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Características da fábula

CAPÍTULO I Mímesis na ação

1.2. Ação

1.2.1. Características da fábula

Após dedicar-se aos seis elementos qualitativos da tragédia, Aristóteles, nos capítulos VII e VIII da Poética, explora os conceitos de totalidade e de unidade, elementos que devem estar presentes na composição dos atos. Há interpretações que sugerem que, a partir do capítulo VII, haveria uma exposição de componentes que formaria um conjunto homogêneo designado como a teoria da fábula44.

O primeiro componente a ser explorado é a totalidade. A compreensão do termo é apresentada a partir de uma bifurcação do mesmo em duas características, sendo “um todo que tem certa grandeza”: o todo e a grandeza45 (ARISTÓTELES, 1973a, p.449 - 450). A primeira característica refere-se às três partes da tragédia: princípio, meio e fim. Podemos entendê-las a partir de uma caminhada: imaginemos uma pessoa que começa a percorrer um caminho hipotético partindo do ponto A, percorrendo uma determinada distância

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Na versão que estamos utilizando ora esse arranjo das ações é traduzido por composição dos atos, ora por

trama dos fatos. Há diversas traduções para indicar a disposição das ações: arranjo dos incidentes, disposição das ações, l’assemblage des actions accomplies, etc.

44 Isso é sugerido por Eudoro de Souza. Apêndice da Poética. ‘Comentário capítulo VII’, pp. 486-487. 45

chamada B, terminando-a no ponto C. O ponto A é o princípio, o B é o meio e o C é o fim. A fábula deve, aqui, ser composta respeitando esses três pontos, e estes não poderiam começar e terminar ao acaso46. A seqüência das partes estaria disposta de tal maneira que uma pessoa em contato com uma peça, por exemplo, não chegaria ao fim se perguntando: ‘o que vem depois?’ (ROSS, 1981, p. 400). Do mesmo modo, o início deve ser de tal maneira inteligível que não suscite à pessoa a pergunta: ‘por que isso está acontecendo?’(1981, p. 400). A fábula, com início, meio e fim, não deveria apresentar, pois, uma composição onde não se perceba os motivos pelos quais uma peça começa e termina.

Ao apresentar a segunda característica do primeiro componente como a grandeza, Aristóteles anuncia que uma obra de arte, para ser ‘bela’, depende de um tamanho apropriado, pois “o belo – ser vivente ou o que quer que se componha de partes – não só deve ter essas partes ordenadas, mas também uma grandeza que não seja qualquer” (ARISTÓTELES, 1973a, p. 449). A passagem que segue da Poética sugere uma comparação entre o tamanho de um objeto e a extensão de uma tragédia. Para um objeto ser ‘belo’, ele não pode ser nem pequeno, pois confundiria a visão, tampouco pode ser se o fosse grande demais, pois “faltaria a visão do conjunto, escapando à vista dos espectadores a unidade e a totalidade” (1973a, p. 450). Assim como um objeto deve ser de tal tamanho para que seja possível a sua apreensão pela visão, a tragédia deve ter uma certa extensão que seja apreendida pela memória. Tendo em vista que uma das finalidades da tragédia seria suscitar a catarse, uma peça, onde houvesse uma extensão que ultrapasse a apreensão da memória, comprometeria o efeito desejado, transformando-o em fadiga (ROSS, 1981, p. 400).

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Os capítulos VII e VIII da Poética se complementam na medida em que a totalidade faz parte da unidade e vice-versa. Por um lado, a totalidade garantiria que nenhuma das partes venha a ser suprimida de uma peça, e, por outro lado, a unidade faria com que nenhuma dessas partes suprimidas esteja em outra parte que não na sua própria parte47. A primeira frase do capítulo VIII assinala que una é a fábula, mas sua unidade não está contida em uma personagem, pois “muitas são as ações que uma pessoa pode praticar, mas nem por isso elas constituem uma ação una” (ARISTÓTELES, 1973a, p. 407).

Disso pode-se explorar uma compreensão de fábula importante para o nosso trabalho. A ação, aqui, refere-se a ‘imitação’ de um objeto uno, isto é, parece que ela pode ser encontrada em uma peça quando esta apresenta uma linha condutora que vai do início ao fim da mesma: o que poderíamos chamar de uma ação principal. Desse modo, para o filósofo, a composição do objeto deve apresentar-se una de tal maneira que “todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que, uma vez suprimido ou deslocado um deles, também se confunda ou mude a ordem do todo” (ARISTÓTELES, 1973a, p. 407). Caso mudássemos a parte de uma peça, essa, deslocada, mudaria a ordem de toda a peça, ou se mudássemos uma parte e essa não alterasse o todo, poderíamos dizer que ela não faz parte da unidade, “pois não faz parte de um todo o que, quer seja quer não seja, não altera esse todo” (1973a, p. 407)48.

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Esses argumentos são sugestões de Eudoro de Souza. Apêndice da Poética: ‘Comentário capítulo VIII’, p. 487.

48 Neste capítulo o filósofo desenvolve uma noção de unidade que tem como pano de fundo a épica, contudo,

as interpretações apontam para que esta regra deveria ser estendida para toda a poesia austera, abrangendo também a tragédia. Sugestão de Eudoro de Souza Apêndice da Poética: “Comentário capítulos VIII”, p. 487.

A composição da fábula revela aquilo que poderia acontecer. A conexão do capítulo VIII ao capítulo IX indicaria tal interpretação. Por exemplo, aquilo que poderia acontecer se dá em uma peça na medida em que se apresenta sob a regra de causalidade - pois toda vez que acontece uma ‘ação’ que, por sua vez, faz com que outra ‘ação’ dela decorra, temos uma relação de causalidade aristotélica. Nessa perspectiva aristotélica, quando Édipo, por exemplo, vai à frente do palácio e anuncia que encontrará o culpado dos males que sangram as terras tebanas, não se poderia chegar ao final da peça sem que ele o tenha encontrado – interpretação decorrente da noção de causalidade. A fábula necessita que determinados ‘efeitos’ cumpram as ‘causas’. Nesta relação, procura-se o fim, o responsável deve ser descoberto, e os acontecimentos, ordenados em um determinado tempo, asseguram com isso composição una à obra, a ‘imitação’ una de um objeto.

Parece-nos que a perspectiva adotada pelo filósofo contempla a elaboração objetiva do drama, isto é, como as partes constitutivas de uma peça deveriam ser arranjadas para atingir um fim determinado, por exemplo, um cumprimento oracular anunciado no início é cumprido ao seu final49. Se nos escritos aristotélicos a preocupação da composição da ação se dá, então, a partir de uma objetivação das ações, pois o foco de estudo na Poética não é as forças propulsoras que levam o ser humano a agir, veremos, em uma retomada posterior, que o estudo do drama se abre também em uma perspectiva que destaca a vontade das personagens - o que nos proporcionará uma ampliação da compreensão da arte dramática.

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Embora possa haver aqui uma espécie de elaboração da fábula que pode conferir ao objeto ‘imitado’ um sentido determinado pelo ethos – onde as ações encontrar-se-iam no âmbito da ética, obtendo resultados como um ‘modelo exemplar’ -, não adentraremos nesse ponto, pois nosso interesse recai sob uma compreensão de teatro que valoriza ações, e não as suas conseqüências morais.

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