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2. Plano dos capítulos

2.1 As Áreas de Proteção Ambiental no contexto do Sistema Nacional de Unidades de

2.1.2 Características específicas

É interessante notar, como o faz Cozzolino (2006), que ao analisarmos as APAs apenas no que tange às restrições impostas pela sua existência em determinado território37, percebemos que a maior parte destas restrições já está estabelecida em outras bases legais (Código Florestal, Lei de Crimes Ambientais...). Para o autor, restrições como ordenamento de uso do território, controle e normatizações ao desenvolvimento de atividades potencialmente degradantes ao meio ambiente, terraplanagens, proteção de espécies raras entre outras, devem ser consideradas como coações que, apesar de já contidas em outros instrumentos jurídicos, por motivos didáticos e operacionais demandam a estrutura legal de uma Unidade de Conservação para serem efetivas.

Nessa perspectiva, se o objetivo das APAs for somente restritivo, elas não têm razão de existir. Sua existência significa apenas a assunção, por parte do governo, que uma política ambiental para todo o território nacional é inviável, e por isso é necessário criar APAs em áreas específicas que exigem atenção especial.

Por isso é fundamental deixar claro que os objetivos de uma APA não são somente

37 Conforme especificado em seus instrumentos legais (Resolução Conama 10/1988, Decreto 99.274/1990, Lei do

77 restritivos, e sim que a criação dessa categoria intenta o desenvolvimento de um processo de planejamento territorial.

Considerando-se, portanto, as especificidades das APAs em relação às outras categorias de Unidades de Conservação estabelecidas, pode-se perceber que ela é a única categoria que pretende, ao mesmo tempo, conservar a diversidade ecológica, promover o uso direto e sustentável dos recursos e disciplinar a ocupação humana, visando o estabelecimento de um processo de desenvolvimento territorial sustentável. Pretende, portanto, transcender a dicotomia entre “conservação” e “desenvolvimento”.

Como especificidade desta Unidade, podemos citar também que é a única categoria em que o SNUC prevê a formação de um conselho sem determinar se o mesmo deve ser de caráter jurídico consultivo ou deliberativo38. Além disso, é a única categoria (excluindo-se as Reservas Particulares de Patrimônio Natural) que não tem zona de amortecimento39 e que permite terras de domínio particular em seu interior, questão cujas conseqüências merecem ser melhor detalhadas.

No que concerne à dominialidade das terras, percebemos que, ao permitir propriedades privadas em seu interior a situação dominial das terras não se altera quando uma APA é criada. Mas, ao mesmo tempo em que não é exigida a desapropriação, o uso econômico dos recursos deve ser disciplinado através de normas e regras que visem compatibilizá-lo com a proteção da natureza no longo prazo. Essas limitações de natureza ambiental em uma propriedade privada inserida na APA podem ocorrer em razão da incidência do princípio da função social da propriedade, desde que elas (as limitações) não inviabilizem economicamente a propriedade, o que caracterizaria em uma desapropriação indireta, isto é, uma desapropriação na qual, ao mesmo tempo em que o direito de “ter” permanece inalterado, o direito de “usufruir” é afetado. (CABRAL, CÔRTE & SOUL, 2000; PAIVA, 2003; VIANA & GANEM, 2005; BRITO, 2000)

De acordo com Cabral et al, 2002 (apud VIANA & GANEM, 2005) esse risco da desapropriação indireta por meio de uma regulação que inviabilize economicamente a propriedade exige que o processo de regulamentação das atividades no interior da Unidade seja feito de forma muito criteriosa, principalmente em regiões em que o potencial econômico da propriedade é maior.

38 Como não está determinado na Lei do SNUC se o conselho das APAs é de caráter consultivo (como o dos Parques,

Reservas Biológicas, Estações Ecológicas, Florestas Nacionais entre outras categorias) ou deliberativo (como o das Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável), cada APA criou o conselho com um caráter diferente. Isto só mudou em 2003, com o Parecer 005/CONJUR/MMA/2003, que definiu que conselhos de APAs devem ser consultivos, pois tratam de decisões referentes a territórios que possuem propriedades privadas em seu interior. Tal decisão gerou uma série de conflitos no interior de conselhos que possuíam caráter deliberativo e tiveram de mudar para consultivo, como foi o caso da APA de Guaraqueçaba/PR. Esse debate será melhor detalhado no Quarto Capítulo.

39 “entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade” (Lei 9985/2000, Art. 2º, XIX).

78 Para o autor, estabelecer restrições ao uso do direito de propriedade sem compensação alguma - como é o caso das APAs - é uma situação potencialmente geradora de conflitos. E, considerando-se que a Lei do SNUC não é clara no que concerne a essas limitações e apenas afirma que, “respeitados os limites constitucionais, podem ser estabelecidas normas e restrições para a utilização de uma propriedade privada”, este potencial conflitivo torna-se ainda mais evidente.

Essa questão foi tratada também por Cabral, Côrte & Soul (2000):

“O intuito de tratar aspectos ligados a questões relacionadas a limitações administrativas ao direito de propriedade, num texto que tem por objetivo discutir a temática da gestão ambiental em APA decorre do fato de uma APA ser, antes de tudo, um diploma legal que interfere no exercício deste direito, também legalmente constituído, restringindo-o, sem que haja a perspectiva de desapropriação. Este fato gera conflitos que precisam ser bem compreendidos para que o sistema gestor possa equacioná-los de maneira adequada.” (CABRAL, CÔRTE & SOUL, 2000: 122)

Diante disso, se torna uma questão candente para a gestão das APAs: quais os limites da intervenção estatal sobre a propriedade privada? Ou ainda, como conciliar os “interesses comuns” da Unidade de Conservação com os “interesses particulares” dos proprietários e com a “função social” da propriedade?

Outro conflito muito comum refere-se às relações entre os diferentes órgãos públicos responsáveis pela gestão do território, havendo uma sobreposição de atribuições, muitas vezes de maneira fragmentada e desordenada. Para exemplificar esse potencial conflito cabe mencionar dois instrumentos de gestão ambiental das APAs: o licenciamento ambiental das atividades potencialmente poluidoras e os Planos de Manejo.

No que se refere ao licenciamento ambiental, conforme a Resolução Conama nº 237/1997, é obrigatório que haja manifestação da autoridade responsável pela gestão da unidade de conservação quanto aos empreendimentos que serão inseridos no interior da Unidade. O órgão licenciador é obrigado, portanto, a ouvir o responsável pela gestão da Unidade de Conservação, seja o chefe da Unidade, seja o conselho gestor, em todos os empreendimentos passíveis de licenciamento.

De acordo com o tipo de obra a ser licenciada e a área de abrangência dessa obra e de seus impactos, o licenciamento é competência ou dos órgãos municipais (quando os impactos decorrentes são de abrangência local), ou dos estaduais (quando os impactos são regionais), ou ainda do federal (quando são impactos interestaduais). Ainda que inserida em uma APA, a competência para o licenciamento de uma obra não está vinculada, portanto, à esfera governamental responsável pela gestão da Unidade, mas à natureza do impacto ambiental (municipal, regional, nacional...). E, geralmente, os impactos nestas Unidades de Conservação são de âmbito local ou

79 regional, portanto, de competência dos órgãos municipais e estaduais de licenciamento.

Considerando-se esta obrigatoriedade de anuência do gestor da Unidade de Conservação, que conseqüentemente exige a participação de outro órgão além do licenciador, de uma esfera de governo diferente, como fazer isso ao mesmo tempo de maneira ágil e participativa? Como não haver sobreposição e sim complementaridade entre as diferentes esferas responsáveis pela gestão?

Vamos ao segundo exemplo de conflitos entre esferas de governo, o relativo aos Planos de Manejo.

Toda Unidade de Conservação, incluindo as APAs, deve ter um Plano de Manejo, documento responsável pelo norteamento da gestão da Unidade de Conservação. Este Plano de Manejo necessita conter, no mínimo, um diagnóstico da Unidade de Conservação (em seus múltiplos aspectos sociais, ecológicos, econômicos...), um zoneamento ambiental (com a definição de diferentes restrições e usos dos recursos naturais, dependentemente das zonas) e programas ambientais.

Porém, como afirma Viana & Ganem (2005), estes planos de manejo de Unidades de Conservação, quando existem, são instrumentos extremamente caros, de difícil elasticidade (pois são instrumentos legais), de difícil revisão e que, geralmente, não conseguem acompanhar o processo dinâmico do território.

“O zoneamento deve se constituir num instrumento permanente do processo de planejamento e não num estado ideal congelado em mapas por anos e anos. A forma como o zoneamento tem sido considerado tem contribuído para que este se mostre ineficaz, como instrumento facilitador na tomada de decisões e na mediação de conflitos entre o uso de solo e a conservação dos recursos naturais. As dificuldades apontadas acima, muitas vezes, se referem à forma como o zoneamento é elaborado e considerado” (CÔRTE, 1997: 95- 96)

Mas, além de custosos e estáticos o problema maior se refere à relação entre os Planos de Manejo e os Planos Diretores Municipais. Observa-se que, nas duas APAs estudadas com maior profundidade, a relação entre o órgão federal responsável pela Unidade (e pelo Plano de Manejo) e os órgãos municipais (responsáveis pelos Planos Diretores) é extremamente frágil e de pouco diálogo (apesar da existência dos conselhos gestores que, pelo menos teoricamente, deveriam contribuir para essa inter-relação e construção conjunta de instrumentos de planejamento territorial). Como resultado, observa-se nas duas APAs processos de planejamento territorial sem uma vinculação direta entre as diferentes esferas responsáveis, criando, assim, mais uma “oportunidade” para os conflitos.

80 ajuste do método tradicional de gestão de Unidades de Conservação, é necessário um novo paradigma de planejamento e gestão, com alto grau de participação e integração entre os diferentes atores da sociedade civil e do poder público.

Na próxima seção será discutida a situação atual de implementação desse “novo paradigma de planejamento e gestão”, observando como os gestores avaliam os espaços de participação existentes.

2.2 As Áreas de Proteção Ambiental hoje: uma panorâmica

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