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Para Gurevich (1960), as ações voluntárias apresentam três principais características:

a) Tomada de consciência

A tomada de consciência constitui a primeira característica dos atos voluntários. Para Gurevich (1960), o conhecimento do fim a ser atingido não é sinônimo de que o indivíduo esteja de acordo com ele e nem que tomará a decisão de atuar em sua direção, tendo em vista que ter a consciência de um fim e decidir alcançá-lo são dois estágios diferentes das ações voluntárias, que podem estar distantes uma da outra. Neste ínterim, as crianças podem encontrar dificuldades para alcançar determinado

objetivo, as quais podem colocar em ação conflitos internos de aceitação ou rejeição deste fim. A escolha, para Vygotski (1995) é o elemento responsável pelo domínio da própria conduta.

Não existe liberdade de escolha sem as influências externas, pois mesmo em situações em que a decisão recorre à sorte, o homem faz sua escolha perante tantas outras disponíveis. Ademais:

Temos comprovado que a complexidade dos motivos, a dificuldade da eleição e, sobretudo, a existência de momentos emocionalmente mais atraentes ou repelentes contribui para que a criança utilize com maior frequência a sorte [...] (VYGOTSKI, 1995, p.287).

No decurso de sua vida, o ser humano se defronta com inúmeras possibilidades de escolha frente aos objetos, pessoas, situações e rumos a serem trilhados. A escolha volitiva conta com o apoio dos chamados motivos auxiliares, que ajudam o indivíduo a tomar a melhor decisão, como explicam os autores:

Este motivo auxiliar é organizado mentalmente pela própria pessoa e é resultado das suas diferentes vivências (que são lembranças de situações correlatas vivenciadas, ideias, aprendizagens, opiniões recebidas por terceiros, o estabelecimento de comparações, etc [...] É importante destacar que os motivos auxiliares não são processos psíquicos que tomam as decisões pelas pessoas, não as forçam a agir; ajudam, todavia, no processo de tomada de decisão dando destaque a algumas das opções presentes. Os próprios indivíduos são aqueles que tomam suas decisões (SELAU; BOÉSSIO, 2012, p.5-6).

Em decorrência das condições em que se instalam os motivos auxiliares é que reforçamos que a escolha é determinada pelas condições sociais e experiências do indivíduo; portanto, o ato volitivo não é dado, mas desenvolvido.

As possibilidades de escolha também são impostas das mais variadas formas ao sujeito, pois como assinalou Gurevich (1960) tomar consciência de um fim exige do sujeito a reconsideração do alcance ou não desse fim, por meio da comparação de argumentos que estão a favor e contra ele antes da tomada de decisão. O autor descreve algumas possibilidades de escolha/eleição:

• situações de incompreensão dos fins, mas que exige do sujeito a eleição de um deles. Exemplo: a escolha da profissão futura – o fim a ser perseguido deriva de distintos motivos, mas o sujeito precisa escolher apenas uma

profissão, que pode ser determinada por necessidades específicas (prazer, valor social da profissão, remuneração);

• circunstâncias que colocam o sujeito em dúvida quanto à eleição por se tratar de fins atraentes. Exemplo: escolha do local para passar as férias, na praia ou campo;

• ocasiões em que fins indispensáveis competem entre si e o caráter da escolha se refere àquele que deve ser realizado primeiro. Exemplo: a compra de um carro ou uma casa, ambos indispensáveis para o sujeito. A decisão dependerá daquilo que o sujeito considera ser importante de realizar primeiro, como a compra da casa em virtude de seu casamento;

• casos em que o indivíduo tem que escolher fins agradáveis e até mesmo desagradáveis em decorrência de um dever social. Exemplo: contar ou não um erro cometido no trabalho. O fim, sem dúvida é desagradável, mas a escolha de contar pode ser guiada por um motivo relevante, como, por exemplo, seu dever social perante o grupo.

As situações nas quais o indivíduo precisa escolher um fim dentre outros de mesmo valor exige um esforço de vontade particular no processo de eleição do indivíduo:

A base material fisiológica do esforço da vontade, assim como a dúvida, para escolher objetivos de ação são relações mútuas complexas, que aparecem nestes casos, entre os processos de excitação e inibição do córtex cerebral (GUREVICH, 1960, p.391)

Há uma espécie de “luta” entre estímulos excitatórios e inibitórios, com a dominância de um dos estímulos que inibem os demais. É a fase da escolha do fim/objetivo.

b) Tomada de consciência dos meios necessários para alcançar determinado fim Gurevich (1960) explica que a tomada de consciência dos meios necessários para alcançar determinado fim é um caminho que pode estar claro ou ainda obscuro para o sujeito. O antagonismo entre a escolha de meios mais fáceis e difíceis pode ser influenciado pelo dever social, pois entra em ação o conflito de interesses particulares e sociais. Exemplificando: um aluno pode simplesmente copiar uma tarefa de outro colega, o que não lhe renderá esforço em sua realização; porém, os motivos

e interesses sociais fazem com que este aluno, se esforce para realizar a tarefa sozinho, pois passa a tomar consciência de sua importância. A atividade voluntária exige esforço e consciência dos motivos/interesses.

c) Resolução do problema

A resolução do problema, muitas vezes não é executada imediatamente ou é iniciada, mas não terminada: “Mas, precisamente, a execução do proposto é que caracteriza a voluntariedade. Se não se realiza a decisão tomada não há ato voluntário” (GUREVICH, 1960, p.392). Segundo o autor, há uma série de circunstâncias que fazem o indivíduo desistir de buscar o fim, tais como: dificuldades na execução das ações, imprevistos ou obstáculos no caminho, dúvida em relação ao fim escolhido, falta de cuidado ao tomar a decisão, estado emocional negativo, dentre outras.

Discordamos do autor pela radicalidade do seu pensamento. Gurevich (1960) enfatiza que a execução do proposto é que caracteriza a voluntariedade. Acreditamos que a execução de determinado fim - mesmo que não seja aquele inicialmente planejado/idealizado – caracteriza o cumprimento na ação. Dentro de nossa concepção, o não cumprimento da ação, como a desistência da criança em resolver determinado problema é que caracterizaria um ato não voluntário. Houve esforço na resolução do problema – outra característica dos atos voluntários. Consideramos que o processo e concretização da solução de um problema sejam mais relevantes quando se fala em voluntariedade que a simples ação de não realização da decisão tomada, visto que a criança, diante de problemas adotou outras estratégias na sua resolução, ela não deixou de executar a atividade, regulou seu comportamento em direção a algo. É uma visão mais edificante em relação ao conceito da atividade voluntária.

Pensando na concepção mais ampla da voluntariedade, Smirnova adota a perspectiva de Ivannikov, que a determina como a forma voluntária de motivação:

Desse modo, a voluntariedade se compreende como o domínio de seus próprios impulsos. Se a partir deste ponto de vista nos dirigimos a gênese da voluntariedade na idade infantil, então se pode falar de seu início somente no momento em que a criança se torna capaz de dirigir suas próprias motivações e criar os novos sentidos pessoais (isto é, dar-lhe outro sentido novo à situação (SMIRNOVA, 2010, p.51).

O ingresso na escola do Ensino Fundamental desenvolve no estudante a necessidade de condução da própria conduta. Os meios de ter consciência desta nova situação social – “a de escolar” – implica novo estímulo para cumprir suas obrigações. A atividade de estudo emerge como a atividade principal e o aluno aprende a dirigir seus processos psíquicos e sua conduta na regulação de sua atividade. O estudante aprende a dispender atenção deliberada sobre um conteúdo que não lhe agrada porque passa a tomar consciência da importância de sua aprendizagem.

Na escola, a criança não pode fazer unicamente o que quer, mas deve fazer fundamentalmente o que se exige. Deve subordinar todas as suas ações a estas exigências. É capaz de renunciar um jogo interessante, uma conversa, um passeio interessante, em benefício da atividade escolar, apenas porque o motivo para isto é sua nova situação entre os amigos e na família, sua categoria de escolar (GUREVICH, 1960, p.400).

A consciência e a voluntariedade constituem as neoformações da idade escolar, fruto das aprendizagens específicas nessa etapa do desenvolvimento (VIGOTSKI, 2001). Assim: “[...] a idade escolar constitui o período mais propício para o ensino de disciplinas que se apoiam ao máximo nas funções conscientizadas e voluntárias” (PASQUALINI, 2006, p.177).

O cumprimento das exigências escolares constitui uma excelente via para o desenvolvimento da voluntariedade. No entanto, nem sempre jovens e adolescentes realizam atos voluntários com “maturidade”, como um processo que envolve conflitos e dificuldades na execução de tarefas, fazendo com que sofram profundamente para fazer suas escolhas e eleger os meios para alcançá-los, gerando comportamentos inesperados. Mediante tais circunstâncias, adultos costumam proteger os jovens e adolescentes de tais dificuldades, conduta que não promove a educação da atividade voluntária (GUREVICH, 1960).

Por isso, para o desenvolvimento da autoeducação da voluntariedade, o conteúdo do trabalho educativo deveria pautar-se:

[...] na organização coletiva, na organização das exigências do indivíduo, a organização das tendências reais, vivas e com um fim do indivíduo junto com o grupo (MAKARENKO, 1951, p.391).

[...] nos motivos vitalmente importantes, escolher fins e meios para alcançár- los que se fundam com os fins da coletividade e dirige-se em direção a eles, superando os obstáculos. Praticando-se em alcançar estes fins o indivíduo adquire o hábito de realizar atividades voluntárias (GUREVICH, 1960, p.403).

Depreendemos que os atos volitivos são aprendidos e dependem das condições concretas da vida de cada indivíduo, pois como já visto, os adultos (família, educadores, professores) são influenciadores diretos sobre as formas de pensamento e conduta da criança, aonde a linguagem desempenha função reguladora do comportamento de outra pessoa: “A linguagem [...] é um desses poderosos meios de influência sobre a conduta alheia” (VYGOTSKI, 1995, p.290).

É pela linguagem, especificamente a palavra, que a criança aprende a se subordinar às ações do adulto, assimilando-as e iniciando o processo de formação de imagens, da atividade reflexiva que conduz à organização de ações futuras:

As formas complexas da atividade nervosa superior da criança formam-se no decurso da comunicação com os adultos; neste processo, a linguagem é assimilada e em breve se transforma estavelmente, de meio de generalização, em instrumento do pensamento e em instrumento para regular o comportamento. Pode-se dizer que cada ação isolada do comportamento se forma na criança com a participação da linguagem, que sistematiza a experiência anterior e dirige o comportamento ativo (LURIA, 1997, p. 94).

Isso quer dizer que o adulto regula o comportamento da criança por meio da atividade verbal. Quando o adulto diz ao bebê “Pegue a bola”, este realiza a ação em função da palavra do adulto, uma relação na qual “Um indivíduo ordena e outro cumpre" (VIGOTSKI, 2004, p. 113). Inicialmente, as ações das crianças subordinam- se às instruções verbais dos adultos, que regulam seu comportamento. Depois, a criança passa a assimilar os meios de organização destas ações e ela mesma utiliza a linguagem verbal externa para dirigir suas ações: "O indivíduo ordena a si mesmo e ele mesmo cumpre” (VIGOTSKI, 2004, p. 113). Este progresso é perceptível quando a criança diz “Vou fazer isto”, situação em que o dizer e fazer coincidem como processos simultâneos. Posteriormente, estas ações se interiorizam e se complexificam como um ato mental:

[...] ela mesma começa a formar imagens das suas ações futuras. A palavra, que reflete as conexões e as relações da realidade e descreve os métodos das ações futuras, a palavra dirigida como uma ordem a alguém, converte-se rapidamente, durante o desenvolvimento, num dos meios mais importantes da auto-regulação do comportamento (LURIA, 2007, pp. 111-112)

Eis a consolidação da regulação verbal da conduta, em que ações subordinadas se convertem em mecanismos de controle intencional e reflexivo de suas próprias atividades. É pela intercomunicação adulto-criança, mediada pela

linguagem, que as funções psicológicas elementares se transformam em funções psicológicas superiores; as ações involuntárias passam a ser voluntárias; a linguagem não-intelectual se transforma em racional e o pensamento não-verbal em verbal. É nesse caminho que sucede o controle consciente e voluntário das formas de ação e pensamento da criança.

2.4 Desenvolvimento dos Atos Voluntários e do Pensamento em Crianças: o