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Cada canteiro livre é uma Universidade (FERRO, 2002)249

Para Lefévre, a reinvenção dos procedimentos projetuais, pautada no entendimento da construção (civil) como atividade

248 Para mais detalhes sobre o a poética da economia, ver: KOURY, Ana Paula. Arquitetura Nova.

que transcende o campo específico da arquitetura para atuar como mecanismo de democratização do conhecimento, era percebida também como instrumento de construção do sujeito e de uma sociedade igualitária. Conforme ressaltado por Arantes250,

essse entendimento tinha no ambiente acadêmico-pedagógico um espaço poderoso de debate e exercício do pensamento que se formulava, em que a figura de Paulo Freire figurava como sua grande inspiração, despertando o anseio do arquiteto de ir ao “encontro com o povo e a preocupação pedagógica do canteito- escola”.

Seu entusiasmo com o pensamento de Freire refletiu-se na busca por configurar meios no campo da arquitetura para que essa pudesse cumprir tarefas semelhantes às da pedagogia do educador, das quais Arantes destaca: “responder às contradições da fase de transição; inserir a participação popular no desenvolvimento econômico; levar o povo a uma compreensão crítica da realidade; resistir ao desenraizamento promovido pela civilização industrial; criar uma nova postura popular diante de seu

249 Palestra proferida por Sérgio Ferro na faculdade de arquitetura e urbanismo da Universidade de São Paulo em 2002.

250 ARANTES, Pedro. Arquitetura Nova – Flávio Império, Sérgio Ferro e Rodrigo

171 tempo e de seu espaço” (Ibidem).

Esse foi o tema desenvolvido em sua dissertação de mestrado Projeto de um acampamento de obra: uma utopia, defendida na FAU-USP em 1981. Através desse estudo, Lefévre discutiu os problemas enfrentados pelos migrantes que chegavam à cidade de São Paulo atraídos pela pujança econômica, mas que não encontravam oportunidades de inserção econômica e/ou social, nem moradia. Mas seu objetivo central com o trabalho era apresentar a proposta de pensar uma estrutura nova de sociedade, a montagem de uma espécie de escola “onde cerca de 2 mil migrantes possam vir a produzir o seu local de moradia, casa e bairro”. Lefévre visualizava o Estado como patrocinador dessa estrutura, ao prover a “terra, material de construção, abrigo provisório e alimentação, métodos pedagógicos de alfabetização e formação profissional”. Estas seriam as bases para a formatação do canteiro-escola.

Para pensar essa nova sociedade e o modo de alcançá-la, buscou compreender os processos culturais dos migrantes no capítulo “Algumas características culturais dos migrantes trazidas

251 MARICATO, E. Da produção à gestão; do estudo da periferia à atuação na Guiné-Bissau: notas sobre a trajetória de Rodrigo Lefévre. In: KOURY, 2019.

para ou adquiridas nos grandes centros urbanos”, onde, apoiado em nomes como Florestan Fernandes, Ruth Cardoso, Antônio Cândido, Eunice Durhan, Cláudia Menezes, entre outros, buscou diferentes abordagens para a problemática da marginalização urbana que pudessem subsidiar seu esforço de conscientização e libertação desses grupos.

De acordo com Maricato251, essa problemática foi

contemplada a partir da autoprodução do espaço por eles ocupados na cidade, na unidade de bairro, como mecanismo de aglutinação social para a autonomia gestionária e consciência política. É importante ressaltar que a autoprodução do espaço não se restringia a um processo de construção de casas em esquemas de mutirão. Seu interesse estava em elucidar a comunidade de migrantes quanto à sua inserção em uma estrutura complexa, considerando aspectos de ordem social, econômica, política, territorial.

A estrutura metodológica para construção do “modelo de produção” inspirou-se a na experiência da “situação problema” criada por Freire, ao adaptá-la à sua proposta do canteiro-escola.

172 Enquanto para o pedagogo o uso do método tinha como objetivo

descobrir as demandas de cada comunidade com a qual trabalhava com fins de alfabetizá-la, Lefévre apropriava-se do método com fins de integrar migrantes à sua nova realidade. Com isso, Lefévre252 pretendia abordar:

os problemas de conhecimento da cidade, das relações que daí se dão entre as pessoas, os sinais, símbolos e signos usados na compreensão da cidade, o uso dos serviços urbanos, os problemas de prioridades de equipamentos urbanos, de localização na cidade, de construção de suas casas e bairros, todos os problemas de saúde relacionados, etc. [...] será com base nesta situação-problema que todo o processo de trabalho irá se desenvolver.

Com isso, buscava oferecer condições dos migrantes estabelecerem seus próprios métodos de apreensão da realidade, num processo de tomada de consciência em que, de um lado, essa realidade aparece como objeto cognoscível onde o migrante assume uma posição de reflexão, de busca de conhecimento, e do

252 LEFÉVRE, Rodrigo. Projeto de um acampamento de obra: uma utopia. Dissertação de Mestrado. FAU-USP. 1981. p. 252.

253 Op.cit.

outro, “como objeto mutável, em que o migrante assume uma posição de produtor, de ação, no dizer de Paulo Freire”253.

A ideia de conscientização como condição a ser alcaçada pela práxis, ação-reflexão do homem, desenvolvida por Freire 254,

é também central para Lefévre255. Conforme enfatizava, a

invenção de uma “nova práxis” (repensar e refazer a cidade) é o momento de “tomar as rédeas que dirigem nossas vidas e recolocarmos o conceito de urbano de tal forma que as condições urbanas de vida sejam realmente parte de um processo de desabrochamento integral do indivíduo na sociedade e, portanto, de libertação”.

No campo acadêmico, suas considerações a respeito da práxis em trabalhos de atelier concentram-se em ressaltar a necessidade de intensificação de estudos, pesquisas e discussões em cada atelier de cada escola, sobre os objetivos do ensino de Arquitetura, a fim de promover o desenvolvimento de técnicas pedagógicas lastreadas pelo campo da Pedagogia. Segundo ele, essa interlocução permitiria ao campo da Arquitetura apropriar-se

254 FREIRE, Paulo. Conscientização. São Paulo: Cortez e Moraes. 1979. 255 LEFÉVRE, Rodrigo. Projeto de um acampamento de obra: uma utopia. Dissertação de Mestrado. FAU-USP. 1981. p. 252.

173 de métodos que tomam a ação como base do desenvolvimento do

conhecimento, na busca pela unidade entre o fazer e o pensar. Na perspectiva de uma educação que parte da práxis, enquanto dialética entre a ação e a reflexão, Lefévre256 afirma:

Isto será possível, pois a atividade projetual em atelier nada mais é do que uma das maneiras de se desenvolver ações de transformações de objetos (num certo nível) e de representações de objetos [...] E assim é possível que os arquitetos possam vir a adotar métodos e técnicas de trabalho que permitam que essa prática seja fonte de conhecimento, seja fonte do pensar e repensar o universo tal qual ele é, tal qual ele virá a ser.

Ao recorrermos ao campo específico da pedagogia, relacionamos esse posicionamento de reivindicação de métodos transformadores daquilo que é concreto/material da realidade histórica a uma vertente da pedagogia crítica denominada “Pedagogia da Práxis”. Essa vertente assume que os processos de libertação latino-americanos exigem mais do que a consciência dos indivíduos, o que significa, em termos práticos, também

256 LEFÉVRE, Rodrigo. Notas de um Estudo sobre Objetivos do Ensino de

Arquitetura e Meios para Atingi-los em Trabalho de Projeto. São Paulo. USP –

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. 1977.

avançar para a transformação concreta das estruturas de dominação.

A partir da práxis, as pedagogias contra-hegemônicas pretendem desenvolver, por um lado, processos de desnaturação da realidade opressiva, configurando atos problematizadores da existência humana e permitindo aprofundar na conscientização dos sujeitos dominados, e, por sua vez, podem avançar na pre- figuração de novas relações sociais, instituições, ações e discursos que contêm em si as sementes de libertação257.

Suas ações são caracterizadas pela necessidade de constituir espaços de auto-educação popular; a práxis dialógica como reconhecimento genuíno – não instrumental nem formal – dos saberes populares; a convicção de que a práxis pedagógica deve desenvolver e potencializar todas as faculdades humanas, reivindicando as categorias de integralidade da educação, entre outras.

Ao buscar acentuar a práxis político-pedagógica como ferramenta para a transformação social, marcou um

174 posicionamento que, de certo modo, inaugura uma cultura entre

as faculdades/escolas de arquitetura do país.