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CAPÍTULO DOIS: NOVAS QUESTÕES E DIREÇÕES SURGEM PARA O CARTÓGRAFO

Essa primeira inserção nesse campo nos possibilitou analisar alguns pontos mais gerais do modo como está sendo desenvolvida essa articulação no município de Teresina, tanto no que tange aos problemas na gestão, nos serviços quanto às dificuldades dos trabalhadores para efetivar um trabalho desinstitucionalizante com os PTM’s.

No entanto, ainda nos questionamos sobre vários pontos específicos da micropolítica dos processos de trabalho em saúde com os usuários PTM’s, uma vez que apontamos que a efetivação da articulação entre saúde mental e atenção básica está na modificação das relações que se estabelecem entre atenção em saúde e modos de gestão. Indago-me, sobre o que de fato se desenrola no cotidiano das unidades de saúde da família com esses usuários? Que correlações de saberes e poderes operam nesse espaço, em especial entre trabalhadores com nível superior e trabalhadores como os agentes comunitários de saúde? Que tipo de demanda em saúde mental as equipes de saúde da família acolhem? Como os técnicos fazem para identificar e o que consideram como demanda de saúde mental? Como agem diante de questões trazidas pela demanda em saúde mental, que casos acompanham e de que forma? Os casos encaminham ou articulam com a rede de serviços de saúde como, por exemplo, os CAPS, residências terapêuticas, hospitais gerais e psiquiátricos? Existe algum tipo estratégia ou proposta de ação em saúde mental sendo desenvolvida pelas próprias equipes nas unidades de saúde? De algum modo há discussão sobre casos de saúde mental nas equipes? Que desafios o campo da saúde mental na atenção básica provoca para os técnicos? Como é atender um PTM’s na ESF? Tem diferença em atender um usuário com transtorno

mental das outras demandas que chegam ao serviço; o que seria diferente? Os técnicos encontram dificuldades para trabalhar com essa demanda? Como lidam com essas dificuldades? Que ajustes têm que fazer nas suas práticas para realizar atividades com usuários PTM’s? A partir dos encontros que os técnicos vivenciam no serviço com PTM’s, eles consideram que a ESF tem capacidade para atender essa demanda? Enfim, que atravessamentos o trabalho com a “loucura” na ESF provoca nas práticas cotidianas destes profissionais?2

Com o objetivo de avançarmos, no que concernem as essas questões levantadas acima, se fez necessário circunscrevemos um estudo especifico na USF Ozeas Sampaio, localizada na zona norte de Teresina, com profissionais de diferentes categorias das equipes de saúde, sendo médicos, enfermeiros e agentes comunitários de saúde. Estudar especificamente os processos de trabalho e o cotidiano das equipes é de suma relevância, porque somente a partir deste olhar micropolítico sobre os processos de trabalho em saúde, podemos entender como esses trabalhadores e suas práticas são produzidas, tanto pelas instituições de formação, quanto pelos serviços e rede de serviço em que estão envolvidos, bem como pela comunidade e o encontro com os usuários. Vale ressaltar que ao mesmo tempo em que são fabricados, esses trabalhadores também fabricam os serviços. O trabalho em saúde na ESF é realizado em equipe, onde passam afetos, saberes, desejos e projetos. É uma mistura de criações que se fazem no entre, trabalhadores e trabalhadores, trabalhadores e usuários e entre trabalhadores/usuários e gestão. É uma produção que se opera no encontro da diferença e não das semelhanças. Enfim, através dessa nova inserção no campo podemos analisar os fatores que estão envolvidos nessas práticas cotidianas das equipes de saúde da família com os usuários

2 Essas questões nortearam a construção do roteiro de entrevista semi-estruturado que foi utilizado na

PTM’s, bem como refletir sobre os problemas e as estratégias que circundam essa articulação.

A escolha das equipes de saúde da família da Unidade de Saúde Ozeas Sampaio deveu-se inicialmente ao fato de que uma primeira tentativa de aproximação do trabalho em saúde mental na atenção básica em Teresina realizou-se lá, quando o CAPS - Norte do município, em novembro de 2006, realizou um treinamento específico com os agentes comunitários de saúde e outro com os demais técnicos das equipes da ESF dessa unidade.

Esse treinamento tinha como objetivo possibilitar a identificação dos casos de usuários que necessitassem de atendimento especializado em saúde mental e como se deveria proceder nestes casos. Quando não fosse viável realizar este trabalho na atenção básica, esses casos mais específicos seriam encaminhados para um serviço especializado em saúde mental. No caso esse serviço seria o CAPS - Norte, pois se encontra a aproximadamente três (3) quilômetros da referida unidade de saúde.

Outro fator preponderante nesta escolha foi nossa primeira inserção na rede de atenção básica em Teresina. Através de diálogos e observações em várias USF, especificamente nesta unidade, médicos, enfermeiros e ACS, relataram a existência de uma considerável demanda em saúde mental, com elevada utilização de benzodiazepínicos, bem como dificuldades no trabalho com usuários PTM’s. Essas dificuldades referem-se ao modo de como diagnosticar e que terapêuticas poderiam ser realizadas; como trabalhar com a família deste usuário e como trabalhar com este em situações de crise.

Os trabalhadores ainda relataram que na área de abrangência da USF, ocorrem diversos casos de tentativas de suicídio e até mesmo consumação de atos suicidas. Diversos casos de transtornos do humor, esquizofrenia, transtornos de ansiedade, mas a

prevalência é do transtorno de humor depressivo. Desse modo, realizar essa cartografia justifica-se pela possibilidade de avançarmos no campo dos processos de trabalho em saúde mental na atenção básica.

Com efeito, somente após uma nova tramitação do projeto de pesquisa, durante um mês, no Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Municipal de Saúde de Teresina (FMS) recebemos a autorização para adentrar a Unidade de Saúde Ozeas Sampaio e realizar as entrevistas com os técnicos das equipes de saúde da família. Durante esta tramitação no comitê de ética, diversas barreiras à pesquisa surgiram, pois os membros do comitê questionavam o referencial teórico da Análise Institucional e o aporte teórico que utilizamos e por ser uma pesquisa que utiliza a subjetividade do pesquisador para a “coleta de dados”. Diversas coisas me foram apontadas: que uma pesquisa que não seguisse um padrão positivista e objetivista não teria valor para a FMS. Sugeriram que eu mudasse meu instrumento de pesquisa, transformando em questões de apenas sim ou não.

Nesse momento, argumentava de acordo com tudo o que já está posto neste estudo, mas a situação só piorava, pois relatavam que pesquisar os processos de trabalho a partir de observação participante, de entrevistas semi-estruturadas era irrelevante; que eu estava “delirando” em querer discutir os modos de trabalho na saúde pública pela perspectiva de Elias Merhy, Gastão Campos, Ricardo Ayres e outros autores citados nesse escrito; que era um ano político, ou seja, que seria realizada eleição para prefeito da cidade e a fala dos técnicos poderia trazer prejuízos à imagem da FMS. Além disso, esses encontros em sua grande maioria foram marcados por grosserias, agressões verbais, onde me apontaram com idiota, ignorante, imaturo, incapaz por não perceber que o referencial cartográfico era inadequado, fui até mesmo expulso da FMS e outros dias, fui barrado de entrar lá, por que não desistia de tentar

argumentar o valor da minha pesquisa. E assim, fui perdendo potência, ficando sem forças, e quase desisti de realizar minha pesquisa. E de volta pra casa, dentro do ônibus, lembro de Rolnik (1989) apontando que o cartógrafo deve saber que é sempre:

[...] em nome da vida, e de sua defesa, que se inventam estratégias, por mais estapafúrdias. Ele nunca esquece que há um limite do quanto se suporta, a cada momento, a intimidade como o finito ilimitado, base de seu critério: um limite de tolerância para a desorientação e reorientação dos afetos, um limiar de “desterritorialização”. Ele sempre avalia o quanto às defesas que estão sendo usadas servem para defender a vida (Rolnik, 1989, p. 70).

Passados alguns dias do último encontro que tivera na FMS, questionei-me: será que realizarei minha pesquisa? Por que tantos obstáculos? Será que há algo tão errado que eu possa ver que comprometa uma eleição? Por que não posso utilizar-me desse referencial teórico? Será que é por causa dessas barreiras que existem poucas publicações sobre a saúde em Teresina? Que relação deve ser esta que os técnicos estabelecem com a gestão tão burocrática e hierárquica? Será por esses fatores tão rígidos que os processos de trabalho na ponta dos serviços são tão focalizados nas práticas médicas hegemônicas?

Novamente me convocaram na FMS, para me indagar sobre meu projeto e me encaminharam para uma trabalhadora especialista em saúde mental, a qual me interrogou durante 4 horas, eu colocando o que era toda essa construção teórica que vinha levantando, a qual apresentei a você, leitor, ao longo desse estudo, e como procederia minha pesquisa. Confesso que me incomoda relatar esse processo. Enfim, eles me liberaram para realizar a pesquisa de campo, com a ressalva de criar um Termo de Livre Consentimento Esclarecimento (Vide Anexo I). Declaro ainda que não sei por que liberaram. Se porque acreditaram na minha proposta, ou porque desejavam se ver

livres das minhas ligações diárias e idas à FMS, ou por causa alguma outra força que não sei explicar.

Por fim, seguimos adiante, apostando na cartografia como uma ferramenta potente para fazer emergir novos sentidos para esse campo. Desse modo, nos preparamos para retornar ao campo.

CAPÍTULO TRÊS: O CARTÓGRAFO PREPARA SUAS FERRAMENTAS,