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Capítulo 2. As condições singulares de criação

2.2 Caos e construtivismo

Plano de imanência é um recorte operado pelos filósofos. Um corte no caos. Do caos de infinitos movimentos de puras variabilidades que darão o que pensar corta-se um plano no qual os conceitos vão povoar. Por isso, um corte, pois existem muitos outros possíveis. O importante é entender o plano de imanência como pré-filosófico, ao criar uma superfície absoluta no caos que é um reservatório de acontecimentos:

O plano de imanência é como um corte do caos e age como um crivo. O que caracteriza o caos, com efeito, é menos a ausência de determinações que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e se apagam: não é um movimento de uma a outra, mas ao contrário, a impossibilidade de uma relação entre duas determinações, já que uma não aparece sem que a outra tenha já desaparecido e que uma aparece como evanescente quanto à outra desaparece como esboço (Qf, p. 53 [p. 44-45])

O caos cheio de movimentos ilimitados com velocidades infinitas caotizando incessantemente, repleto de acontecimentos, devires aleatórios sem ligações. Deleuze e Guattari pedem “somente um pouco de ordem para nos protegermos do caos” (Qf, p. 237 [p. 189]). Para isso, é necessário traçar um plano e criar conceitos, os quais se referem e se sustentam mutuamente. Desse modo, a

concepção da filosofia como criação conceitual é uma noção composta, na qual é preciso considerar um caos caotizante como um pressuposto, o traçado de um plano como uma seleção pré-filosófica de acontecimentos intensivos que se quer pensar, a criação de conceitos que vão povoar o plano e a invenção de personagens conceituais que os encarnam.

Todavia, não se pode esquecer de que, em tudo isso, ainda há a imagem do pensamento que é dizer o que cabe de direito pensar. E, nesse sentido, cada pensador modula o que significa pensar e, consequentemente, pauta uma imagem do pensamento.

Por isso, um dos pontos de destaque desta pesquisa é o argumento de que a “pedagogia do conceito” é o modo deleuze-guattariano de criar a sua forma de definir o que significa pensar que, ao mesmo tempo, expressa a vibração interna entre a ontologia criativa e a didática inteligível dos conceitos, dos diferentes conceitos dos diferentes filósofos. É por meio dessa noção que os filósofos expõem as exigências das condições singulares de criação e sustentação de conceitos enquanto criados por força de um fora que o acossa através de encontros intensivos com problemas.

Essa movimentação toda é bastante complexa, pois o pensamento precisa mergulhar no caos e atravessá-lo, mas também manter a difícil tarefa de se recordar do caos que o acossa e no qual pode recair. Entretanto, é a iminência da queda no caos que faz lembrar que o pensamento começa pelo meio, sem pressupostos, ou pré-determinações, já que se inicia a cada novo encontro.

A filosofia é uma pesquisa constante, fervilhante, a cada encontro, ela não está fechada, conforme se verifica a seguir:

A filosofia é um construtivismo, e o construtivismo tem dois aspectos complementares, que diferem em natureza: criar conceitos e traçar um plano (...) o plano envolve movimentos infinitos que o percorrem e retornam, mas os conceitos são velocidades infinitas de movimentos finitos, que percorrem cada vez somente os seus próprios componentes (Qf, p. 45 [p. 38])

Atravessar o caos é traçar um plano e criar conceitos. O plano comporta movimentos infinitos de singularidades intensivas e os conceitos criados descrevem ordenadas intensivas, em velocidades infinitas, que dizem os acontecimentos. O pensamento dobra o ilimitado-infinito do caos, por isso “o problema da filosofia é de adquirir uma consistência, sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha (o caos, deste ponto de vista, tem uma existência tanto mental como física)” (Qf, p. 53 [p. 44-45]). Do caos, o plano e o conceito mantêm os movimentos ilimitados e as velocidades infinitas. Só que no caos eles estão variando incessantemente não-ligados, enquanto que o pensamento procura fazer sentido, ter consistência. E faz sentido sendo “pedagógico”, traçando um plano, um campo de imanência, e estabelecendo relações entre os componentes de um conceito.

O pensamento desenhado de modo imanente preserva toda essa capacidade inventiva e a novidade do mundo que está no caos. E é aqui que novamente retorna a noção mencionada no início deste texto, qual seja, Deleuze constrói um pensamento que começa no meio porque é intensivo, nasce dos encontros sem perder de vista o caos em que pode cair, ou se confundir.

Se se coloca o filosofar como criação, então como fica a questão da história da filosofia? Deleuze vai transformar esta questão como também a definição de verdade nela difundida. Ou seja, a vontade de verdade e a progressão do pensamento dão lugar à teoria do sentido e à coexistência de pensadores.

Cada filósofo expressa suas singulares criações: “tendo-se em conta o plano de imanência que se dá por pressuposto e todos os traços deste plano (...) tornados indiscerníveis: pensamento é criação, não vontade de verdade, como Nietzsche soube mostrar” (Qf, p. 67 [p. 56]). E, para não se confundir com o caos de onde veio, o conceito precisa construir a sua consistência e é no sentido, no que ela tem de interessante e notável que reside o valor de uma filosofia. Neste

sentido, também afirma Charbonnier que o critério do interessante não é uma questão de escolha pessoal, mas uma “captura do fora, um encontro fortuito que nos mergulha em uma confusão e nos força a duvidar” (2009, p. 31).

Pode-se retomar o que já foi dito acima: considerada uma “pedagogia do conceito” como um pensamento sem imagem, Deleuze e Guattari fogem de uma imagem dogmática do pensamento, aquela que dizia que os conceitos são conhecimentos ou representações dados e, com isso, fogem da noção de verdade como adequação do conceito a realidade e com a noção de história da filosofia como algo sucessivo, evolutivo ou linear. Este ponto é ressaltado por Alain Beaulieu ao afirmar que não há uma linearidade histórica, mas relações de simultaneidade, ou ressonâncias, como se pudesse dizer que um leitor de filosofia é afetado por um “efeito Hume”, ou por um “efeito Spinoza”, enquanto acontecimentos em um tempo Aion, que é um tempo não cronológico (BEAULIEU, 2009, p. 19). Ou seja, ao tomar os filósofos como efeitos, está se dizendo que eles propõem novos modos de pensar que afetam seus leitores e por este motivo eles coexistem e não evoluem de um para o outro

Dessa forma, a história da filosofia ganha um contorno de coexistência de filósofos, pois a filosofia é um devir e, cada um deles a transforma a partir dos seus planos e conceitos: “O tempo filosófico é assim um grandioso tempo de coexistência, que não exclui o antes e o depois, mas os superpõe numa ordem estratigráfica” (Qf, p. 72 [p. 58]). Beaulieu dirá que se trata de um tempo “transhistórico”, não se deve pensar a história da filosofia como uma cronologia dos filósofos, mas como uma coexistência de singulares criadores.

Em O que é a filosofia? ainda há mais um elemento na caracterização da filosofia como criação conceitual, a figura do personagem conceitual, construído como sendo aquele que opera esse sistema todo. Ele não é simplesmente o “eu” do filósofo, afinal algumas filosofias já são em segunda ou terceira pessoa, mas é aquele que é tomado e enuncia um devir. Não se confunde com o “eu” histórico e social do filósofo, o personagem conceitual também é uma criação do pensamento

e atua no texto filosófico efetuando os movimentos necessários à exposição dos conceitos.

Tal personagem conceitual faz o movimento do pensamento, porque é um enunciador textual que traça o plano e cria os conceitos que vem povoá-lo. Então, é ele que mergulha no caos e lança as ordenadas intensivas dos conceitos nos planos de imanência. Sendo assim, “na enunciação filosófica (…) faz-se o movimento pensando-o, por intermédio de um personagem conceitual. Assim, os personagens conceituais são verdadeiros agentes de enunciação” (Qf, p. 79 [p. 63]).

O personagem conceitual atua na dramatização do conceito. Todo o filósofo concebe um personagem conceitual que opera a sua filosofia e, com ele, a complexa criação conceitual, que agora pode chegar a uma definição mais completa:

A filosofia apresenta três elementos, cada um dos quais responde aos dois outros, mas deve ser considerada em si mesma: o plano pré-filosófico que ela deve traçar (imanência), o ou os personagens pró-filosóficos que ela deve inventar e fazer viver (insistência), os conceitos filosóficos que ela deve criar (consistência). Traçar, inventar, criar, esta e a trindade filosófica. (Qf, p. 93 [p. 74])

A citação propicia que se observe toda a capacidade inventiva do pensamento que a filosofia pode ter. Afinal o filósofo não acha, não contempla, não re-apresenta nada. Mas traça um plano de imanência, inventa personagens conceituais que fazem o movimento do pensamento e habitam este plano, criam os conceitos que trazem sua consistência como característica intrínseca do seu processo de auto-posição e, durante este processo, estão definindo o que pode um pensamento.

Ora, podemos recorrer ao exemplo 1, da obra O que é a filosofia?, sobre o

Problema Por onde começar para determinar a verdade como certeza subjetiva absolutamente pura? (Qf, p. 35 [p. 31])

Plano de

imanência

“O plano cartesiano consiste em recusar todo pressuposto objetivo explícito, em que cada conceito remeteria a outros conceitos” (Qf, p. 35 [p. 31]) Imanência a partir de um campo de

consciência do sujeito pensante (Qf, p. 57 [p. 48])

Personagem conceitual

“Eis um tipo muito estranho de personagem, aquele que quer pensar e que pensa por si mesmo, pela "luz natural". O idiota é um personagem

conceitual”. (Qf, p. 76 [p. 60]).

O pensador privado cartesiano em oposição ao pensador público dos escolásticos.

Conceito O cogito cartesiano, “eu penso, logo existo”, com componentes intensivos – duvidar, pensar, ser (Qf, p. 33 [p. 30])

Um desafio é encontrar a lista do exemplo acima na filosofia de Deleuze e Guattari, dobrando para eles o que propunham para a leitura da história da filosofia. Ela deveria funcionar para eles também? Eis uma hipótese dessa tese para a sua filosofia:

Problema Como pensar o caos sem transcender, sem universais, como pensar dando ao pensamento velocidade infinita e movimentos ilimitados “o problema da filosofia é de adquirir uma consistência, sem perder o infinito no qual o pensamento

mergulha (o caos, deste ponto de vista, tem uma existência tanto mental como física)” (Qf, p. 53 [p. 44-45])

Plano de

imanência

Horizonte de movimentos infinitos e acontecimentos – imanente a si mesmo (Qf, p. 45 [p. 38])

Personagem conceitual

Um detetive ou um espécime do futuro, aquele que recolhe a multiplicidade de pistas de uma

singularidade e procurar pensá-las num estado de sobrevôo como fruto de uma contingência ou de algo por vir. (introdução de Diferença e Repetição, “Um livro de Filosofia deve ser, por um lado, um tipo muito particular de romance policial e, por outro, uma espécie de ficção científica” (DR, p. 17 [p. 3]).

Conceito multiplicidades, acontecimentos, rizoma: “Não há conceito simples. Todo conceito tem componentes, e se define por eles. Tem portanto uma cifra. É uma multiplicidade” (Qf, p. 23 [p. 21]);

A noção complexa de “pedagogia do conceito” pareceu ser uma imagem do que significa pensar ao afirmar que a filosofia como criação conceitual precisa de consistência e imanência. Ou seja, o pensamento é um processo de criação que envolve traçar um plano, criar um conceito e inventar personagens conceituais.

Há um problema difícil de ser enfrentado nas entrelinhas do que foi comparado acima e que não está explicitamente escrito na obra e que, portanto, exige um trabalho de pesquisa. O problema poderia ser enunciado assim: por mais de uma vez, na obra O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari aproximam as noções de plano de imanência e de imagem do pensamento, quais seriam as diferenciações entre elas?

Não se pode tomá-las como dois modos de nomear a mesma coisa, pois o plano de imanência precisa se manter imanente somente a si mesmo, como condição do pensamento, senão corre-se o risco de fechar o sistema deleuze- guattariano e perder o contato com o caos como intensivo e potencialmente vivo.

O plano de imanência é chamado de pré-conceitual, no sentido de que é um arcabouço de vida, uma reserva para a criação. Como um horizonte de movimentos infinitos de direções e intuições, onde há apenas acontecimentos. Só que Deleuze e Guattari afirmam que “é ele que constitui a imagem do pensamento” (Qf, p. 48 [p. 40]), o que isso quer dizer?

A imagem do pensamento é uma definição do que cabe de direito pensar. A imagem do pensamento é uma das multiplicidades que habitam o plano também. Como afirma o pesquisador Axel Cherniavsky “criar conceitos e desenhar uma imagem do pensamento são as duas faces do mesmo processo” (2012, p. 269). Apesar do termo “mesmo” a citação acima apresenta uma interessante ideia de

que ao criar um conceito, um pensador também cria o que ele pode pensar. O filósofo opera essas quatro operações simultaneamente em seu processo criativo: a imagem do pensamento toma o filósofo toda vez que ele cria conceitos, agora ao criar conceitos ele erige um plano de imanência.

Já o plano de imanência é um traçado filosófico que põe em relação os elementos da criação filosófica, neste sentido é um plano de composição, que possibilita a convivência de uma multiplicidade em determinações recíprocas.

Nas ideias de um outro pesquisador, Philipe Mengue, é através da valorização da imanência que Deleuze (e porque não Deleuze e Guattari) dão suas principais contribuições a história da filosofia

é este última [a imanência], enquanto inseparável do pluralismo que dá sentido e vivifica toda a filosofia deleuzeana. As duas dimensões capitais nas quais nos reconhecemos à contribuição da filosofia deleuzeana, a teoria das multiplicidades (acontecimentos, singularidades, platôs, rizoma...) e a teoria da imagem do pensamento (denuncia dos obstáculos que desfiguram o pensamento como criação de conceitos e, correlativamente, a abertura das possibilidades de pensar outro) somente tem sentido em relação à imanência. É a imanência que centra e estrutura a teoria das multiplicidades nas quais se exprime o pluralismo e é ela que torna possível e fecunda uma nova imagem do pensamento defendida por Deleuze (1994, p. 29)

A imanência é o meio pelo qual a teoria das multiplicidades e as novas imagens do pensamento podem abrir-se para o pensamento ganhando consistência, sem cair na besteira de um relativismo absurdo, nem se fechar em um sistema. Por isso, os conceitos e a imagem do pensamento são criados sobre um plano de imanência.

O interessante aqui ao distinguir o plano de imanência da imagem do pensamento é observar o quanto as duas noções são importantes para Deleuze e Guattari, principalmente, quando delimitam algumas ilusões sobre a imanência em

O que é a filosofia?. A ilusão da transcendência, de tomar a imanência como

o plano, a ilusão do eterno, o esquecimento de que os conceitos são criados e a ilusão da discursividade, quando se confunde os conceitos com sua proposição (Qf, p. 62-62 [p. 50-51]). Como se esta passagem repetisse diferenciando os oito postulados criticados no capítulo 3 de Diferença e Repetição, particularmente os postulados sobre a representação, sobre a recognição e sobre a função lógica ou da designação (DR, p. 239-240 [p. 216-217]).

Dessa forma, Deleuze e Guattari estão recusando a problemática do fundamento, que perdura a história da filosofia, mas sem procurar uma saída da razão, e sim renovando a imagem do pensamento, como sendo capaz de pensar acontecimentos e singularidades (MENGUE, 1994, p. 25). Deleuze e Guattari não promovem uma irracionalidade, mas sim uma outra lógica – que pode ser uma Lógica do Sentido (como a obra de Deleuze, de 1969), ou uma Lógica do Acontecimento (na perspectiva de Zourabichvili) ou ainda uma lógica das multiplicidades (PP, p. 183 [p. 206]).

Por isso, esta tese quer usar a expressão “pedagogia do conceito” para designar: a) uma forma de dizer o que cabe de fato e de direito ao pensamento – é um pensamento sem imagem porque não possui pressupostos, mas começa e recomeça a cada encontro com signos que abrem um novo campo problemático e força a pensar; b) a consistência dos conceitos – dos diferentes conceitos dos diferentes filósofos, uma vibração interna entre a ontologia criativa e a didática inteligível dos conceitos filosóficos.

O importante em filosofia são as condições de criação e sustentação de conceitos, as relações entre seus componentes, os problemas que os animam, o plano de imanência que traça, os personagens conceituais que inventa. O trabalho do filósofo é de “co-adaptação” destas três operações, que estão em determinação recíproca, porque nenhum elemento pode ser deduzido do outro, eles são criados ao mesmo tempo. (Qf, p. 93 [p. 74]). E é tarefa do leitor se perguntar o que se passou quando se encontra com tal criação.

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