• Nenhum resultado encontrado

As canções de Roda-viva

No documento gabrieldacunhapereira (páginas 79-84)

4. Roda-viva: o novo corpo de Chico Buarque

4.2. As canções de Roda-viva

Sendo uma comédia musical, dividida em dois atos, as músicas da peça merecem destaque em nossa análise. Se Roda-viva foi a primeira obra teatral de Chico Buarque, como compositor ele já tinha certa experiência. Na peça encontramos variados ritmos, que se unem às cenas constituindo uma unidade coerente e ajudam a formar o conteúdo semântico e a atmosfera do ambiente. Indo do chorinho ao fox, eles também ajudam a tecer a roupa das personagens. Seria um erro pensar que os estilos musicais presentes na obra se juntam à cena por mero acaso ou displicentemente.

Se o assunto da peça é o culto à televisão, que se apresenta como Deus, a peça se inicia com os espectadores em procissão entoando um canto religioso, pedindo feijão e o direito de voto, perdido com o golpe de 1964. Vindo atender o público, como se fosse um apresentador de um programa de televisão, surge o “Papa” Benedito Silva, que se dirige aos seus telespectadores informando sobre a comédia que assistirão, logo após um “simpático comercial” (BUARQUE, 1968, p.16).

O segundo ritmo a surgir na peça é o fox, utilizado para melhor vestir a moda do americanismo, numa cena que imita um “musical da Metro, para sapateado” (BUARQUE, 1968, p.17).

Já no diálogo entre o cosmopolita Anjo da Guarda e a provinciana Juliana do Benedito, o tema musical é justamente um desafio de viola caipira. Juliana de repente percebe sua casa invadida por um estranho que traz consigo um universo que lhe é completamente desconhecido. A música não só ajuda a compor (vestir) a personalidade de Juliana, como dá o tom do embate. Trata-se, verdadeiramente, de um desafio travado no momento em que a caipira Juliana se vê afrontada pelo Anjo e suas ideias.

No credo da televisão, o ritmo de reza é acompanhado por um órgão, instrumento que costumava fazer parte das missas da igreja católica.

Na profana união entre Anjo e Capeta, nada melhor que uma marchinha de carnaval. O carnaval tem uma importância relevante na obra de Chico Buarque e também será visto a seu tempo. Por enquanto, ater-nos-emos a dizer que ele possui um teor libertário que permite uma gama enorme de uniões e transmutações e funciona como um período em que se pode escapar das opressões do cotidiano. O velho pode se unir aos jovens, assim como o pobre dá as mãos

ao rico, homens vestem-se de mulher e, por que não, capeta e anjo se juntam para o desespero dos mortais.

O tema de Sua Eminência, o IBOPE, é composto pelo ritmo dançante e alegre do iê-iê- iê das guitarras elétricas. O grande profeta da televisão é recepcionado com entusiasmo. Dentre as divergências da época, a inserção do iê-iê-iê foi vista na imprensa como uma crítica de Chico Buarque às novas tendências da música popular brasileira. Na entrevista dada ao folheto da montagem paulista da peça, o compositor rebate a acusação dizendo que a presença do iê-iê-iê na peça não pretende ser uma crítica aos seus compositores. Segundo ele, aqueles que o compõem “não são, como querem uns, monstros dispostos a destruir a nossa música autêntica”. (BUARQUE, 1968, s/p). Segundo o escritor de Roda-viva, ele procurou “parodiar modelos do iê-iê-iê, canção de protesto, “som universal”, etc., usando chavões de cada um desses gêneros (que todos os têm)” (BUARQUE, 1968, s/p). Portanto, ele estabelece um diálogo entre as linguagens musical e verbal, usando características de cada estilo facilmente identificáveis pelo público.

Além disso, a peça encena o ambiente cultural e político vivido no Brasil com uma percepção crítica e distanciada dos acontecimentos. Na época, a chegada da pílula anticoncepcional é de grande relevância e seu uso começa a ser encarado como um ato político, instrumento de independência feminina e de líber(t)ação sexual. Para a jornalista Lucy Dias, que viveu sua juventude naquela época,

o mundo ficou dividido em antes da pílula, que era tudo aquilo que conhecíamos como vida até então; e o que descobriríamos depois do milagroso advento, capaz de operar tal transformação em nosso comportamento. (DIAS, 2003, p.24).

Entretanto, a pílula não era vista por todos com bons olhos, inclusive pelos seus “efeitos colaterais” que iam contra “a família, a moral e os bons costumes”. Segundo Zuenir Ventura, a resistência social à pílula ia desde “o temor natural dos seus efeitos, não de todo conhecidos, até o preconceito que via nela um instrumento de promoção da promiscuidade” (VENTURA, 1988, p.35). As geopolíticas do prazer – que juntamente com as micropolíticas despontariam nos anos 1980 – encontravam-se ainda incipientes no final da década de 1960. Na peça, a pílula aparece na boca de Benedito como uma entre as muitas mercadorias, porém sem que haja sobre ela um juízo de valor ou qualquer tipo de aprofundamento:

Pra mim, dois carros colossais Iate, praia, uma cabana

Casa em Petrópolis... e o que mais? Ah! sim, pra Juliana...

Pílulas anticoncepcionais E pão para o povo.

(CHICO BUARQUE, 1968, p.37)

A crítica de Chico Buarque não é em relação à pílula, como também não era em desfavor do iê-iê-iê. O que o preocupava era o uso indiscriminado desses “produtos”. Para ele, “um mês depois de composto, meu samba já não é meu. É mercadoria exposta ao consumo, desgaste, ridículo e rejeite” (BUARQUE, 1968, s/p).

Os diálogos de Benedito com seu amigo Mané são marcados, ao longo da peça, por ritmos nacionais. O primeiro se dá ao som do chorinho e o segundo, do frevo. O primeiro ato se fecha do modo como começou: as personagens entoam um canto religioso, pedindo alimento e urna. As cortinas são reabertas e mais uma vez encontramos Benedito e Mané. Desta vez, o protagonista queixa-se de que o colega está mudado. A resposta de Mané vem em ritmo de samba, bem brasileiro.

A próxima canção a se ouvir é “Roda-viva”, cantada pelas personagens. Trata-se de um samba, talvez o ritmo mais nacional que tenhamos, devido ao seu local de nascimento e divulgação, o Rio de Janeiro, metrópole cultural do país. A música se torna uma espécie de hino para as personagens, sua roupa e sua representação, o modo pelo qual elas se afirmam e criam um sentimento de pertencimento em relação ao mundo. No roteiro da peça, encontramos o seguinte comentário do autor: “Sobre esse canto do Povo, Benedito e Mané conversam, rindo e bebendo”. (BUARQUE, 1968, p.52, grifos nossos). Aquilo que Chico Buarque chamará de povo não deve ser confundido com o Povo com P maiúscula dos Ilustrados, unidade jurídica recorrentemente associada a um Estado-nação. Chico Buarque entende o povo como sinônimo de cultura popular. É um canto, portanto, próprio à nossa cultura popular. E no momento em que o compositor institui sua canção como pertencente ao popular, Chico Buarque se incorpora a ele e se apresenta com um produtor de cultura popular. Por mais que rejeite o título de intelectual, sua performance musical e teatral dizem o contrário.

Finda a canção e a conversa de Benedito e Mané, surge uma nova procissão, agora uma oração aos astros brasileiros como Benedito, “predestinado a salvar a humanidade” (BUARQUE, 1968, p.56). Cultura popular que não está, portanto, separada da cultura de

massa, como podemos notar na figura de Benedito Silva, um ídolo das massas. Não se trata de um popular puro, mas heterogêneo, urbano, carioca.

A próxima música aparece em um dos momentos altos da comédia, quando Ben Silver se tornará Benedito Lampião. O ritmo é o baião, tocado “com instrumentos bem regionais” (BUARQUE, 1968, p.62), segundo as instruções do autor. Segundo Jairo Severiano, em Uma história da música popular brasileira, o gênero, derivado do lundu, nasceu na Bahia, no século XIX, inicialmente com o nome de “baiano”, do qual sofrera corruptela. Foi se popularizar somente em 1946, com a canção de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira chamada “Baião” e gravada pelo grupo Quatro Ases e Um Curinga. A Era do Baião foi de curta duração, terminando em 1957. (SEVERIANO, 2008, p. 279-281).

Na peça, é a revista americana “Times” que explica como deve ser a legítima música brasileira, inclusive ditando suas normas (BUARQUE, 1968, p.61). Segundo o periódico, ela deve ser pura, agressiva e ligada às nossas raízes. (BUARQUE, 1968, p.61). Por isso o Anjo recorre ao baião, já que este nascera na Bahia, local onde Cabral aportou, e é uma variante do lundu, música trazida pelos negros escravos vindos da África e dos quais, entre outras raças, somos descendentes. Trata-se de uma crítica à indústria cultural que resgata um aspecto regional e consome-o, irrefletidamente, exibindo-o pelo que ele tem de exótico e diferente. Na peça o baião é redescoberto e torna-se a pura música brasileira, como a “Times” mandou. Aproveitando o apelo instantâneo, o gênero é então vendido como mercadoria e em sua forma estereotipada. A peça radicaliza a paixão pelo que vem da América do Norte, fazendo com que uma revista dos Estados Unidos dite as regras até mesmo de nossa música popular.

Em louvor à morte de Benedito, que vai suicidar-se, Mané, Juliana e o Capeta cantam uma ópera. O engraçado da cena é que se se trata de um gênero canonizado e tradicional, a letra feita é completamente informal e popular, inclusive apresentando palavrões. Em 1968, o uso de palavras de baixo calão tornou-se um ato político e era entendido como uma espécie de “revolução verbal”, para usar a expressão de Zuenir Ventura (VENTURA, 1988, p.51). Vejamos a primeira parte, cantada por Mané:

Foi um deus, hoje é um pária Se danou, se danou

se chegou à pequena área faça o gol, faça o gol começou, vá até o fim

(BUARQUE, 1968, p.71)

Aqui, a roupa não veste bem. Se inicialmente imaginamos que a ópera foi escolhida como forma de respeito e homenagem a Benedito, que espera tornar-se um mártir, a letra desestabiliza a canção e compromete esta leitura. A presença do coro mostra indiferença pela morte de Benedito e a promessa do tributo é descumprida. A única a mostrar afeto e dor pela sua perda é Juliana, em versos como “só sei que a partida dói/ meu amor, meu amor” (BUARQUE, 1968, p.71), porém logo atacada pelo coro, que continua repetindo o refrão “que morra, que morra, que moorra”. Finalmente, chega a vez do Capeta, que o insulta todo o tempo, acusando-o de corrupto, ladrão e subversivo. (BUARQUE, 1968, p.72).

A morte de Benedito é seguida de breve música religiosa e, mais que depressa, o som das guitarras assume a cena em uma grande festa, da qual todos fazem parte, inclusive o Capeta, o IBOPE e as bailarinas. Uma nova artista nasceu: Juliana, viúva de Benedito, vestindo-se à moda hippie, pregando paz e amor e carregada nos ombros do público. O ritmo alegre e dançante do iê-iê-iê compõe a última cena e a última roupa vestida no palco.

No documento gabrieldacunhapereira (páginas 79-84)

Documentos relacionados