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Finalmente, a liberdade tão sonhada: em outubro de 2008, Walter deixou a clínica em Itapecerica da Serra. Porém, antes de voltar a ser dono de seu nariz, ainda precisou cumprir uma fase intermediária, durante um mês, quando cada passo dado tinha de ser comunicado aos terapeutas. Havia avaliações na unidade da clínica Greenwood localizada na avenida Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo, destinada a pacientes logo depois da alta. Além de se submeter a sessões de terapia, era observado de perto pelos profissionais para averiguar se continuava sem usar qualquer droga.

Na prática, saíra do regime fechado e entrara em uma espécie de “condicional” a fim de provar que estava pronto para voltar plenamente ao convívio social. Durante esse período, morou em um flat na praça Roquete Pinto, na confluência das avenidas Pedroso de Morais e Faria Lima, no Alto de Pinheiros. Radiante de alegria, ele me ligou contando a boa-nova e marcamos de almoçar no sábado. Naturalmente, os profissionais da clínica foram avisados sobre o compromisso: iria se encontrar com o jornalista Gilvan Ribeiro no restaurante Fidel, em tal lugar, em tal horário, tintim por tintim.

Porém na sexta-feira ele telefonou desmarcando o encontro, porque a ex-mulher de Marcelo Fromer, o guitarrista dos Titãs morto por atropelamento em 2001, ligara propondo um almoço naquele sábado. Ana Cristina Martinelli, a Tina, estava de partida para Portugal e queria se despedir de Casagrande, que tivera estreita amizade com o músico — um dos projetos interrompidos de Fromer era escrever a biografia de Casão. Combinamos, então, que eu iria ao flat mais tarde, por volta das dezesseis horas. A alteração de planos teve de ser avisada à clínica, em todos os seus detalhes.

Assim, cheguei ao flat às quatro da tarde e o encontrei agitado, assistindo a um dvd de rock pauleira, ac/dc, metal pesado. Fumava um cigarro atrás do outro, como eu nunca tinha visto. Fiquei preocupado, já que esperava vê-lo mais tranquilo. Ele assegurou que estava bem, apenas ansioso por estar de volta ao mundo externo. Conversamos um pouco sobre o projeto do livro e assuntos variados, até que seu celular tocou. Era um ex-interno da Greenwood, disposto a visitá-lo com sua namorada, também ex-paciente da clínica. Ele concordou, apesar de todos os riscos que envolviam a decisão.

Não gostei nada daquilo. Uma das regras impostas pela clínica é justamente a proibição de ex- internos se encontrarem. A restrição existe por razões óbvias. O que todos eles têm em comum? Claro: o uso desmedido de drogas. Nada mais natural, portanto, que as conversas versassem sobre experiências do passado, algumas com sabor de aventura — o que potencialmente é capaz de atiçar o desejo tão combatido. E Casa ainda estava sob observação. Qualquer pisada na bola poderia lhe custar o regresso a Itapecerica da Serra.

Eu não queria desempenhar mais uma vez o papel de grilo falante. Afinal, o sujeito já era bem grandinho. Só o adverti, de leve, sobre as possíveis consequências. Mesmo assim, ele autorizou a subida do jovem casal, aparentemente adolescente, e ainda permitiu que estacionasse o carro em sua garagem. Ao alugar um apartamento, ele tinha direito a uma vaga no estacionamento do flat, mas não a usava, porque ficara a pé desde o acidente. Dessa forma, deixou mais uma pista dessa visita

inesperada, além do número no celular: a placa do veículo visitante iria ficar registrada no sistema de computadores do flat. Meu Deus!

A visita do casal durou uma hora e pouco. Permaneci um tanto mais e logo me despedi: começava a anoitecer, e Casa precisava tomar os remédios prescritos pelos psiquiatras para relaxar e dormir. O bom-senso mandava tratá-lo como convalescente. Quando me acompanhou até a porta, me fez um incômodo pedido: “Você pode conversar na recepção e colocar a chapa do seu carro como ocupante da minha vaga no estacionamento?”. Não aceitei aquela proposta indecente. Logo eu que discordava daquilo tudo! Expliquei que não poderia cometer uma fraude, algo contra os meus princípios, e ainda abriria o flanco para ser acusado de acobertar atitudes perigosas para um dependente químico em fase crucial do tratamento. Ele me olhou como se eu fosse um traidor da pior espécie, mas não insistiu. “Beleza, até mais, então...”, limitou-se a dizer.

Por mais que ele não admita ter me retaliado, não há dúvida de que sentia mágoa. Simplesmente não me telefonou mais e parou de atender minhas ligações. Ainda deixei recados em sua caixa postal, mas não recebi nenhum retorno. Interrompemos, assim, a nossa convivência por mais de um ano. Desisti de procurá-lo e toquei a minha vida. O projeto do livro estava engavetado.

Tempos mais tarde, quando voltamos a nos encontrar, Casão atribuiria o sumiço repentino a uma orientação da psiquiatra. Ele ainda não estaria pronto para contar a própria história e reviver passagens capitais — para o bem e para o mal — que lhe deixaram marcas ao longo dos anos. Algo bastante compreensível, sem dúvida. Porém, por que não falar disso abertamente, tanto para mim como para a editora? “Eu não sabia como dizer não, ainda mais pelo nível de envolvimento a que já tínhamos chegado com a ideia do livro. Precisava de mais tempo para trabalhar uma série de aspectos na terapia”, justificou-se quando nos reaproximamos, ao retomar sua coluna no Diário de S.

Paulo.

Só então fiquei sabendo que a rebeldia de encontrar ex-internos da clínica, ainda em processo de reabilitação, havia queimado, de fato, seu filme com os terapeutas que avaliavam sua evolução. Uma turminha se formara a partir daquele momento: pacientes se reuniram outras vezes e saíram juntos, apesar da proibição expressa. Alguns deles tiveram recaída. Somente ao constatar, por experiência própria, o perigo daquelas companhias, em plena tentativa de virada em sua vida, Casão resolveu cair fora. Chegou a confessar o delito aos terapeutas, esperando apenas uma advertência. Mas as regras da Greenwood são inflexíveis. Os profissionais recomendaram à família um novo período de internação em Itapecerica da Serra. Ele só não voltou a ser confinado graças à firmeza de Victor Hugo, que acreditou na capacidade de o pai seguir seu próprio caminho e fazer suas escolhas. Os dois, inclusive, passaram a morar juntos.

Claro que ele não ficou sem nenhum apoio terapêutico. Depois da ruptura com a clínica, uma psiquiatra e três psicólogas foram contratadas para ajudá-lo a reorganizar a vida e a lidar com as emoções e os sentimentos guardados por tanto tempo, durante o uso mais intenso das drogas. Chegara a hora de mergulhar em si mesmo, se conhecer melhor e resgatar as relações familiares,

relegadas a segundo plano até então.

Como seriam a volta ao trabalho, a convivência com os amigos e os parentes, o julgamento das pessoas em geral? Afinal, seu drama se tornara público a partir do acidente de carro e a consequente internação. Era necessário medir cada passo para atenuar possíveis preconceitos que poderiam desestabilizá-lo e provocar nova queda no precipício. Um desafio colossal o esperava.