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CARACTERÍSTICAS DA NARRATIVA DOCUMENTAL

CAPÍTULO II A NARRATIVA DOCUMENTAL

2.3 CARACTERÍSTICAS DA NARRATIVA DOCUMENTAL

O documentário parece manter-se como um gênero fundamental ao Realismo no cinema. Ele propõe-se a falar de fatos verídicos. A questão é como falar. Mesmo no início do cinema, muito antes das trucagens de hoje, que tornaram a realidade totalmente manipulável do ponto de vista da imagem, o modo de se falar de um fato real já estava colocado como uma questão importante. Nesse momento, chega-se a outro conceito, o de ética, que deve estar presente em todas as manifestações humanas. Se as possibilidades técnicas do cinema são amplas, o documentarista pode e deve lançar mão das que achar interessantes ao seu trabalho,

sabendo das conseqüências estéticas e de conteúdo das opções que fizer. O que ele não pode é anunciar como realidade pura aquilo que transformou.

No entanto, um tema realista pode ser apresentado de uma maneira bastante pessoal, enquanto um filme de ficção pode se valer de imagens de situações reais para contar uma história inventada.

No cinema, a subjetividade do diretor oferece uma imagem artística da realidade. Não sendo o documentário uma reprodução do real isenta de influência artística, como ser fiel à realidade interferindo o menos possível? A partir de uma história e imagens reais, é a narratividade que vai determinar se o filme é documental ou não. É o modo de contar os fatos que vai garantir a verossimilhança ao filme. Portanto, é na narrativa que está a arte cinematográfica.

Sebastião Squirra (1993, p. 28) propõe “uma divisão básica para o gênero documentário”. Ele sugere três correntes: os cinejornais ou jornalismo cinematográfico; ideológicos, como os filmes sobre reformas sociais nos Estados Unidos, encomendados pelo então presidente Roosevelt, cujo espírito é a emoção e a tensão; e os de propaganda, interessados em persuadir e distorcer os fatos, como os filmes que vendiam os ideais nazistas. Essa divisão entre propaganda e ideologia é muito tênue, pois ambos pretendem persuadir e emocionar.

José Carlos Avellar (apud Moraes, 1996, p. 80) propõe outra reflexão: a que aproxima os gêneros documental e ficcional. Segundo o cineasta, eles inspiraram-se uns nos outros, apesar das especificidades de cada um. Avellar discute o significado da realidade que caracteriza o filme documental:

Acho que da mesma forma que se pode falar que a ficção se inspirou num impulso documental, temos uma produção documental que se inspirou no impulso da ficção, na medida em que o documental não é um registro consciente interferindo na

realidade mesmo, discutindo, explicando o ponto de vista de um narrador que está ali, que ele é “uma” visão da realidade e não “a” visão da realidade. E discutindo a visão que ele tem e a visão transformadora que ele tem daquela realidade.

Jean-Claude Bernardet e Alcides Freire Ramos concordam: “Os documentários, assim como os filmes de ficção, estão sujeitos às manipulações mais variadas” (1988, p. 42). Mas Marcel Martin (2003, p. 21-22)ressalta:

A imagem fílmica restitui exata e inteiramente o que é oferecido à câmera, e o registro que ela fala da realidade constitui, por definição, uma percepção objetiva: o valor probatório do documento fotográfico ou filmado é um princípio irrefutável, ainda que sejam possíveis truques [...]. A imagem fílmica, portanto, é antes de tudo

realista, ou melhor dizendo, dotada de todas as aparências (ou quase todas) da realidade.

Percebe-se, então, que o limite entre filme documental e ficcional também é muito tênue, apesar das especificidades de cada gênero. Afinal, por mais inventada que seja a história, o filme de ficção registra a realidade posta diante da câmera e, por outro lado, por mais verídica que seja a história do filme documental, ela pode ser manipulada no processo de produção fílmica. Ao definir um enquadramento16, por exemplo, o diretor já escolheu o recorte da realidade que deseja mostrar. O pesquisador Miguel Pereira17 afirma: “O documentário convida o espectador para ver a realidade a partir de um ponto de vista”. O cineasta Silvio Tendler (apud Moraes, 1986, p. 130) é taxativo em não diferenciar documentário de ficção:

Não acredito nessa dualidade entre ficção e documentário, acredito em cinema. [...] Acredito que o ficcionista, se quiser, pode fazer uma grande viagem e um filme

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16

Enquadramento, segundo Marcel Martin (2003, p. 35), é um fragmento da realidade. Trata-se do espaço imaginal a ser mostrado ao espectador.

17 Essa afirmação foi feita em palestra realizada no dia 5 de novembro de 2002, na cidade do Rio de Janeiro, no

extremamente ligado à realidade. O documentarista também tem o direito de sonhar com imagens. Então não acredito nessa dualidade.

Jean-Claude Bernardet (2001, p. 37) exemplifica essa não dualidade através do processo de montagem.

Na montagem descartam-se determinados planos, outros são escolhidos e colocados numa determinada ordem. Portanto, um processo de manipulação que vale não só para a ficção como também para o documentário, e que torna ingênua qualquer interpretação do cinema como reprodução do real.

A narrativa, do ponto de vista do enredo, tanto o filme documental quanto o ficcional também se assemelha quando se utiliza da mesma fórmula aristotélica para contar uma história: apresentação de personagens/tema, seguido do conflito que vai despertar a curiosidade do espectador e o desenlace que traz a solução do problema ou os caminhos para se resolver o(s) conflito(s). Umberto Eco (1987, p. 326-327) exemplifica:

O cinema, com efeito, pelo menos nas suas formas tradicionais, habituara o espectador a uma espécie de narrativa concatenada e construída segundo passagens necessárias, segundo as leis da poética aristotélica: série de acontecimentos terríveis e patéticos que ocorrem a uma personagem capaz de determinar uma identificação simpatética por parte do espectador; desenvolvimento desses acontecimentos até o máximo da tensão e da crise; desenlace da crise (e dos nós dramáticos), com conclusão e pacificação das emoções postas em jogo.

Apesar das semelhanças, cada gênero possui características específicas, que ultrapassam a diferença de conteúdo verídico/inventivo. Durante a elaboração do argumento, que é a base para o roteiro de um filme, Doc Comparato (1995, p. 339) ressalta uma característica a que o documentarista deve estar atento:

Um bom documentário nunca se acaba, jamais encerra um tema. Mostremos os fatos de um máximo de pontos de vista possíveis e deixemos ao espectador as interpretações. O documentário que se preza não pretenderá convencer o espectador, mas fazê-lo refletir sobre aquele tema.

Os filmes documentais, portanto, vão além de registros históricos. Eles buscam a conscientização e transformação da sociedade. Para isso, o documentarista retrata a realidade na tentativa de interferir o menos possível. Segundo Doc Comparato (Ibidem, p. 341), “A máxima de um bom documentário é o seu compromisso com a verdade.”

Em geral, é o som que potencializa a impressão de realidade e “Aumenta o coeficiente de autenticidade da imagem; a credibilidade [...]”, como afirma Marcel Martin (2003, p. 114). Na ficção, é um recurso que “Por mais realista, raramente é utilizado de forma bruta (Ibidem, p. 117)”.

No começo do cinema sonoro, registravam-se praticamente todos os sons que o microfone podia captar. Mas logo se percebeu que a reprodução direta da realidade dava uma impressão confusa e que os sons deveriam ser “selecionados”, da mesma forma que as imagens (René Clair apud Martin, 2003, p. 117).

Já no filme documental, o som direto18 é o mais usual. É o recurso utilizado em sobe-som19 e entrevistas que vai garantir a verossimilhança ao filme. Mas Bresson (apud Martin, 2003, p. 246) alerta que “O real bruto por si só não nos mostra o verdadeiro: apenas sua representação fílmica pode conferir-lhe a verdade, ou pelo menos a verossimilhança”.

Alberto Cavalcanti (1953, p. 76) adverte os documentaristas brasileiros para a utilização correta do som produzido em estúdio:

NÃO use música em excesso: se você o faz, a audiência deixa de ouvi-la;

NÃO sobrecarregue o filme com efeitos sonoros sincronizados: o som nunca é melhor do que quando empregado sugestivamente. Sons complementares constituem a melhor banda sonora.

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18 Som captado no exato momento da filmagem, sem efeitos de mixagem.

Martin (2003, p. 251) identifica quatro formas de usar o som real de forma realista: através das falas, que incluem os diálogos e monólogos exteriorizados (em O tesouro de Sierra Madre, Huston); da música (orquestra, aparelho de rádio) que “Pode adquirir um valor de contraponto simbólico em relação à situação ou às falas (a abertura da ópera Egmont em As portas da noite – Carné)”; dos ruídos, assim como na música; e até mesmo do silêncio, que tem um papel dramático, simbolizando angústia, ausência, solidão, perigo, morte.

Outra característica peculiar do filme documental é presença da voz em off20, chamada no Brasil, simplesmente de voz-off , como explica Mary Ann Doanne (1983, p. 459):

No Brasil, como na França, usa-se em geral a expressão voz-off para toda e qualquer situação em que a fonte emissora da fala não é visível no momento em que a ouvimos. Nos Estados Unidos, há uma distinção entre: (1) voz-off, usada especificamente para a voz de uma personagem de ficção que fala sem ser vista, mas está presente no espaço da cena; (2) voz-over, usada para aquela situação onde existe uma descontinuidade entre o espaço da imagem e o espaço de onde emana a voz, como acontece, por exemplo, na narração de muitos documentários (voz autoral que fala do estúdio) ou mesmo em filmes de ficção quando a imagem corresponde a um flashback, ou outra situação, onde a voz de quem fala vem de um espaço que não corresponde ao da cena imediatamente vista.

Essa diferença vale apenas como registro, pois, em toda a pesquisa, será usado o termo voz em off para identificar o narrador, ou seja, a voz que está em off em relação à imagem. “Na história do documentário, essa voz é predominantemente masculina [...]”, afirma Mary Ann Doanne (1983, p. 467). Essa voz que vem do estúdio é também chamada por Bernardet (2003, p. 16-17) de “voz do saber”, “De um saber generalizante, que não encontra sua origem na experiência, mas no estudo sociológico (...)” e nunca fala em primeira pessoa. Ao contrário, os entrevistados são identificados como a “voz da experiência”, aquela

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20 Esta pesquisa acrescentará uma preposição entre os termos voz-off por entender que, em verdade, a voz é on,

que representa o universo cognitivo de quem fala. E quando essa voz está em off, Jean-Claude Bernardet (Ibidem, p. 70) classifica-a como um “locutor auxiliar”. Trata-se do entrevistado que fala sem retorno da imagem. Ele fala como um locutor em off, mas pode usar a primeira pessoa.

Características à parte, o documentarista Albert Maysles, em palestra intitulada Cinema documentário: estética, conteúdo e mercado, realizada no II Fórum Internacional de Documentário21, defende sua opção pelo gênero:

Acho que deveríamos conhecer mais o mundo real do que o imaginário. Se fosse assim, os americanos estariam mais conscientizados politicamente. Digo isso, baseado nas eleições que tivemos ontem e não estaríamos caminhando para mais uma guerra.

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21 Essa afirmação foi feita em palestra realizada no dia 6 de novembro de 2002, na cidade do Rio de Janeiro, no

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