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Por uma sociologia do olhar

1.2 Carlos Miranda e a ofensiva médica.

O caso do “preto Manuel” é, também, um dos animadores da análise que Carlos Alberto Cunha Miranda (2001) começou a desenvolver sobre a experiência pernambucana da institucionalização da medicina no oitocentos. Diferente de Gilberto Freyre, porém, Carlos Miranda não está interessado em tornar evidente a força demonstrada pelo curandeirismo, mas em constituir o “preto Manoel” como um sintoma da mudança de tratamento que médicos e atores estatais, num prazo muito curto de tempo, passaram dispensar às práticas estranhas a uma medicina alopática (MIRANDA, 2001, p.97).

Em linhas gerais, o artigo do professor Miranda se apóia nas pesquisas teóricas e empíricas de Michel Foucault e Georges Rosen, autores preocupados em descrever as condições de possibilidade da emergência da medicina social na Europa. Nesses autores, o professor encontrou uma gramática conceitual (polícia médica, medicina urbana,

medicina da força de trabalho) que se confunde com as etapas históricas que permitiram o

desenvolvimento da medicina social. A urdidura do artigo evidencia uma convergência entre medicina social (gestão médica sobre a sociedade), polícia médica (gestão da vida pelo poder político), temáticas desenvolvidas por Rosen no final de 1970, e a tese sobre o

biopoder, espécie de gerência da vida pelo poder, como anunciada por Foucault em

meados daquela mesma década.

O aspecto nevrálgico dessa imbricação pode ser resumido, evidentemente, pela noção de controle. Como afirma Miranda, “o médico deveria controlar todos os pólos da vida, inclusive os mais íntimos, para o bem estar da comunidade” (ibidem, 2001, p. 98), numa referência específica a Johann Peter Frank, um dos mais notáveis teóricos da polícia médica do século XIX. Uma afirmação que demonstra o desejo de gestão capilar assumida

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pelo biopoder. Esse desejo era animado pelo pressuposto de que o “bem estar da comunidade” deve ser entendido, em última análise, como o bem estar do Estado. Gravidez, infância, alimentação, moradia, vestuário, trabalho e lazer se configuraram, a partir da polícia médica, em assunto de Estado. O próprio interesse por dados estatísticos denunciava que a polícia médica era, efetivamente, um dos ramos da administração do Estado que concorria à “regulação social” (ROSEN, 1979, p.151).

A compreensão do tipo de controle e do alcance que a medicina social e a medicina de Estado procuraram efetivar fica assegurada, no artigo de Carlos Miranda, pelo conceito de salubridade pública, noção que assinala não somente um controle sobre a população através de uma atuação direta e direcionada ao corpo dos indivíduos, mas a de igual natureza na saúde da coletividade (MIRANDA, 2001, p.98). Um corpo coletivo, como assentiria Gabriel Tarde (2007), é formado por indivíduos, mas estes estão longe de esgotar a lista dos dinamizadores sociais. Nesta perspectiva, a insalubridade pública aumentava a lista dos agentes que interferiam na saúde da população e que médicos e políticos procuraram exercer, sobre ela, um controle e uma gestão.

Era assim que os médicos, no final dos setecentos e durante os oitocentos, se dedicarão, na Europa, à análise dos acúmulos (matadouros, padarias, cemitérios, entre eles) para o controle da circulação das coisas e dos elementos (ar, água, com mais atenção) e para a organização das distribuições e das seqüências (praças públicas, mercados, transportes, etc.). Esses elementos mudaram as feições da medicina na Europa. A sugestão do professor Miranda, a partir das considerações de Rosen, é que o

acontecimento médico no Brasil, a partir do século XIX, deva ser analisado á luz da

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Esses elementos teóricos cobrem a primeira parte do artigo do professor Miranda. O empenho da segunda parte consiste em analisar as instituições médicas no Brasil do século dezenove, com atenção particular às que emergiram em Pernambuco. Os objetivos de seu exercício analítico lhe exigiram uma breve narrativa sobre o funcionamento institucional da medicina no Brasil, desde o período colonial, caracterizado por um atendimento precário em atenção médica oferecida pelas instituições assistenciais, como as Santas Casas de Misericórdia, e de uma fiscalização ineficiente das Câmaras Municipais. Para este autor, houve uma descontinuidade das práticas médico- institucionais, perceptível desde 1828, ano da criação da Sociedade de Medicina do Rio de

Janeiro (SMRJ), órgão de natureza propagandística e apologética, que também funcionou

como órgão consultivo do governo imperial. Para Miranda, a importância dessa instituição, para a nova trajetória médica, é evidenciada pelo fato da mesma ter elaborado, a pedido do Governo, o anteprojeto que deveria guiar a reforma do ensino médico no Brasil (MIRANDA, 2001, p.102).

Quando o artigo de Miranda se restringe às estratégias que os médicos se utilizaram para dilatar o seu raio de ação em Recife, ou seja, ao seu objeto central, a análise procura evidenciar a convergência entre determinados interesses governamentais e médicos. Assim é que o autor afirma que na década de 1820 já existia uma percepção, por parte dos administradores da província de Pernambuco, sobre a relação entre entraves econômicos e insalubridade6. Nessa direção, se a criação, em 1845, do Conselho

Salubridade Pública, significou uma vitória política para a corporação médica que

começava a se desenhar, essa emergência deve ser encarada, também, como parte de um

6 Essa percepção foi particularmente salientada a partir da gestão de Francisco do Rego Barros, Conde da

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esforço de modernização da Província ao lado daquele realizado pela Repartição de Obras

Públicas. O Conselho funcionou até 1853, tendo suas funções de consultoria do governo e

de fiscalização da cidade substituídas, naquele mesmo ano, pela Comissão de Higiene

Pública (ibidem, 2001, p.104-106).

A Sociedade de Medicina de Pernambuco (SMP), instalada em 1841, e os Annaes

da Medicina Pernambucana (AMP), seu periódico que passou a circular em Recife, no

ano seguinte, podem ser consideradas as instituições médicas que emergem de maneira autônoma, ainda que beneficiadas pelo contexto político que a análise cobre. Miranda pontua a formação européia da maioria dos membros da SMJ e a natureza científica — ciência social mais propriamente, como se verá — que a instituição buscava granjear para a medicina. Dos AMP, por seu turno, Carlos Miranda se ateve em elencar as temáticas recorrentes, quais sejam: salubridade publica, moléstias reinantes, procedimentos cirúrgicos e observações metrológicas, além do programa de prêmios para as melhores monografia sobre temas do domínio médico (ibidem, p.104-105).

O artigo analisa outros elementos, como a divergência entre os médicos, sobre as causa que disparavam uma epidemia, contenda que, de modo geral, dividia as opiniões entre a teoria do contágio e a dos miasmas. De qualquer modo, o resumo apresentado oferece os argumentos principais para o que Miranda quis sustentar. Isto é, que em 1829 a

ofensiva médica tem início, objetivando “restaurar o poder, perdido com o regulamento de

1828”, e que assinalou o desmantelamento da Fisicatura7.

Daí ao menos duas ordens de problemas. Do ponto de vista teórico, defendo, por razões que desenvolverei mais tarde, que as análises foucauldianas constituem a melhor

7 Instituição médica do período colonial. Muito emboranão reconhecesse oficialmente o curandeirismo, na

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opção teórica para a análise da massa documental que Miranda utiliza. No entanto, a teoria foucauldiana desestimula qualquer análise que caracterize a trama médica no Brasil Império como efeito da “influência” de idéias européias. É de se notar que, já no final da década de 1960, Foucault denunciava, de modo particular no domínio da história das

idéias, a pouca operacionalidade de conceitos como crise, tomada de consciência e influência (FOUCAULT, 2005a). Ademais, a análise histórica sobre a condição colonial

do Brasil no século XIX e a percepção dessa mesma nação como espaço Ocidental ou ocidentalizado pode indicar que os acontecimentos médicos protagonizados no Brasil, durante o século dezenove, são mais bem caracterizados se encarados como um

desdobramento. Em outras palavras, trata-se de não tomar a experiência brasileira como

uma espécie de decalque da medicina européia, mas sim o de ressaltar a configuração singular daquela experiência em seu contato com um dispositivo médico específico.

No âmbito conceitual, não concordo com a utilização tout court de alguns conceitos da gramática utilizada pelos autores, tal como é o caso das noções de medicina

de Estado e medicina do trabalho. A singularidade brasileira desautoriza, conforme

concebo, esse deslizamento inteiro. Por um lado, o escravismo do oitocentos operou a construção, aqui, de uma sociedade diferente das industriais para as quais o último termo medicina do trabalho fora forjado; por outro, medicina de Estado não parece ter sido um dos exercícios que se possa atribuir, ao menos com os dados empíricos disponíveis, à administração pública do Brasil oitocentista. Alguns conceitos precisam, portanto, sofrer uma redução do seu raio de alcance, ao passo que outros deverão ter seus limites dilatados. Por fim, no campo empírico, a documentação parece não favorecer a defesa vigorosa de uma ofensiva médica. A começar pelo caso do “pai Manuel”. De fato, ele

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pode bem demonstrar certa mudança nas relações entre autoridades (médicas e governamentais) e curandeiros que atuavam, certamente, com uma margem de liberdade bem maior nos tempos da Fisicatura. No entanto, o incidente me parece estar longe de indicar uma ofensiva. Considere-se que, muito embora a recusa do curandeiro em obedecer à determinação das autoridades que exigiam a suspensão de suas atividades, tenha lhe ocasionado a prisão, o episódio termina, como tinha sido pontuado por Gilberto Freyre, de modo mais favorável àquele terapeuta popular, do que para os médicos de formação alopática (FREYRE, 2003, p.640).

Por outro lado, quando as atividades de instituições médicas do Século Dezenove são examinadas mais detidamente, como fez Edmundo Campos Coelho (1999), em relação à SMRJ8, sua função ofensiva fica comprometida, mesmo quando se admite o seu papel policialesco. Da SMRJ, que contou com uma vida institucional curta, Edmundo Coelho expõe “um currículo de modestas realizações” (COELHO, 1999, p.121). E, mesmo seu feito “mais notável” é caracterizado, pelo autor, como uma ação tímida, reveladora de “uma razoável dose de insegurança” (Id, p.122).

A elaboração do anteprojeto para a reforma do ensino médico no império é valorizada, por Carlos Miranda, como mais um indicador da ofensiva médica (MIRANDA, 2001, p.102). Acontece que se as escolas de medicina da Bahia e da Corte foram tributárias da versão do anteprojeto que a MRJ apresentou, isso só pôde ocorrer após a aprovação de emendas impostas pela Comissão de Saúde Pública da Câmara dos

Deputados. Edmundo Coelho argumenta que a proposta da SMRJ era problemática, ao

menos em dois aspectos: exigia, por um lado, um consenso entre as escolas para que o

8 Criada em 1829, com a mudança de seu estatuto em 1835 passa a designar-se Academia Imperial de

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exercício da arte de curar fosse efetivo. Sem maiores explicações do que isso significasse, a SMRJ criou um entrave para a prática profissional, tanto mais não fossem as diferenças geográficas e de estilo entre as duas escolas, aspectos que, certamente, obstaculizavam a efetivação desse consenso. Por outro, garantia a liberdade de ensino das artes médicas e assegurava, na letra da lei, que não haveria oposição por parte das faculdades. A sugestão que Coelho oferece ao leitor é que a exigência de consenso entre as escolas para a expedição de diplomas e a garantia de liberdade de ensino da arte médica sejam analisadas em conjunto, pois, combinadas, se constituíram em pedra de tropeço para os médicos e para a própria SMRJ (COELHO, 1999, p.123-124).

Como também indicado, foi em Rosen que Miranda buscou a funcionalidade da

polícia médica. Compreensão necessária, já que, como ele indica em seu artigo, o termo é

recorrente nos registros do Conselho de Salubridade Pública e indicado “como instrumento eficiente no controle das epidemias e no combate aos terapeutas populares” (MIRANDA, 2001, p.105). Em muitos casos, porém, a menção à polícia médica da Província de Pernambuco servia para que o CSP pudesse, a partir de comparações com suas congêneres em países nos quais seu funcionamento era tomado por canônico, assinalar sua ineficácia. Ademais, era possível, como fazia um médico associado à

Sociedade de Medicina de Pernambuco, reconhecer sua inexistência9. Se houve alguma espécie de ofensiva médica, ela certamente não se concretizou apoiada na ação de uma polícia médica efetiva.

9 APEJE, Colleção dos Trabalhos do Conselho Geral de Salubridade Pública da Província de Pernambuco,

1845. Tanto a ineficiência como a ausência de uma polícia médica em Pernambuco serão exploradas no capítulo quatro desta tese.

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É claro que muitas das considerações médicas sobre a forma que sua intervenção junto à população deveria ser exercida foram expressas em tons notoriamente agressivos. Um exemplo disto pode ser verificado na opinião sustentada por um membro da SMRJ sobre a necessidade de que a “autoridade, como mais instruída, e mais capaz desta inteligência, faça o que entender que é útil e conveniente, sem se importar com o que diz ou pensa o povo erradamente, e sem lhe dar satisfação em matéria que não pode ser juiz [...]”. Contudo, ao menos no que concerne à experiência pernambucana, raras vezes uma intervenção dessa natureza logrou efetivar-se. Isso exige que, caso não seja possível se livrar inteiramente da noção de ofensiva, ao menos será preciso repensar seu alcance e os marcos cronológicos em que a mesma tenha se efetuado.