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O NECESSÁRIO DESDOBRAMENTO DE EN NUMA CRD

Logo que existir para, para todos, uma margem de liberdade real para além da produção da vida, o marxismo desaparecerá; seu lugar será ocupado por uma filosofia da liberdade. Mas estamos desprovidos de qualquer meio, de qualquer instrumento intelectual ou de qualquer experiência concreta que nos permita conceber essa liberdade ou essa filosofia.

Sartre (CRD)

O objetivo mais amplo dessa pesquisa é mostrar que não há ruptura no conjunto da obra de Sartre, em especial quando da passagem de O Ser e o Nada à Crítica da Razão Dialética; melhor, mostrar a íntima relação que une essas duas obras e, consequentemente, os dois períodos, sendo o segundo a devida resposta aos problemas que ficaram pendentes no primeiro. Para isso, a primeira parte dessa tese explorou o nascimento de conceitos (ampliação da situação, engajamento, legitimidade, reciprocidade e terror) presentes nos demais textos publicados nos dezessete anos que separam a ontologia da Crítica. Foi possível mostrar que essa passagem é, na verdade, um crescente que comporta muitos pontos intermediários, entre os quais o mais importante é Saint Genet. Para defender essa tese, fundamentando-a, é preciso ainda mostrar que o desdobramento encontrado como respeito à literatura, à dramaturgia e aos textos menores também está presente nas obras técnicas; de outro modo, seria preciso admitir a ambivalência entre as posturas de continuidade e de ruptura no conjunto dos escritos de Sartre.348 Seria ingenuidade afirmar que nada muda; mas é também inegável que o ser-para-outro, da maneira pela qual ele é abandonado em O Ser e o Nada, e a situação na qual os coletivos são retomados (início da CRD), guardam, no mínimo, uma forte suspeita: o que muda entre o ser-para-outro e a estrutura serial?

Ao buscar resolver um problema filosófico que o preocupa Sartre parte sempre de uma análise crítica e, depois, promove uma teoria propositiva; é assim

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É preciso dizer que, além de não haver consenso entre os comentadores de Sartre sobre essa questão, o filósofo mesmo a contradiz em alguns momentos. Por exemplo, em As Palavras (SARTRE, 1964, pp 182-183) Sartre reconhece a impotência do edifício que construiu; e em Sartre – 1905-1980, Cohen-Solal cita o depoimento de Menahen Brinker que, dentre outras coisas, afirma que Sartre lhe disse que “a Crítica é um ponto de partida completamente novo” (COHEN-SOLAL, 1986, p. 528); porém, Sartre mesmo, em A Conferência de Araraquara, contraria seu depoimento ao afirmar que “Se o senhor pensa (...) que há uma diferença entre O Ser e o Nada e a Crítica da Razão Dialética é por causa da maneira como os problemas são formulados mas não por causa da própria direção; a direção continua a mesma” (SARTRE, 1987, pp. 91-92). Essa questão, devido à sua importância, será retomada na conclusão desse trabalho.

que é possível entender a passagem de Husserl a Heidegger, ou, da psicologia fenomenológica à ontologia. Por isso o filósofo será acompanhado nos dois momentos, tanto com relação à terceira parte de O Ser e o Nada (ser-para-outro) quanto ao Livro I de A Crítica da Razão Dialética (em especial, Os coletivos). Se a interpretação dos demais textos de Sartre estiver correta, a descrição da sociedade presente na Crítica se mostrará o corolário da descrição feita do ser-para-outro, em O Ser e o Nada; desse modo, ainda que sejam necessárias mudanças de uma parte à outra, principalmente com respeito à função reservada à liberdade, será possível mostrar que há mais pontos de confluência do que de divergência entre o para-si e os coletivos.

Com esse objetivo foram feitas as anotações que se seguem, compostas de duas partes: a primeira apresenta a maneira pela qual Sartre pretende superar o solipsismo em sua ontologia (o ser-para-outro); a segunda se inicia com a descrição da serialidade e vai até o grupo constituído (a gênese do grupo). Estabelecido esse esquema, será possível promover a aproximação entre essas partes, ou seja, responder à pergunta sobre o que muda na situação efetiva do homem, tanto na descrição de sua constituição ontológica quanto na descrição de sua existência social. Os resultados preliminares permitem antecipar que os problemas referentes à relação com o outro são resolvidos pela teoria dos grupos; além disso, indicam que a Crítica nada mais é que o desdobramento, evidentemente sobre outro solo (marxismo), de O Ser e o Nada, ou, o lugar onde Sartre retoma os problemas de sua obra anterior e apresenta a solução cabível.

Assim, Sartre, após mostrar em O Ser e o Nada que o ser é em-si e para-si (descrição reflexiva), sendo esse segundo o modo de ser do homem, afirma que ser- para-si não é tudo: “podemos encontrar modos de consciência que parecem indicar, mesmo conservando-se estritamente para-si, um tipo de estrutura ontológica

radicalmente diverso”.349 O filósofo analisou todas as Erlebnisses possíveis e,

invariavelmente, todas mostraram sua origem e seu fim na relação entre o para-si e o ser (consciência do objeto, de sede, de ódio, de amor, etc.); e essa relação é imediata. Toda consciência é para-si, é consciência de seu ser em relação direta com o transcendente; porém, a ontogênese privada se mantém, precisamente, até a análise do ser-para-outro.

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Mas o que é essa estrutura ontológica diversa que se apresenta, também imediatamente, à consciência? Trata-se, sem dúvida, de uma estrutura reflexiva que, dessa feita, adquire um grau maior de complexidade: uma reflexão que passa pelo

outro, e esse faz com que o para-si apareça a si mesmo como objeto;“pela aparição

mesma do outro, estou em condições de formular sobre mim um juízo igual ao juízo sobre um objeto, pois é como objeto que apareço ao outro”.350 Note-se que a relação objetivante, característica da postura do para-si ante o em-si, é agora tomada por ele na sua relação consigo mesmo; a mediação do outro permite o para-si objetivar-se e, desse modo, produzir um juízo pelo qual ele, objetivado pela mediação do outro, é causa de vergonha para si mesmo, ou, nessa condição, o para-si identifica-se com seu ato.

Tem-se, assim, a descoberta do outro, e essa descoberta insere a mediação na relação outrora imediata do para-si consigo mesmo e com o transcendente; é pelo outro que o para-si pode se envergonhar, e a vergonha não é dirigida para a imagem que o outro, porventura, faz; ao contrário, a vergonha é vergonha de si, ou seja, o olhar do outro revela uma porção de ser do para-si (ser causa de vergonha) que num panorama de ontogênese privada seria impossível. A vergonha é vergonha de si diante do outro, é um tipo de relação que passa pelo outro como mediador indispensável na relação do para-si consigo; mais ainda, tal mediação faz com que o para-si adquira um novo tipo de ser que, em seu ser, ele deverá manter e será por ele absolutamente responsável. Numa palavra, a única maneira de conhecer-se plenamente é passando pelo outro, ou, o ser-para-si remete ao ser-para-outro.

A existência do outro promove uma reviravolta no sistema dual da ontologia de Sartre. Nem por isso tal relação superará o caráter dualista (para-si e em-si) da descrição do fenômeno de ser, mas, devido a isso, ela se dará passando por um terceiro. Sartre recusa que o outro seja considerado um conceito regulador, postura, segundo ele, adotada pelo realismo; o conceito de outro não é simplesmente instrumental, mas “este outro, cuja relação comigo não podemos captar e que jamais

é dado, nós o constituímos aos poucos como objeto concreto”.351 Invertendo a

relação, não é porque há o outro que a experiência individual adquire um sentido

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Sartre, na porção analítica de seu método, avalia a vergonha, uma estrutura intencional acessível à reflexão que nada mais é que uma relação íntima de mim comigo mesmo; porém, a vergonha não é uma vivência que pode estar circunscrita unicamente à reflexão, haja vista que a estrutura da vergonha é ser vergonha diante de alguém. Assim, a vergonha exige um mediador entre o para-si e ele mesmo, ou seja, a vergonha remete imediatamente ao outro. SARTRE, 1943, pp. 275-276.

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específico (vergonha, por exemplo), mas é a partir da experiência individual (vergonha) que o outro se constitui como outro. Embora seja inegável a diferença que a existência do outro promove na experiência individual, é justamente nessa experiência que sua interferência faz sentido.

Há, pois, uma evidente mudança qualitativa entre a relação que Sartre mostrou ser interna entre o para-si e o em-si, e a relação que envolve o outro; em suas palavras: “É porque, com efeito, o outro não é somente aquele que vejo, mas

aquele que me vê”.352 Antes do ser-para-outro, a relação descrita em O Ser e o

Nada partia sempre do para-si que, pela intencionalidade, envolvia o em-si e fazia com que esse, ainda que fechado e completamente idêntico a si, viesse ao mundo (fenômeno); a segunda relação, porém, envolve dois círculos de significação, e em cada um deles o outro aparece como um limite e, ao mesmo tempo, como constituído. Há, definitivamente, a passagem ao campo da contradição, no qual ser para-si é negar (ou objetivar) o outro ao mesmo tempo em que é por ele negado; a via relacional passa a ser de mão dupla, pois se o para-si olha o outro, é também por ele olhado.

Existem ao menos duas soluções para o problema: declarar a solidão ontológica e assumir que, para além da verdade imediata do cogito, nada pode ser afirmado (o que seria circunscrever o para-si na sua esfera de existência individual), ou aceitar que o outro existe a priori, independente do para-si que eu sou; para Sartre, no entanto, ambas as soluções, tanto a realista quanto a idealista, são insuficientes. Isso porque o realismo ontológico (há o outro) exige uma espécie de idealismo prático, na medida em que esse outro arrancaria sua existência do reconhecimento recebido; o idealismo, por sua vez, encerraria cada para-si em si mesmo, e não haveria nenhuma maneira de sair de si e mostrar a verdade da existência do outro. Haveria ainda, conforme defendem algumas interpretações da obra de Sartre, a possibilidade de admitir que sua ontologia é incapaz de dar conta dos grupos e, desse modo, não é possível falar sobre sociedade ou história; mas, uma vez que há a Crítica, e nossa tese é justamente mostrar que ela não significa um reinício, é preciso dar conta do modo pelo qual o filósofo, a partir do ser-para- outro, pode falar em sociedade constituída.

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Segundo Sartre, o problema da relação com o outro se coloca porque o idealismo e o realismo partem de uma mesma pressuposição: o outro é o que não sou eu. Ora, a estrutura constituinte do ser-outro é negativa, e tanto o idealismo quanto o realismo entendem essa negação como negação constituinte e, portanto, negação de exterioridade; mais ainda, “o sujeito cognoscente não pode limitar outro sujeito nem se fazer limitar por ele. Está isolado por sua plenitude positiva e, por conseguinte, entre si mesmo e o outro sistema igualmente isolado mantém-se uma separação espacial como tipo mesmo de exterioridade”.353 Assim sendo, o idealista e o realista partem do pressuposto de que o si e o outro estão separados por uma porção de espaço, ideal ou real; desse modo, está estabelecida a relação de exterioridade, uma relação análoga àquela entre os objetos: um para-si está para outro assim como a mesa está para o tinteiro.

Decorre, então, que essa relação apenas poderá ser intermediada por um terceiro que, concomitantemente, participe internamente dos dois termos (nesse caso, de ambos os para-sis) da equação; mais ainda, o ser intermediário deve ser cada um dos termos e não os ser, para que possa guardar a imparcialidade de testemunha. “Assim, a pressuposição espacializadora não nos deixa qualquer escolha: é preciso recorrer a Deus ou cair em um probabilismo que deixa a porta

aberta ao solipsismo”.354 Mas nem mesmo a noção de Deus pode dar cabo do

problema; A Liberdade Cartesiana mostra que a fusão com o ser divino faz com que a criação seja continuada, tirando qualquer garantia de individualidade; noutras palavras, se Deus cria a cada instante, o instantaneísmo não permitiria que o indivíduo continuasse a ser quem ele é, porque no instante seguinte ele poderia passar a ser outro sem se dar conta disso. Se, de outra feita, a criação for considerada apenas um ato, volta-se ao início do problema, uma vez que desse modo Deus não participaria internamente do para-si, alcançando, no máximo, uma relação de exterioridade e sendo, desse modo, incapaz de promover a relação.355

Segundo Sartre, excetuando-se Deus, sobrou à filosofia dos séculos XIX e XX superar a noção de substância, afinal, se cada indivíduo for considerado uma substância separada, está declarada a impossibilidade absoluta de sua união. Assim, chega-se à idéia husserliana de um sujeito transcendental que, mesmo 353 SARTRE, 1943, p. 286. 354 SARTRE, 1943, p. 287. 355 SARTRE, 1947, p. 307.

contornando a dificuldade substancial para referir-se a sujeitos distintos, não avança nada na demonstração da existência do outro. Brevemente, Sartre entende que afirmar a existência de um campo transcendental requer que o outro seja, também, um campo transcendental similar ao primeiro campo:

Por conseguinte, a única maneira de escapar ao solipsismo seria, ainda aqui, provar que minha consciência transcendental, em seu próprio ser, é afetada pela existência extramundana de outras consciências do mesmo tipo. Assim, por ter reduzido o ser a uma série de significações, o único nexo que Husserl pode estabelecer entre meu ser e o ser do outro é o do conhecimento; portanto, não escapou, mais do que Kant, do solipsismo.356

Hegel, ainda sob a ótica de Sartre, dá um passo importante para solucionar o problema: a dialética do senhor e do escravo permite encontrar um vínculo de negatividade interior entre os para-sis;357 “a intuição genial de Hegel é a de fazer-me dependente do outro em meu ser. Eu sou – diz ele – um ser para-si que só é para-si por meio do outro. Portanto, o outro me penetra em meu âmago. Não poderia

colocá-lo em dúvida sem duvidar de mim mesmo (...)”.358 A passagem de Husserl a

Hegel permite, além de encarnar de fato a contradição que a relação com o outro exige, mostrar que a negação que constitui o outro é interna, recíproca e direta. Assim, o ser-para-outro, ao invés de uma barreira que limitaria o para-si, passa a ser sua condição de existência.

Malgrado as vantagens do sistema hegeliano, Sartre encontra aí uma falha

fundamental: também para Hegel o problema do outro é formulado em termos de conhecimento. Vejamos: à questão – como o outro pode ser objeto para mim? – o idealismo responde que – se há em verdade um Eu para o qual o outro é objeto, é porque há um outro para quem o Eu é objeto. Assim, o para-si acaba por ser assimilado em seu ser, e sua existência medida pelo reconhecimento objetivante do outro; Sartre sabe que isso é perfeitamente aceitável no campo do idealismo absoluto, para o qual ser e conhecimento são idênticos; mas para onde tal verdade encaminha o problema?

Certamente, a assimilação do ser pelo conhecimento faz com que o particular seja dissipado no universal, e o indivíduo, tão caro a Sartre, não poderá ser mantido. Primeiramente, nosso filósofo se esforçou por mostrar que a relação do para-si

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SARTRE, 1943, p. 291.

357

HEGEL, 2005, Independência e dependência da consciência-de-si: dominação e escravidão, 178- 196, pp. 142-151.

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consigo não era uma relação de conhecimento; em seguida, ele procurou mostrar que não há nenhuma identidade na relação reflexo-refletidor; por fim, Sartre mostra que a ipseidade é fundamentalmente diferente do Ego. Nesse panorama, a consciência é “um ser concreto e sui generis, não uma relação abstrata e injustificável de identidade; é ipseidade e não sede de um Ego opaco e inútil; seu ser é suscetível de ser alcançado por uma reflexão transcendental, e há uma verdade da consciência que não depende do outro, pois o próprio ser da consciência, sendo independente do conhecimento, preexiste à sua verdade”.359

Contra Hegel permanece válida a crítica de Kierkegaard, qual seja, a necessidade de que o indivíduo sobressaia e resista à universalização; especificamente, isto significa que o indivíduo tenha salvaguardado seu ser concreto, ou, que o indivíduo seja razão da estrutura universal e não o contrário. Nesse sentido, Sartre formula duas ressalvas a Hegel, chamadas de dupla acusação de otimismo: primeira, otimismo epistemológico, ou seja, aparentemente a verdade de si (e, na contrapartida, do outro) pode ser assimilável; “Assim, o otimismo de Hegel termina em fracasso: entre o objeto-outro e o eu-sujeito não há qualquer medida comum, tanto quanto não o há entre a consciência (de) si e a consciência do outro”.360 A pertença entre as consciências, que poderiam se reconhecer no ser outro objetivado, promove uma separação ontológica entre elas e impede qualquer conhecimento universal do ser consciência.

A segunda acusação é a de otimismo ontológico: colocar-se do ponto de vista do Todo e, desse, julgar a relação entre as consciências. Assim, ao considerar o problema, Hegel não se circunscreve a nenhuma consciência individual, mas, uma vez que a verdade de tudo o que é verdadeiro já está aí disponível, ele pode, fora das consciências, considerá-las de um ponto de vista absoluto. Dessa maneira, “a pluralidade pode e deve ser transcendida rumo à totalidade. Mas se Hegel pode afirmar a realidade desse transcender, é porque já o havia colocado desde o começo”;361 Sartre radicaliza a questão, e conclui que Hegel é o todo e, por essa razão, resolve tão facilmente o problema da existência do outro.

A saída encontrada em Hegel não pode, portanto, ser sustentada devido a dois problemas; primeiro, a consciência não se reduz ao conhecimento, e, segundo, 359 SARTRE, 1943, p. 295. 360 SARTRE, 1943, p. 299. 361 SARTRE, 1943, p. 299.

não é possível transcendê-la e, de um ponto de vista absoluto, explicar a relação que há entre todas as consciências. A questão reenvia, imediatamente, ao cogito: “devo estabelecer-me em meu ser e colocar o problema do outro a partir de meu ser”.362 Assim como antes, o único ponto de partida seguro para Sartre é a reflexão, e é dela que a pergunta pelo outro deve ser colocada; a pretensão de romper a circunscrição da consciência (de) si, e se estabelecer na posição do absoluto para, daí, dar conta do problema, aparece a ele como uma completa ignorância sobre a dimensão particular que é a consciência (de) si.

Neste ponto ocorre a seguinte pergunta: a que vem o progresso hegeliano, se o que Sartre faz é justamente mostrar que Hegel impede, a priori, conhecer a consciência ou comprovar a existência de outras consciências, a não ser que seja tomado o ponto de vista do todo? Se nenhum otimismo, lógico ou epistemológico, pode fazer cessar o escândalo da pluralidade de consciências, e se o máximo que a ontologia pode fazer é descrever esse escândalo, sendo impotente para superá-lo? Parece que a resposta é que a descrição do suposto escândalo pode, ao menos, superar o solipsismo no qual a consciência, uma vez que se parta do cogito, está encerrada. Sartre, a partir do ser-consciência, pôde extrair tudo: dois tipos de ser, sua relação, o mundo privado, os objetos, etc. Ora, a existência do outro deve também ser, para-si, evidente; senão, seria forçoso afirmar que a ontologia fenomenológica descreveu o mundo, a menos que assumisse a crítica de que descreveu apenas um mundo particular.

Curiosamente, Sartre retira das duas alternativas analisadas o horizonte em que uma descrição (ou solução) do problema do outro seria aceitável; é verdade que o faz pela via negativa: não é uma boa opção nem medir o ser pelo conhecimento (Kant/Husserl), nem identificá-los (Hegel), mas “se for possível refutar o solipsismo, minha relação com o outro é, antes de tudo e fundamentalmente, uma relação de

ser a ser, e não de conhecimento a conhecimento”.363 Noutras palavras, o caminho

percorrido por Kant e Husserl, de um lado, e Hegel de outro, ensina que a existência do outro apenas é plausível se considerada numa relação de ser, e que para demonstrar tal tese o único ponto de partida é a realidade humana individual; e é o que, segundo Sartre, faz Heidegger.

362

SARTRE, 1943, p. 300.

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Heidegger compreendeu seus antecessores, e sua obra revela que a relação entre as realidades humanas é uma relação de ser, sendo que tal relação faz com que uma realidade dependa das outras em seu ser; desse modo, “a realidade

humana é ser o seu ser com os outros”.364 Assim, não há primeiro uma consciência

e, depois, o encontro com o outro, mas a estrutura de relação com o outro se encontra justamente na essência de ser-para-si; isso supera o ponto de vista totalizante de Hegel, haja vista que, para Sartre, Heidegger parte de seu ser e encontra, nele, uma estrutura relativa ao outro. É certo que isso apenas é possível porque o filósofo não tem como ponto de partida o cogito, mas mostra, na estrutura ontológica do Dasein, essa coexistência.

Para Sartre, nas filosofias de Hegel e de Husserl a relação com o outro se embasa no ser-para, ou seja, o outro é para mim assim como eu sou para ele; trata- se de uma relação de conhecimento, portanto. Heidegger subverte essa dicotomia com a noção de ser-com, pela qual o outro tem sua existência conjunta ao eu;365 a

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