• Nenhum resultado encontrado

Exploraremos, neste capítulo, o campo científico210 dos RH não na qualidade de objeto de estudo nuclear deste nosso trabalho, mas metodologicamente como dimensão de mediação reflexiva sobre a epistemologia do campo educativo- formativo de RH. O capital científico do campo de RH é analisado no sentido de contribuir para uma aproximação multiperspetivada da educação-formação nesta área, potenciando uma compreensão sobre o (um possível) papel da “ciência” na estruturação deste campo educativo-formativo.

A evocação do conhecimento teórico-científico como “conhecimento poderoso” (Young, 2007) na fundação da episteme educativo-formativa (Astolfi & Develay, 1990; Bernstein, 1996; Rovira & Sanmarti, 1998; Popkewitz, 2004; Yves Chevallard, 1991), acrescida do facto da ciência e do ensino (essencialmente superior211) coabitarem a “academia” como conceptualização e campo comum212, reveste de particular interesse o campo científico como contexto significativo na leitura do campo educativo-formativo.

Analisam-se, neste sentido, nesta parte do nosso estudo variáveis socio-epistémicas da estrutura científica da área de conhecimento de RH para, em capítulo posterior, se realizar uma interpretação integrada das opções e configurações epistemológicas e sociais do campo educativo-formativo dos RH fundada não só em perspetivas endógenas (a partir do próprio campo de educação-formação), mas também exógenas (de outros campos, neste caso, do científico). Conhecer, assim, o conhecimento científico produzido neste domínio, explorando, para além das relações epistemológicas e teóricas, também as estruturais e sociais é o objetivo desta parte do trabalho.

Ancorada nas teorias organizacionais e nas teorias comportamentais, a investigação em RH evoluiu ao longo do século XX assumindo como seu objeto epistémico o

210

Reportando ao termo “ciência” como referente à atividade de pesquisa (Japiassu, 1976)

211 Nível de ensino predominante no nosso estudo

212 Bourdieu (1976) apresenta mesmo o capital universitário e o científico como capitais mutuamente

150 elemento humano como fator organizacional (Neves & Gonçalves, 2009), desenvolvendo o constructo “recursos humanos” como seu referencial. Não obstante a sua estruturação em duas distintas linhas de pesquisa - a “Gestão de RH” e o “Desenvolvimento de RH” - esta radicação epistemológica é reconhecida como fundacional em ambas as correntes científicas (Garavan, Gunnigle & Morley, 2000; Neves & Gonçalves, 2009).

Esta origem como ciência organizacional (Ferris, Hochwarter, Buckley, Harrell-Cook & Frink, 1999; Kuchinke, 2004; Mahoney & Deckop, 1986) configura a identidade central da conceptualização do domínio científico de RH, determinando e influenciando as opções epistemológicas da investigação nesta área: à predominância das abordagens funcionais, normativas e prescritivas, que têm constituído o posicionamento dominante no campo nas últimas décadas (Caldas et al., 2003; Marsick, 1990; Watson, 2004, 2010), é associada a variável “desempenho/ eficácia organizacional” como problemática central no estudo do seu objeto epistémico (Batt & Banerjee, 2012; Cho & Yoon, 2012; Fisher, Sleezer, Cude, Marsick, Preskill, Russ-Eft & Swanson, 2001; Gardner & Wright, 2009; Guest, 1997, 2001; Harley, 2014; Janssens & Steyaert, 2009; McGuire & Garavan, 2013; Pauwee, 2009; Werner, 2014).

É o inato enquadramento da investigação em RH no âmbito das ciências sociais (Batt & Banerjee, 2012; Capelli, 2012; Heery, 2008; Mascarenhas & Barbosa, 2013; Reio, 2012; Watson, 2010, 2012), reforçado pelo ethos humano (Bolton, 2007; Chanlat, 1994) e multidimensional da natureza do constructo RH que remete a investigação científica neste domínio para abordagens multidisciplinares (Jacobs, 1990; Garavan, 2004; Kuchinke, 2001; Martin-Alcázar, Romero-Fernández & Sachez-Gardey, 2008; Molloy & Ployhart, 2012; Swanson, 1999) e multinível (Batt e Banerjee, 2012; Cho & Yoon, 2012; Molloy & Ployhart, 2012; Scarpello, 2007; Swanson, 2001; Wright & Boswell, 2002), reclamando e integrando mais do que um nível e âmbito de perspetivação para este objeto de estudo (Ployhart & Moliterno, 2011). É neste

paradigma que é verificável a extrapolação da exclusiva delimitação organizacional e funcional da investigação científica em RH subjacente à sua epistemologia fundacional.

151 Se a multidisciplinariedade mobiliza, por exemplo, a economia, a psicologia, a educação e a gestão (Werner, 2014), o nível operacional – a nível das práticas e atividades em funcionamento – é acoplado por um nível político – de declaração de intenções (Neves & Gonçalves, 2009) – e ainda por um nível estratégico – centrada numa integração dos elementos internos e externos numa lógica de vantagem competitiva sustentável (Garavan, 2007; Pfeffer, 1994). Estes diferentes olhares intersectam-se ainda com outras perspetivações nivelares distintas, sustentadas em abordagens individuais, grupais, organizacionais e societais (no sentido de ocupações, comunidades ou nações) do constructo RH (Afiouni & Hajj, 2013; Boxall, Purcell & Wright, 2007; Garavan, 2004; MacGuire & Garavan, 2013; McLean & McLean, 2001; Watson, 2010).

Se o nível estratégico e o societal constituem, em cada uma das abordagens, os níveis de leitura mais elevados, no sentido de mais amplos (Martin-Alcázar et al., 2008), a realidade estrutural do campo parece denunciar para estes dois enfoques posições de força no campo muito distintas: enquanto que a perspetiva estratégica se apresenta nas últimas décadas de uma forma dominante na investigação científica em RH, a perspetiva societal (nas suas dimensões políticas, económicas e sociais) revela-se, neste âmbito, claramente diminuta (Batt & Banerjee, 2012).

Independentemente das forças relativas de cada uma das abordagens, é este quadro de referência não só multireferencial (Ardoino, 1993), mas também heterodoxo (Bourdieu, 1996) e, por consequência, em devir, que contribui para uma abertura (no sentido de Wallerstein e colegas, 1996) socio-epistémica do científico em RH. É, nesta perspetiva, através da pluralidade dinâmica nas relações entre o objeto epistémico e os diferentes olhares e escutas epistémicas que o processo de pesquisa em RH mais desenvolve potencialidades para equacionar (e respeitar) a complexidade (no sentido de Morin, 1990) deste objeto epistémico, que se abre – a partir destas abordagens – do elemento humano como fator organizacional (Neves & Gonçalves, 2009) para o “elemento humano como fator de trabalho”.213

213 Conceção inspirada na associação da definição de Gonçalves e Neves (2009) com a de Werner

152 Esta complexidade ontologicamente inerente ao ethos epistmológico dos RH como objeto de estudo científico pode, no entanto, representar, a par de outros fatores já apontados na literatura - como ‘a relativa juventude do campo científico’ (Boxall, 1996), ‘uma prematuridade teórica do campo’ (Paauwe & Boselie, 2005; Stone, 2007; Werner, 2014), “a aparente escassez de fronteiras e parâmetros (….) [bem como de] evidência empírica de alguns aspectos conceptuais” (Goldrick, Stewart & Watson, 2001, p. 15)214, ‘as diferentes conceptualizações sócio-culturais do construto, da área científica e profissional’ (Lee, 2001; McLean & McLean, 2001), “o domínio que cobre e até os termos que usa” (Walton, 2001)215 - um elemento obstrutor de uma construção e de um reconhecimento identitário enquanto área ou disciplina científica216 (Martin-Alcázar et al., 2008; Neves & Gonçalves, 2009; Poel, 2007). Nesta leitura, a pluralidade de ordens constitutivas do campo pode ser interpretada como mais uma realidade de “desfragmentação” (Mascarenhas & Barbosa, 2013) e não como uma dimensão estruturante.

Efetivamente, se assumir o campo científico dos RH como um espaço socio- epistémico fundado numa “epistemologia da mestiçagem” (Correia, 2010, p. 31) permite assumir uma identidade que possibilita a complexidade necessária à cognição do objeto-construto científico que são os RH, por outro lado implica uma consciência da inerente luta de interesses subjacente às estruturas plurais.

214 Tradução livre do autor para “apparent lack of boundaries and parameteres (…) empirical evidence

of some conceptual aspects”.

215

Tradução livre do autor para “the domain that it covers and even the terms that it uses”.

216 Área, campo, domínio ou disciplina científica na conotação de ramo particular do conhecimento

153