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1 DA MULTIDÃO À PARTICIPAÇÃO – CONCEITOS ESSENCIAIS

1.4 CAPITALISMO COGNITIVO E A VIRTUALIZAÇÃO DA ECONOMIA

A economia contemporânea é uma economia virtualizada, em que as atividades dependem muito mais da informação e do conhecimento, tornando-se bens econômicos. Segundo Lévy (1996), além da economia, as noções de mercado e trabalho estão mudando. O ciberespaço abre um mercado novo, um espaço no qual os papéis dos consumidores, produtores e intermediários transformam-se e perdem suas barreiras. Para o autor, a informação e o conhecimento “são regidos por duas leis que tomam pelo avesso os conceitos e os raciocínios econômicos clássicos: consumi-los não os destrói, e cedê-los não faz com que sejam perdidos” (LÉVY, 2006, p. 62).

Como explica Benkler (2006), trata-se de bens não rivalizantes, em que o uso por um indivíduo não inviabiliza a utilização deste por outros. Com isso, a economia clássica, centrada na raridade dos bens, acaba sendo confrontada com uma economia da abundância, desterritorializada e virtualizada.

Para Lévy (1996), o saber faz parte de um fluxo em que não apenas os especialistas, mas uma grande massa de pessoas, é levada a aprender, transmitir e produzir conhecimentos de maneira cooperativa. Com a “desintermediação” provocada pelas redes digitais “o consumidor não apenas se torna coprodutor da informação que consome, mas é também produtor cooperativo dos mundos virtuais nos quais evolui” (LÉVY, 1996, p. 63).

Os produtos e serviços mais valorizados no novo mercado são interativos, o que significa, em termos econômicos, que a produção de valor agregado se desloca para o lado do consumidor, ou melhor, que convém substituir a noção de consumo pela de coprodução de mercadorias ou de serviços interativos. Assim como a virtualização do texto nos faz assistir à indistinção crescente dos papéis do leitor e do autor, também a virtualização do mercado põe em cena a mistura dos gêneros entre o consumo e a produção. (LÉVY, 1996, p. 63-64)

Assim, Benkler (2006) afirma que a era atual adentra em uma economia da informação em rede, centrada na produção da informação, cultura, e na manipulação de símbolos, na qual os indivíduos são livres para observar, responder, questionar e debater, permitindo uma maior participação, diferentemente das mídias de massa.

Com isso, pode-se observar a emergência de uma ruptura do capitalismo dentro de seu próprio sistema, dando origem ao chamado capitalismo cognitivo. Como explica Boutang (2003), não se tem mais a sociedade-fábrica industrial, mas a empresa-sociedade. O valor está na sociedade, na população, nos saberes implícitos, nos processos cognitivos e na cooperação social.

Corsani (2003) aponta que o capitalismo cognitivo pode ser considerado fruto da integração das novas tecnologias de informação, que permitem a produção, circulação e acumulação de conhecimentos em escala global, valorizando a inteligência, a criatividade e a cooperação. Por esse sistema, passa-se da lógica da reprodução em direção a uma lógica da inovação, em que o que está em questão é menos a economia do conhecimento que as mudanças provocadas na atribuição de valor.

Partindo desse pressuposto, Jollivet (2003) destaca a importância das tecnologias relacionais que permitem a criação de relações interpessoais, a produção de redes sociais e a formação de comunidades. Trata-se aqui de um processo que permite a existência de um trabalho cooperativo em rede, em que a produção e difusão do saber afirma-se em uma forma organizacional particular: as redes sociocognitivas, nas quais a inovação cognitiva torna-se indissociável da construção de vínculo e mudança social.

Essas redes ligam entre si indivíduos cujo modo de relação principal não é a hierarquia. Assim, o trabalho nessas redes mobiliza de modo central, capacidades de auto-organização de comunicação e cooperação. O trabalho cooperativo reticular não é, portanto apenas conduzido pelo uso das NTIC, mas participa igualmente da formação de uma economia ‘baseada no saber’. (JOLLIVET, 2003 p. 98)

Assim, a invenção e a inovação tornam-se fundamentais para o sistema. Como explica Corsani (2003), graças às tecnologias, os conhecimentos circulam sem depender do capital ou do trabalho por meio de trajetórias sustentadas por aportes criativos cumulativos, cooperativos e socializados. Para autora, essa produção de “conhecimentos por conhecimentos” representam a ideia da passagem do regime de reprodução para um regime de inovação.

Bustamante (2012) explica que a industrialização, a mercantilização e a transformação precoce da cultura, de um sistema fordista ao pós-fordista, foram responsáveis por uma reconversão geral do sistema econômico. A partir das ideias de Lacroix e Tremblay (1997), o autor explica que as habilidades exigidas aos trabalhadores nas novas condições são muito parecidas com o que é exigido nos setores culturais e de comunicação, como a criatividade, qualidade do produto, flexibilidade, versatilidade, imaginação e novidade. Dessa forma, os autores questionam: “ao mesmo tempo em que o capitalismo absorve as atividades da cultura e comunicação, no sentido da sua lógica, poderá também ver-se ‘contaminado’ pelas suas características?” (LACROIX; TREMBLAY, 1997, apud BUSTAMANTE, 2012, p. 47).

As redes digitais também estão imersas em uma cultura da dádiva. Coelho dos Santos (2002) lembra que a lógica da dádiva está presente em um grande número de práticas sociais, como por exemplo, a cultura hacker ou a construção de

softwares open source. Essa cultura é formada por três pilares básicos: dar, receber e retribuir. Quem doa recebe reconhecimento, reputação, autoridade, poder, qualidades que podem ser mais valiosas que bens e serviços. Isso estabelece uma espécie de dívida, que jamais é liquidada, pois quando a retribuição é possível, esta é automaticamente transferida para o outro – nesse caso, o doador. Essa premissa sustenta a Economia da Dádiva ou da Doação (Gift Economy). Antoun e Pecini (2004) explicam que, nesse tipo de economia, o primeiro passo em uma relação de parceria não é a demanda, mas a oferta, como no caso das redes de compartilhamento peer to peer, em que os arquivos estão disponíveis sem cobrança. O ganho é a reputação.

Assim, pode-se perceber que os sistemas de crowdsourcing e crowdfunding estão plenamente inseridos na lógica das redes de trabalho cooperativo e de uma economia virtualizada. No caso do crowdfunding, a ausência da mediação, substituída pela Internet faz com que o produtor cultural entre em contato diretamente com o seu público, que tem o poder de escolha e financiamento em suas mãos. Em outra instância, a mudança no contexto sociotécnico permite a confiança dos doadores e facilita os procedimentos financeiros. É importante ressaltar que as grandes empresas e o mercado, seguindo a lógica da inovação que nasce com o capitalismo cognitivo, estão se apropriando cada vez mais dos sistemas de crowdsourcing e crowdfunding para criar canais de interação com os consumidores.