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2. Capacidades estatais: condições de ação para a promoção da participação

2.2. Capacidades estatais em quatro dimensões

O olhar para as capacidades estatais pode ser direcionado a fatores que favorecem atividades do Estado voltadas à garantia da paz, do crescimento econômico, do bem-estar da população e, porque não, da democracia. Assim, cabe também conhecer o que a bibliografia diz a respeito das capacidades estatais que potencializam a democracia, em particular, no que tange às formas interativas de relações socioestatais para a gestão de políticas públicas. De início, a noção de poder infraestrutural do Estado (MANN, 1993) ajuda no entendimento das capacidades estatais, pois há um aspecto explicitamente relacional nessa ideia.

Soifer & Hau (2008), ao apresentarem as ideias de Mann (1993) sobre o poder infraestrutural do Estado, possibilitam o entendimento que tal poder seria o mesmo que capacidades estatais. O poder infraestrutural estaria nas condições para o Estado desenvolver seus projetos de maneira coordenada com organizações territorialmente localizadas e também nas conexões organizacionais que potencializam tais capacidades. Para os autores, não são apenas as atividades administrativas que possibilitam as ações do Estado, mas, em especial, as conexões entre os agentes estatais e não estatais. Portanto, nas capacidades estatais estariam as condições internas de ação (recursos disponíveis e modo de organização da burocracia), além dos arranjos institucionais que possibilitam as interações socioestatais.

Importante alertar que para Soifer & Hau (2008), seguindo Mann (1993), capacidade é o poder de implementar políticas públicas e controlar o território, podendo

52 ser feito com ou sem a sociedade. Da leitura de Mann (1993), depreende-se que capacidades podem ser criadas de muitas maneiras, nem todas democráticas. A capacidade pode ser obtida, inclusive, com repressão à sociedade para efetivar políticas e controlar territórios. No entanto, com a noção de poder infraestrutural, esses autores indicam que a relação com a sociedade pode aumentar o poder de implementar políticas públicas. Argumentam que, quando isso acontece, o poder da sociedade também aumenta, explicitando o caráter relacional das capacidades estatais já apontado por Evans (1993) com a noção de autonomia inserida.

Como dizem Soifer & Hau (2008, p.4), a natureza relacional do poder infraestrutural “permite aos analistas passarem de debates que justapõem o Estado e a sociedade como oponentes para examinar a variedade de formas de interação”8. Essa

perspectiva facilita o reconhecimento das múltiplas formas de interação socioestatal e amplia o entendimento sobre as capacidades estatais que não se restringem ao modo de organização interna da burocracia, mas que envolvem a sua forma de funcionamento e os múltiplos modos de relação com a sociedade.

Também com a perspectiva relacional, outra parte da bibliografia compreende capacidade estatal incluindo as interações socioestatais explicitamente em contextos democráticos. Um Estado capaz é aquele que tem condições de mediar as demandas para executar as políticas delas derivadas. Contribui com esse entendimento a visão de Grindle (1996, p. 7) em que o Estado capaz é aquele que tem condições de "ser responsivo às demandas e pressões de grupos societais e de ser hábil para mediar demandas sociais e manter instituições que são efetivas na resolução de conflitos"9.

Esse entendimento abre espaço para uma compreensão multidimensional das capacidades estatais, pois ali estão componentes de mediação de demandas e conflitos sociais, bem como de efetividade das instituições. Além disso, quando a autora traz a noção de responsividade, possibilita afirmar que o funcionamento de processos participativos está entre as condições para a ação do Estado. Assim, as capacidades

8 No original: “The relational nature of infrastructural power allows analysts to move past debates that juxtapose state and society as opponents to examine the varied forms of their interaction.” (SOIFER & HAU, 2008, p.4)

9 No original: “capable states had to be responsive to the demands and pressures of societal groups and to be able to mediate social demands and maintain institutions that were effective in resolving conflict.” (GRINDLE, 1996, p. 7)

53 estatais são condições para formular, decidir e executar políticas públicas, mas não de maneira independente da sociedade. As capacidades são recursos disponíveis para a ação, são condições de ação do Estado, circunstâncias que levam o Estado ao efetivo desempenho, mas isso sempre em conexão com a sociedade.

A noção de capacidades estatais como condições para a ação estatal em conexão com a sociedade permite pensá-las em quatro dimensões: institucional, política, administrativa e técnica. Essa ideia vem a partir da perspectiva multidimensional de Grindle (1996) que compreende capacidades estatais nesses quatro aspectos. O interesse dela era levantar hipóteses para sua pesquisa sobre a crise dos anos 80 e 90 na América Latina e África. No entanto, seu entendimento sobre capacidades estatais foi inspirador para a compreensão aqui desenvolvida.

Para Grindle (1996), as capacidades institucionais são o poder de fazer valer um conjunto de regras. São capacidades institucionais com base na compreensão de instituições como regras que orientam comportamentos. Trata-se da condição para definir regras que efetivamente orientem comportamentos de agentes sociais e econômicos. É a capacidade de “afirmar a primazia das políticas nacionais, as convenções coletivas e as normas de comportamento social e político sobre outros agrupamentos”10, ou melhor, “de

fazer cumprir o conjunto de regras que regem interações econômicas e políticas”11

(GRINDLE, 1996, p. 8-9).

As capacidades políticas dão base para as capacidades institucionais quando trazem legitimidade para as regras do jogo. Tratam das condições para incorporar as demandas sociais à decisão política com responsividade. Estão diretamente ligadas à interação socioestatal, pois indicam a abertura à participação social na gestão pública e apontam ao Estado a necessidade de apresentar respostas às demandas sociais. Como diz Grindle (1996, p. 10), capacidades políticas são “capacidades de Estados responderem a demandas sociais, possibilitando canais para a representação de interesses e a incorporação da participação social na tomada de decisões e resolução de conflitos”12.

10 No original: “Ability to assert the primacy of national policies, legal conventions, and norms of social and political behavior over those of other groupings.” (GRINDLE, 1996, p. 8).

11 No original: “the ability of states to set and enforce the broad sets of rules that govern economic and political interactions.” (GRINDLE, 1996, p. 9).

54 As capacidades administrativas tratam das condições de operação da organização estatal para a entrega de bens e oferta de serviços públicos. É uma importante dimensão das capacidades, pois afeta as condições para agentes sociais e econômicos atingirem seus objetivos já que se trata do atendimento a necessidades básicas como a administração de infraestrutura e serviços essenciais. Em Grindle (1996), podem ser vistas como a forma de funcionamento cotidiano da burocracia na gestão de bens e serviços públicos.

Para a autora, as capacidades técnicas são o conjunto de conhecimentos disponíveis para a análise da realidade e proposição de soluções. Refere-se diretamente à presença e disponibilidade de corpo técnico qualificado em posições com condição de ação para influenciar o contexto. Aqui se destaca as competências de integrantes da burocracia ou de colaboradores que o Estado pode mobilizar para gerir informações e desenvolver soluções apropriadas para determinada situação. Nesse caso, mais importante que deter tais conhecimentos é ter equipe qualificada com condições para a ação no contexto em questão.

A perspectiva multidimensional não resolve e até agrava a ardilosa confusão gerada pela bibliografia a respeito de capacidades estatais. Há lugares, como nesta tese, em que capacidade se assemelha a um insumo para um processo, ou como aqui é dito: condição para a ação estatal. Em outras visões, capacidade é um resultado de um processo, como o poder de executar uma ação. No primeiro entendimento, Estado capaz é aquele que tem recursos adequados para o alcance de um objetivo. Na segunda compreensão, Estado capaz é aquele que alcança o objetivo. E não se trata apenas do momento em que se fala (antes ou depois da ação), mas da capacidade como entrada (input) ou como saída (output) do processo estatal.

Em Grindle (1996), a dimensão institucional pode explicitar essa confusão, pois traz a ideia de ‘fazer valer as regras’. Isso pode ser visto como um resultado que é a obediência ou cumprimento das normas estabelecidas. No entanto, a capacidade nessa dimensão é a condição para definir regras que sejam cumpridas, quase como a legitimidade para orientar comportamentos. Capacidades estatais institucionais são as

interests, and incorporate societal participation in decision making and conflict resolution.” (GRINDLE, 1996, p. 10).

55 circunstâncias que possibilitam a definição de regras que são cumpridas e não a aquiescência às normas.

Também pode gerar dúvida a identificação isolada da dimensão institucional. Afinal, na lógica de capacidades como resultado, é comum percebê-las como força institucional. Nesse pensamento, todos os outros âmbitos poderiam ser fundidos. Assim, Estado capaz seria aquele com enforcement derivado de aspectos políticos, administrativos e técnicos. Para a intenção analítica desta tese, não é útil essa fusão, pois com ela são perdidas nuanças de cada um dos aspectos. Considerando que a presente pesquisa busca capacidades estatais necessárias à promoção da participação social, fundir as diferentes facetas das capacidades poderia impedir a percepção do que é específico ao desenho e desenvolvimento de processos participativos. Por isso, há aqui a defesa da compreensão das capacidades estatais em quatro dimensões.

Reconhecendo as quatro dimensões das capacidades estatais é possível diferenciar condições de legitimidade (institucionais), de relacionamento (políticas), de operação (administrativas) e de conhecimento (técnicas) para a ação estatal. Nesse entendimento multidimensional, a coerência corporativa (critérios meritocráticos no recrutamento e na progressão funcional), a concentração de conhecimentos e habilidades em um corpo administrativo (burocracia qualificada) e o enforcement (poder de fazer cumprir regras e executar políticas) seriam alguns dos aspectos das capacidades estatais e não a totalidade, quando vistos de forma integrada e não isolada.

Nesta tese, capacidade estatal é entendida como condição (input, entrada ou insumo) de um processo estatal. Capacidades estatais são recursos institucionais, políticos, administrativos e técnicos que dão base para uma ação do Estado. Vale a distinção de cada um dos âmbitos, pois isso não restringe a noção de capacidades a atributos do aparato burocrático, desconsiderando as relações socioestatais. Inclusive, pela dimensão política, seria cabível dizer que as condições são geradas na sinergia socioestatal. Caem por terra entendimentos que defendem a constituição de agências estatais insuladas e capazes quando podem bloquear influências sociais.

Um Estado democrático capaz é aquele que tem condições de mediar as demandas de diferentes sujeitos políticos e executar as políticas públicas daí decorrentes. Nesse entendimento, as relações socioestatais podem ampliar as condições para a ação do

56 Estado no regime democrático. Afinal, elas potencializariam a mediação de conflitos e a efetividade das políticas. Se considerada a institucionalização da participação como integração de processos participativos às estruturas de gestão pública, por um lado, seria possível percebê-la como oportunidade de fortalecimento das capacidades estatais. Por outro lado, seria possível considerar a necessidade de organização interna, geração de condições, ou mobilização de recursos organizacionais, ou seja, capacidades estatais para a execução desses processos. A segunda perspectiva é aqui desenvolvida. Por isso, será apresentada a ideia de capacidades estatais para a promoção de processos participativos.

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