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Caracterização da atividade artística nacional (1960-2000)

No documento Arte têxtil contemporânea e sustentabilidade (páginas 130-142)

Gisella Santi (1922-2006)349 foi, em Portugal, uma das promotoras da nova conceção de arte têxtil, tendo desempenhado um papel pioneiro muito dinâmico na criação têxtil artística portuguesa atual, com intensa atividade na divulgação e no ensino da tapeçaria experimental.

Originária de Veneza, chega a Portugal em meados dos anos cinquenta, depois da segunda guerra mundial ter desagregado a sua família. Companheira de um professor pintor/restaurador de afresco e pintura, Marino Guandalini (1909-1969)350, que vem desempenhar em Portugal uma atividade no restauro, montando uma oficina de restauro de

346 André Kuenzi distingue três categorias de arte têxtil: a mural, herdeira da tapeçaria tradicional que se expõe verticalmente nas paredes; a

espacial, frequentemente tridimensional, que se pode circundar; e a ambiental, mais próxima da instalação e que permite a penetração do observador.

347 Referimos na primeira pessoa a observação desta discussão de forma recorrente aquando da participação nas conferências promovidas

pela Contextile 2012, em 2 e 3 de outubro de 2012. Mesmo dentro da European Textile Network existem estas duas correntes, claramente assumidas pelos seus representantes como dois campos distintos em que uns e outros argumentam.

348 Este tipo de discussão tem uma atualidade cada vez mais percetível por este fenómeno se ter expandido a quase toda a produção artística

de maior referência, verificando-se a nomeação autoral como uma marca da conceção da obra produzida por técnicos operacionais em oficinas, tal como acontece nas manufaturas oficinais de tapeçaria. Assim, parece estar a surgir uma tendência difusa que liminarmente denomina de ―artesanal‖ a obra concebida e realizada pelo próprio autor, seja qual for o seu registo estético ou funcional. Observamos também uma crescente rejeição de assinatura da obra, tornando-se essa opção manifesta nos autores que utilizam as suas criações como guerrilha urbana.

349

Gisella Santi, catálogo, Almada, Casa da Cerca, 2003. Na Bienal de Arte Têxtil de Guimarães, Contextile de 2012, uma das exposições satélites foi dedicada a Gisella Santi, numa mostra monográfica. Contextile, Bienal Internacional de Arte Têxtil, catálogo, Guimarães, Ideias Emergentes, 2012, pp. 136-139.

350 Os dados biográficos do pintor Marino Guandalini não são facilmente acessíveis, pelo que as referências do seu período de existência,

foram cedidas pela investigadora Ana Maria Gonçalves, que realizou uma investigação na área da arte têxtil contemporânea portuguesa na FBAUL: GONÇALVES, Ana Maria, Tapeçaria Contemporânea Portuguesa (1969-2002). Antecedentes e Protagonistas do Século XX, tese de mestrado em Ciências da Arte, Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, 2015.

130 peças têxteis antigas, onde Gisella se inicia, para de seguida montar uma oficina/escola que progressivamente vai ganhando alguma notoriedade, procura e dimensão.

Se antes Gisella, que desejava desde jovem ser artista, se assumia como pintora, a partir de então é através dos têxteis que se realiza criativamente. Para esse salto, para além do seu desejo criador, tiveram importância a revelação de uma outra perspetiva da arte têxtil que através das Bienais de Lausana foi veiculada.

Com outras autoras, entre as quais a escultora Flávia de Monsaraz (1935), que se dedica à nova linguagem da tapeçaria, da qual se afasta cerca de quinze anos depois351, Gisella Santi foi cofundadora da ARA Cooperativa de Tapeçaria e, em 1978, fundou o Grupo 3.4.5 -

Associação da Tapeçaria Contemporânea Portuguesa352, estabelecido em volta da sua oficina353 e precursor da produção de tapeçaria experimental em Portugal, influenciando muitos outros autores. Gisella Santi ―gostava de congregar pessoas à volta da arte têxtil (…)‖354, como que revigorando e reescrevendo o sentido longínquo narrativo e congregador da atividade têxtil, ―(…) o atelier no n.º 345 da Avenida Infante Santo, torna-se local quase

único para o encontro de artistas têxteis‖.355

Depois dela, outros artistas se desenvolveram, já com um caminho aberto em tendências diversas, trilhando e consolidando a expansão criativa e tecnológica da arte têxtil internacional até à atualidade.

Alves Dias (1952), com formação de pintor, no início da sua produção plástica integra o

Grupo 3.4.5 e frequenta assiduamente o atelier/oficina de Gisella Santi, onde estabelece em

definitivo uma relação amorosa com a arte têxtil e com as diversas possibilidades que ela proporciona ao ato criativo. Integrando-se plenamente no meio artístico do têxtil contemporâneo, participa nas diversas exposições do Grupo 3.4.5. Em algumas obras bordadas, sentimos às vezes um paradoxo feminista em Alves Dias, quando nos lembramos de Rozsika Parker (1945-2010)356 ao defender o bordado como experiência libertadora das mulheres, trazendo-o para o nível da arte e da comunicação expressiva. A participação de

351 Não podemos deixar de assinalar a relação da criação têxtil com a posterior orientação de Flávia de Monsaraz, o estudo da astrologia,

ambas com uma ligação profunda com as narrativas ontológicas. De um ponto imediato, existe uma forte relação semântica e visual do cruzamento dos fios na rede com os traçados das cartas astrológicas que realiza atualmente.

352 Este grupo fez uma exposição denominada Tapeçaria Contemporânea Portuguesa – Grupo 3.4.5, em junho de 2000, no Museu dos

Lanifícios da Universidade da Beira Interior, na Covilhã.

353 O nome do grupo advém precisamente do número da porta do seu atelier, situado em Lisboa, na avenida Infante Santo, n.º 345. Esta

situação de pormenor vem refletir o desejo de autonomia de Gisella Santi.

354 SANTI, Orenzio, ―Gisella Santi‖, Contextile - Trienal de Arte Têxtil Contemporânea, catálogo, Guimarães, Ideias Emergentes, 2012, p.

136.

355

Idem.

131 Alves Dias na Contextile de 2014, é disto demonstrativa, ao apresentar quatro pequenas obras em que a primazia da expressão narrativa é dada ao bordado. Afastando-se da ortodoxia técnica, as suas obras são tratadas criativamente e trabalhadas com uma sensibilidade, rigor, tensão simbólica e metodologia conceptual que justificam a complexidade semântica intimista e poética, o que denota um autor com grande maturidade técnica e estética.357

Graça Delgado (1948) trabalha o têxtil em escala franca como se de frescos se tratasse. Partindo de pesquisas próprias, como o tingimento natural das fibras, usa como expressão formal o carimbo, o recorte e a colagem, recortes que criam percepções de luz e sombra.

Ana Abreu (1954), desenhando como quem escreve com agulha e linha, desenvolve obras que trazem à memória a fixação das sombras projetadas dos lençóis de Lourdes Castro, embora com maior nitidez pela cor forte da linha e pormenor gráfico, mas decididamente têxtil, em todas as suas intervenções.

Rosa Godinho (1955), com as suas intervenções em objetos já manufaturados em rendas, assumidos como ready-made, sobre os quais convoca jogos semânticos diversos, desorientando os sentidos do observador e transformando peças de uso doméstico em objetos estéticos e expressivos.358

Conceição Abreu (1961), uma autora que se interroga sobre novas representações, novas narrativas, num atravessamento do gesto e da linha, seja física, seja representada, ou mental, lançando, tecendo, repetindo, movendo, desenhando e construindo. Desenhar ou tecer serão, porventura, atividades mais próximas entre si do que à primeira vista possam parecer.

Isabel Quaresma (1962) tendo optado pelo têxtil experimental, procura obter uma superfície mais resistente do que o tecido, mas tão maleável quanto ele, dobrando e cortando, unindo e cosendo, criando assim peças com um ilusionismo mágico estranho, o que é reforçado pela sua formação de designer de moda.

Gabriela Albergaria (1965)359

estudou na Faculdade de Belas-Artesdo Porto, vive entre Berlim, Lisboa e Nova Iorque e consideramos que é uma das mais originais autoras que trabalha indiretamente a textilidade, na sua essência natural, ou seja, partindo da árvore como rizoma formal complexo.

Tal como na arboricultura, a autora desenvolve espécies de berçários com enxertias

357 https://www.alvesdias.blogspot.pt/ 358 https://www.rosagodinho.wix.com/pt 359

Como refere José Marmeleira num artigo do Jornal Público de 14 de maio de 2010, o percurso académico de Gabriela Albergaria foi feito no Porto, mas nos ―anos 90 veio para Lisboa, tendo aí desenvolvido a primeira fase da sua carreira. Expôs gravura na Galeria Monumental, trabalhou em ilustração e ensinou na AR.CO - Centro de Arte e Comunicação Visual, antes de conseguir em 2000 uma bolsa enquanto artista residente no programa internacional da Kunstlerhaus Bethanien, em Berlim. Desde então, vive na capital alemã e expõe com mais frequência no estrangeiro do que em Portugal.‖ https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/os-paraisos-artificiais-de-gabriela-albergaria-256707

https://www.gabrielaalbergaria.com/ https://www.makingarthappen.com/2014/12/17/gabriela-albergaria-ser-do-ritmo-anual/ (consultados

132 diversas (2008). Trabalha com ciprestes, cerejeiras, oliveiras, loureiros... Frequentemente trabalha as espécies descobertas num jardim ou num campo envolvente do local da ação artística. Convoca escalas reais em ambientes inopinados, como grandes esqueletos arborícolas colocados dentro de um edifício.

Fig. 71 Gabriela Albergaria, Couche Sourde II, 2010-2014. Placas de terra, troncos e folhas, 120 x 90 x 610 cm, Residency Unlimited (RU), Nova Iorque, 2015360. Time Scales, 2014. Terracota, fibras têxteis361. Time Scales-Clay Earth Pigment, 2014. Tapeçaria de lã em nó manufaturado português, Tapeçarias Ferreira de Sá, 150 x 75 cm (cada)362.

Embora sejam simplesmente árvores, colocam perspetivas altamente simbólicas, angústias estruturais sobre as origens e o destino. Em Gabriela Albergaria não existem vestígios de paisagem ou da harmonia da natureza, existe apenas o objeto prostrado, no espaço, mais ou menos trabalhado, com as suas tragédias humanas e têxteis (fig. 71).

Expõe com muita frequência em diversos locais do mundo e é uma autora cuja obra está pouco estudada, principalmente pela sua complexidade, não se integrando facilmente nos enquadramentos instituídos.

Ana Maria de Sousa (1969) dedica-se à investigação da arte têxtil portuguesa, paralelamente a um trabalho direcionado para o traje enquanto cenografia e expressão plástica.

Leonor Antunes (1972), formada em Escultura pela Faculdade de Belas-Artesdo Porto, é uma autora que desempenha uma postura conceptualista e instalativa, tratando criativamente os materiais de forma a criar perturbações percetivas.

Rute Rosas (1972) é escultora formada pela Faculdade de Belas-Artesdo Porto, aí docente doutorada em Arte e Design. No seu trabalho criativo consideramos relevantes algumas incursões pela arte têxtil contemporânea através de estruturas em materiais não ortodoxos, frágeis e instáveis, frequentemente ligados à instalação e à performance (fig. 72).363

360 Imagens recolhidas em: https://www.residencyunlimited.org/residencies/gabriela-albergaria/ (consultados em abril de 2015).

361 Fotografia de: Bruno Lopes, © Gabriela Albergaria e Vera Cortês Art Agency. Por termos descrito grande parte do trabalho de Gabriela

Albergaria no que se refere ao tratamento da Árvore, apresentamos apenas imagens do que na sua obra acaba por ser exceção, podendo a maior parte da sua produção ser remetida para a arte têxtil.

362 Fotografia de: Bruno Lopes, © Gabriela Albergaria e Vera Cortês Art Agency.

363 Rute Rosas, Pele de Papel, 2011. Dimensões variáveis, ímanes, fitas de seda, instalação in situ, Biblioteca Fundo Antigo da Reitoria da

Universidade do Porto. A autora faz uma anotação curiosa sobre esta obra, que é ―um trabalho mais efémero no espaço que no tempo‖, realizado com o excedente de folhas de papel da sua tese. Assinalamos a obra premiada em 2005 na Bienal de Vila Nova de Cerveira, Da

Terra ao Céu, 2004. Instalação, impressão sobre tecido, dimensões variáveis, 6 panos. https://www.ruterosas.com/pt/works/pele-de-papel/ https://www.ruterosas.com/pt/works/da-terra-ao-ceu/ (consultados em abril de 2015).

133

Fig. 72 Rute Rosas, Pele de Papel, (pormenor), 2011. Folhas de papel A4, fitas de seda, dimensões variáveis, instalação in situ,

Biblioteca do Fundo Antigo, Reitoria da Universidade do Porto. Instalação364.

Fig. 73 Sónia Aniceto, Jeux de Nuit, (pormenor), 2011. Técnicas mistas365.

Fig. 74 Mariana Sales, Corpo Como Tear, (pormenor), 2012. Fotografia366.

Tiago Pereira (1972) tem formação audiovisual, pela Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, e apresentou na Contextile de 2014 um importante trabalho fílmico que se aproxima subtilmente da obra criativa de autor, do documentário objetivo, informativo e aprofundador, do documento antropológico, incorpóreo e ontológico, servindo esteticamente como obra de intervenção espacial e historicamente como documento de arquivo importantíssimo.367

Hélia Aluai (1973)368

cujo medium também pode ser uma máquina na sua obra têxtil, já não de dactilografar, mas de ―coser-desenhar‖, para com ela desenhar narrativas através de pespontos e linhas, fios que caem ou atravessam as imagens criadas, tal como o tempo e o acaso corroem as formas.

Ana Maria Antunes (1973), com algum ―despaisamento‖ característico de quem vem de fora − a autora chegou da Austrália onde se formou em artes e design − observa o que a rodeia e o que pereceu, tratando dessas memórias culturais, recortando sinais de vida das antigas indústrias têxteis ou da atividade vitivinícola do vale do Ave, abordando a complexidade da obra pelas vertentes tradicionais do têxtil, retalhos agora transformados em colagens que aludem a memórias e sensações.

Ricardo Matos (1973), permanecendo a viver e a trabalhar em Londres depois de também aí se ter especializado, desenvolve um trabalho de impressão a jato de tinta sobre tecidos, o que cria insólitas perceções de volumetrias.

Rute Mota (1975) traz para a paisagem os artefactos dos lavores que aprisionavam a

364 Imagem recolhida em: https://www.ruterosas.com/pt/works/pele-de-papel/ (consultado em abril de 2015).

365 Imagem recolhida em: https://www.sonia-aniceto.net/sonia-aniceto/jeux_de_nuit.html#1 (consultado em abril de 2015). 366 Imagem recolhida em: http://www.contextile.pt/2014/wp-content/uploads/2014/09/Untitled-39.jpg (consultado em abril de 2015). 367

https://www.vimeo.com/tiagopereira

134 mulher ao interior da casa, desafiando as ―experiênciações‖ sensoriais próximas da colagem de tempos e de mentalidades distintas.

Patrícia Sobreiro Marques (1975) é uma autora com um discurso próximo da pintura e do desenho, com todas as técnicas inerentes, e pensa o têxtil através do conceito, mapeando territórios próximos da construção de uma roupa que subliminarmente cria narrativas em volta da ideia do corpo feminino.

Cláudia Melo (1975), com um pensamento conceptualista sobre a matéria têxtil, híbrido e potenciador.

Isabel Guimarães (1976), na compreensão da tecedura têxtil para além da trama e da urdidura, um universo complexo, por vezes fisicamente minimal, repleto de entrecruzamentos da humanidade com o sentir, o fazer e o existir.

Sónia Aniceto (1976) é uma autora que vive e trabalha na Bélgica, expondo predominantemente fora de Portugal. No seu trabalho faz a união simbiótica entre o pintado, a colagem têxtil e a linha caída ou bordada (fig. 73). Com um trabalho figurativo, ensaia pontes entre o quotidiano, o esboroar das memórias e o fascínio das narrações. Trabalhou entre 2000 e 2006 na cenografia de La Monnaie, na Royal Opera House de Bruxelas. Leciona numa escola de arte em Bruxelas desde 2006 e realiza ocasionalmente workshops de arte em interação com a organização internacional MUS-E.369

Ana Tecedeiro (1979) caracteriza as suas obras pelo entrecruzamento do valor semântico das ideias conceptualizantes com os próprios materiais, aliando a criatividade técnica com a natureza da obra têxtil, o que resulta em peças ativamente criativas, desinibidas, por vezes provocatórias ou lúdicas, frágeis e comunicativas, mas fundamentalmente intimistas.

Ana Gonçalves de Sousa (1980) desenvolve um curioso trabalho têxtil imbuído de simetrias metalinguísticas, tanto pelas suas peças se apresentarem formalmente como tal, em manchas coloridas semelhantes, mediante um eixo invisível, como se fossem dois hemisférios cerebrais, mas ainda porque trabalha essas formas em escalas micro, nas dimensões, materiais e processos, como em escalas macro, adaptando outros espaços, matérias e procedimentos.

Namora Caeiro (1980), autor que considera que ―a arte está doente, por isso vomita‖370, apresentando propostas semelhantes a muitos outros autores no que se refere à conceção

369 MUS-E Bélgica é uma organização bilingue de artes, membro da Fundação Internacional Yehudi Menuhin, fundada em 2000. Fornece

uma plataforma profissional para artistas de todas as disciplinas que reflitam a sua prática artística em projetos no setor da educação não- formal e da educação continuada na Flandres, em Bruxelas e na Valónia. https://www.mus-e.be/fr/page/mission https://www.mus-

e.be/fr/page/mission#sthash.c4aoIcWi.dpuf (consultado em maio de 2015). 370

Contextile, catálogo, Guimarães, Ideias Emergentes, 2012. Ver também: https://www.namoracaeiro.wix.com/portfolio e

135 pictórica do têxtil e ao seu manuseamento técnico, desenhando figuras expressionistas com agulha e linhas, como se de grafite ou tinta da china se tratasse, tem como característica o mimetismo da obra desenhada ou pintada em obra têxtil, onde é possível perceber a diferença visual táctil entre uma e outra.

Mariana Sales (1990), pela sua jovem idade, ainda com uma produção embrionária, mas intuitiva, apresentou em 2014, na 2.ª Bienal Internacional de Arte Têxtil de Guimarães, uma obra de arte têxtil de um Corpo Como Tear, em registo fotográfico preto e branco: literalmente, um corpo executa uma tecedura, passando os fios da urdidura com as mãos por entre uma trama envolta nas pernas e esticada pelos pés (fig. 74). Nesta proposta saboreia-se a instância mitológica no feminino, num olhar ingénuo de um trabalho distraidamente ontológico, grandioso e sublime. É formada em Artes Plásticas, ramo de Escultura, pela Faculdade de Belas-Artesda Universidade do Porto. Frequentou desenho, fundição e escultura na Akademia Sztuk Pieknych, em Gdansk, enquanto bolseira do programa Erasmus.371

A partir dos anos setenta, a difusão de trabalhos de autores em emergência vem revolucionar e impulsionar criativamente de forma definitiva as perspetivas estéticas da produção da arte têxtil nacional, sobretudo a partir do início da década, com a divulgação das instalações de Ana Vieira que propõem outras linguagens formais, próprias, informadas e inovadoras a nível internacional (figs. 213-216, p.p. 267-270, e 218 e 219, p. 273).

Por vezes é complexa e controversa a distinção entre a obra de arte têxtil atual e os objetos vindos da atividade criativa do têxtil artesanal urbano, que reflete uma já remota memória do movimento Arts and Crafts, ou do têxtil doméstico da esfera do feminino, muito próximos dos movimentos de grupos sociais que procuram hoje novas formas de mentalidade e de atitudes sociais mais sustentáveis face a uma globalização consumista. Neste contexto, formaram-se autores cuja produção se desenvolve trabalhando e questionando precisamente esta zona charneira, criando obras de arte têxtil cuja atmosfera confunde propositadamente o espectador, apelando a estratégias estéticas em que eventualmente se afrouxam as grandes dinâmicas tecnológicas da arte têxtil para ceder território à comunicação semântica das formas, das texturas e dos materiais têxteis alargados a todo o seu léxico, do doméstico ao industrial, entrando frequentemente em zonas de ironia e de provocação, como encontramos hoje em muitas das obras realizadas por Joana Vasconcelos (1971) ou por Pedro Valdez

136 Cardoso (1974)372, ajudados pela criação de argumentos ligados à Pop Art ou à Arte Povera, entre outras correntes.

Neste momento em Portugal existem inúmeros autores a trabalhar o têxtil com propostas inovadoras, muito criativas e consequentes, como os já enunciados anteriormente, existindo um espaço expositivo concorrencial e dinâmico, muito efervescente, onde todos podem ter lugar. Mas alguns conseguem adquirir uma capacidade de produção e exposição pública que faz com que haja necessidade de destacar a sua obra.

Um destes autores, hoje incontornável, é Joana Vasconcelos, nascida em Paris em 1971, com cerca de vinte e cinco anos de carreira produtiva intensa, adquiriu progressivamente uma visibilidade internacional que a levou a representar Portugal na 55.ª Bienal de Veneza, fazendo-o de uma forma extremamente inteligente e coerente, o que proporcionou convites para intervenções importantes, como a que ocorreu no Palácio de Versalhes. Se Portugal não tem pavilhão próprio para exibir as suas representações nas bienais internacionais de Veneza, porque não criá-lo, autónomo, com uma visibilidade completamente ampla e inclusa, capaz de unir um território da ponta atlântica da Europa, ainda enigmático para muitos, a uma cidade adriática inundada? O Trafaria, cacilheiro, com a sua forma arredondada, levou o porão enchido por um ambiente interior ambivalente − profundo, denso, nebuloso e asfixiante − originado por um estranho tratamento têxtil de toque suave, festivo, deslumbrante, atlântico (figs. 133, p. 199, e 134, p. 200). No convés, o que a diplomacia estereotipada convoca repetidamente, azulejaria, bar de cortiça, vinho do Porto e o fado, um posto de turismo móvel como o dos Restauradores, mas que não retirou o esplendor à criação da obra, e, pela primeira vez, a arte portuguesa, esteve representada na Bienal de Veneza de forma visível, coerente e

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