditadura, Pesavento observou uma aproximação da economia gaúcha com a nacional, entretanto as indústrias tradicionais reduziram o seu ritmo de crescimento, assim como a de bens de consumo não-duráveis, pois foram impactadas pelo arrocho salarial. A solução encontrada foi ao encontro das medidas dos governos ditatoriais, que passaram a estimular as exportações com o objetivo de captar divisas para serem investidas na indústria e garantir a importação de insumos e bens de capital. O emprego de capital estrangeiro passou a ser estimulado e orientado para o avanço tecnológico do setor secundário176.

Para a indústria do calçado, isso resultou a partir de 1969 em “um grande aumento do volume de produção e uma redução do número de empresas, num processo de concentração

empresarial”177

. Sobre essa concentração, Schneider explica que “isso quer dizer que ao invés das empresas do setor continuarem crescendo em número, elas passam a ampliar o parque

produtivo, seu nível tecnológico e a concentração de capital”178

, instaurando a industrialização, “processo que pode ser denominado de passagem de um estágio fabril

simplificado para a constituição industrial propriamente dita”179

. Alguns números ilustram essas mudanças: no ano de 1970 todo o estado comportava 756 fábricas de calçados; em 1971 no Vale dos Sinos havia 455, número que passa a cair; no ano seguinte eram 407; 356 em 1973; e apenas 340 em 1974180.

Houve queda no número de unidades produtivas, mas a produtividade aumentou 61% entre 1970 e 1972, e em 1973 o aumento foi de 4%, nível que se manteve. Muitas pequenas empresas foram incorporadas pelas grandes, e as primeiras encerravam suas atividades devido ao baixo poder aquisitivo da população, já que seus produtos eram direcionados para o mercado interno, além das dificuldades em relação à matéria-prima e crédito. Para Schneider,

175 MELLO; NOVAIS, op. cit., 2006, p. 604. 176

PESAVENTO, op. cit., 1985, p. 111-112.

177

Ibidem, p. 115.

178 SCHNEIDER, op. cit., 1994, p. 122.

179 Idem. O mercado de trabalho da indústria coureiro-calçadista do Rio Grande do Sul: formação histórica e

desenvolvimento. In: COSTA, Achyles Barcelos da; PASSOS, Maria Cristina (orgs.). A indústria calçadista

no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 27. 180 Ibidem.

o crescimento do setor deve ser compreendido através dos investimentos estatais e pela exportação, essa última justificada pelo baixo poder aquisitivo da população brasileira, devido ao achatamento salarial do período. Sem consumidores, as indústrias de bens de consumo não-duráveis não conseguiam se desenvolver, inclusive atuando com capacidade ociosa na década de 1960, quadro que se alterou depois de 1970, mas principalmente para as maiores fábricas do Vale do Rio dos Sinos181.

Qualidade da produção e os prazos de entrega passaram a ser observados mais atentamente. Ainda em 1969 ocorreu um acúmulo de pedidos dos importadores, que inferiu na contratação de mais funcionários e uso mais intensivo de máquinas, além da reorganização da gestão destes recursos. Destaque para a introdução de trilhos de transporte de calçados, as

chamadas “esteiras” que fragmentaram e, consequentemente, simplificaram as funções que

constituem a produção de calçados, o que Schneider aponta como um “taylorismo” com ressalvas182. Roberto Ruas percebeu, nas empresas do Vale na década de 1980, a parcialidade e precariedade do processo de mecanização do setor, sendo que as máquinas adotadas, na sua maioria, dependiam da habilidade e do conhecimento do seu operador183, circunstâncias observadas por Rezende em Franca e que fizeram o autor questionar: são estes “trabalhadores

taylorizados?”. Para ele, “o ideal taylorista de monopolização de saberes operários pela gerência da ‘ciência’ sobre a melhor maneira de se realizar um trabalho não se concretizou em todas as ocupações, se é que algum dia se concretizou plenamente em alguma ocupação”184

,

além do mais “aprender a trabalhar no cotidiano de trabalho por meio da observação do

companheiro era uma prática condenada por Taylor e seus discípulos, já que constituía num

dos principais elementos do antigo sistema de administração”185

.

A pesquisa de Bredemeier comparou a produtividade de uma indústria em 1969, quando utilizava cavaletes e, depois, quando adotou o sistema de trilhos. Ressalta que a indústria não alterou o tipo de sapato produzido no período, mas aumentou o espaço físico em 0,625m². Na época dos cavaletes a produção era de 1.100 pares/dia, empregando 300 pessoas, portanto uma média de 3,6 pares/pessoa/dia. Já com o sistema de trilhos eram empregadas 283 pessoas e a produção era de 1.800 pares/dia, logo 6,4 pares/pessoa/dia, evidenciando o aumento de 66% do rendimento diário da indústria186. Já o trabalho de Rezende indica mudanças estruturais nos espaços físicos das fábricas franquianas, com o objetivo de

181

SCHNEIDER, op. cit., 1994, p. 121-147.

182 SCHNEIDER, op. cit., 1994, p.129. 183 Conforme: RUAS, op. cit., 1985. 184

REZENDE, op. cit., 2012, p. 116.

185 Ibidem.

aumentar o rendimento (e o controle) do trabalho, e provavelmente o mesmo procedimento foi necessário nos empreendimentos do Vale187.

Nesse processo de industrialização é interessante observar que se desenvolveram, em paralelo às indústrias de calçados, os ramos auxiliares, “como curtumes, máquinas e equipamentos para calçados, componentes, prestadores de serviços e instituições de apoio,

formando um complexo produtivo complexo e integrado”188

, além de pequenas unidades ou trabalhadores domiciliares que produziam parte dos componentes dos calçados.

Costa aborda o desenvolvimento do setor em outra perspectiva, porém complementar ao que foi apresentado pelos autores já citados. Para ele, os países desenvolvidos estavam recuperados do impacto da Segunda Guerra Mundial em 1960, elevando os salários dos trabalhadores; logo, as indústrias que empregavam mão de obra intensiva viram seus produtos encarecerem, como é o caso dos calçados. Estes países passaram então a importar calçados, principalmente modelos simples e pouco variados (de até cinco dólares o par), de países como Brasil, Coréia e Taiwan, que conseguiam empregar com salários baixos. “O porquê de o Vale do Rio Sinos e Franca terem recebido os pedidos dos importadores de calçados deve-se ao fato trivial: há muito tempo se achava instalado um parque industrial calçadista com uma longa tradição, o que não ocorria em outras regiões brasileiras”189. Esse “fato” também justificou a candidatura desses complexos aos investimentos governamentais, que foram altos

e complementados pela “política de minidesvalorizações cambiais”.

Conforme a indústria calçadista crescia fez-se necessária uma “expansão

descentralizada”, isto é, filiais e novas fábricas foram abertas em cidades das regiões

próximas, como na Encosta Inferior da Serra, no Vale do Caí e no Vale do Taquari. Buscava- se mais trabalhadores, afastamento das organizações sindicais e dos problemas sociais e econômicos nos centros urbanos-industriais. As principais cidades do Vale do Rio dos Sinos sofriam com as consequências do crescimento demográfico, causado pelas migrações de trabalhadores, muitos desses foram expulsos do campo que também se mecanizava, que procuravam empregos no setor calçadista. Expandia-se o número de filiais, mas também a

flexibilização dos processos produtivos, “que consiste no aumento da subcontratação de

prestadores de serviços, como os ateliês de calçados, e na instalação de unidade de produção

que executam apenas etapas ou fases do processo de fabricação dos calçados”190

. Esses ateliês

187 REZENDE, op. cit., 2012, p. 26-36. 188

COSTA, op. cit., 2004, p. 12.

189 Ibidem, p.15.

eram geralmente administrados por ex-funcionários, muitos apenas intermediavam o repasse de serviços aos empregados domiciliares, modalidade de emprego expressiva.

Todo este processo resultou em significativo crescimento: enquanto que em 1969 apenas 1% da produção de calçados do Rio Grande do Sul foi vendido para fora do país, em 1975 esse percentual foi de 40%, entretanto os curtumes não acompanharam esse crescimento. Lagemann afirma que a “secular abundância de matéria-prima cedeu lugar à

escassez”191

, o que foi resolvido com a substituição por couros beneficiados no exterior, tecidos e plásticos. Pesavento relacionou a falta de couro com o baixo poder aquisitivo da população, como observa-se no trecho:

A expansão do setor calçadista, com o incremento das vendas para o exterior e as necessidades de aprimoramento de padrão dos produtos, colocou em questão a disponibilidade de oferta da matéria-prima e, além disso, da sua qualidade. Os curtumes gaúchos, correspondendo à expansão do setor calçadista, haviam ampliado sua capacidade produtiva, mas a mesma não se fez acompanhar do aumento da capacidade de abate da pecuária.

Esta situação, por sua vez, tinha muito a ver com o agravamento das condições de vida dos assalariados e a perda do seu poder aquisitivo, marcado pelo menor consumo de carne. Por outro lado, a pecuária extensiva, que operava com poucos recursos tecnológicos, continuava falha no sentido de oferecer uma matéria-prima em condições perfeitas para o fabricante.

Todo esse processo levou o governo a liberar a importação de couros, permitindo às empresas comprar a matéria-prima no exterior (particularmente na Argentina), fazendo-a retornar como produto acabado pelo sistema draw-back. O exemplo, no caso, é válido para que se observem as vinculações que se estabelecem entre o setor primário e o secundário nos ramos tradicionais da indústria192.

Direcionando a atenção para a Pelotas da década de 1970, notou-se, através da pesquisa de Natália Britto, que o couro ainda estava presente na economia, mas de forma mais tímida. Tornou-se a “Cidade dos Alimentos”, fortalecendo as atividades tradicionais na composição do segundo setor, através “da indústria de beneficiamento do arroz, dos

frigoríficos, dos curtumes e das indústrias de conserva de vegetais” e o fortalecimento da

relação entre a cidade e o campo, tendo na agricultura familiar o principal fornecedor de matéria-prima193. No ano de 1977 ocorreu um crescimento expressivo no número de indústrias, originário de uma série de políticas estatais, mas com a iminência do fim do regime ditatorial adveio o que a autora chamou de desindustrialização do espaço de Pelotas:

quando um número expressivo de indústrias na cidade fecha as portas ou transferem suas atividades para outra localidades. Esta decadência da atividade industrial no município insere-se num contexto onde atuam simultaneamente uma série de

191

LAGEMANN, op. cit., 1986, p. 78.

192 PESAVENTO, op. cit., 1985, p. 116. 193 BRITTO, op. cit., 2011, p. 71-76.

mudanças de ordem econômica e política local, ao mesmo tempo em que ocorrem alterações nos padrões de reprodução do sistema capitalista do mundo. [...] culminando num processo de desestabilização financeira, inflação, retração do mercado e diminuição do poder de compra da população, revelando as sequelas características do modelo de crescimento capitalista adotado no país durante o milagre econômico194.

A produção de calçados não foi mais citada na bibliografia consultada. Sabe-se da existência de algumas fábricas na cidade até a década de 1980, porém sem expressão econômica significativa, que serão analisadas no terceiro capítulo dessa dissertação. Como observado, Pelotas tem uma trajetória de contornos e superação de crises econômicas, por ser uma região marginalizada pelas políticas econômicas, principalmente as nacionais. Hoje, Pelotas pouco lembra a sua opulência do século XIX e início do XX; percorrendo suas ruas pode-se observar prédios de antigas indústrias abandonados ou sendo utilizados para outros fins. Cada vez mais a cidade substituiu a industrialização pela prestação de serviços.

1.4 Metamorfoses nos mundos do trabalho e seu impacto sobre os sujeitos: os diferentes