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CAROLINE MENEZES: É

No documento PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS DO MOVER-SE (páginas 45-57)

Diálogo do entre e o outro

CAROLINE MENEZES: É

interessante você encarar um projeto de deslocamento com um cerne escultórico. Os desenhos são gerados por uma urgência inventada, são respostas a dispositivos. Funcionam como registro também. Porém poderia ser visto como performance, pois é uma prática artística que conjuga o tempo e o espaço, e ainda carrega esta característica de “efemeridade”.

TP: Eu preciso performar para chegar a um

momento de esgotamento físico, para criar o desenho, mas são procedimentos, entende? Nas corridas no Rio Grande do Norte e depois no Uruguai, o objetivo era percorrer 30 km por dia. No RN, a cada parada, com uma bússola eu apontava o meu olhar para onde eu estava indo, para o meu ponto fi nal que era Natal. Se parasse onde eu parei, virasse a bússola e desse de cara com uma árvore, eu desenhava a árvore. Por mais que meu lado direito fosse lindo, a minha vista não poderia ir para lá. Minha visão se direcionava para o meu ponto de chegada através de um dispositivo de medição cartográfi ca que ditava a direção do meu olhar.

CM: Sua afi rmação de que a paisagem

e você são uma escultura amplia o território do que o projeto quer alcançar. Você se integra à paisagem, e revela-se o cerne escultórico: um todo em um só.

TP: Eu sou a Paisagem, a Paisagem

sou Eu. A representação gráfi ca gerada pelo meu batimento cardíaco e acionada por meu deslocamento é sobreposta à imagem da paisagem que a gerou, promovendo assim a sobreposição de horizontes. Há aí uma relação especular. Acredito que sejamos uma extensão de tudo. Estou

separado de você a não sei lá quantos mil quilômetros de distância, mas essa separação que existe é uma separação mais da ordem do nosso entendimento, que é limitado, do que aquilo que de fato acontece. Estamos conectados. Como as ondas do mar, todas as ondas são diferentes e cada uma tem sua individuação, mas elas fazem parte do mesmo sistema: do Oceano. Eu e aquela árvore. Acho que a conscientização escultórica do projeto de deslocamento vem de se perceber não só como parte da paisagem, mas realmente constituindo a paisagem, ela é a expansão de você, e você dela.

Uma dicotomia que produz equilíbrio. Existem projetos que eu considero sistemas dinâmicos que se movimentam e outros que são estáticos. Estes são aqueles em que existe anulação dos esforços, resultando em zero. Mas mesmo estes não estão parados, a gente é que os percebe assim.

CM: Como aqueles desenhos de

sistemas vetoriais, que a gente estuda

em física. Aquelas engrenagens com setas apontando?

TP: São vetores opostos de valores iguais que se anulam, mas a coisa está ali em movimento, acontecendo. Isso é que me interessa de

fato. Quero dar visualidade a esse dinamismo, o que é quase impossível, eu diria, não em algumas conjecturas, mas eu não sou um

astrofísico, nem metafísico, eu sou um artista! Eu estou neste lugar comum de materiais ordinários. Consigo perceber que aquilo que chama a minha atenção é o estado mutante que existe em tudo. Às vezes um trabalho é só um registro, um exemplo, um fractal de um sistema muito maior em que estamos inseridos e mergulhados desde que a gente veio ao mundo.

CM: Então você é parte de uma

engrenagem, certo?

TP: É isso mesmo: uma engrenagem.

Algo conectado com outro, que tem um pedaço que também está interligado e que no final vai criar uma situação. Conto com uma série de dispositivos de registros: mapa, minerais, fotos, desenhos, envelopes etc. O “CEP – Corpo, Espaço e Percurso” foi um projeto de deslocamento onde a aplicação da curva gerada pela proporção áurea sobre o território do Rio Grande do Norte apresentou o percurso que serviu de guia para o deslocamento empreendido. A cada parada diária, depois dos 30 km de deslocamento, sem perder o desgaste físico da corrida, apontava minha visão na direção de Natal e gerava um desenho de dois minutos da paisagem que se apresentava diante de mim. Esses desenhos ganhavam notação de data e geolocalização e eram enviados via correio para a instituição. À medida que chegavam – desenhos e envelopes – iam conformando um painel em que eram testemunho e índice de meu deslocamento. Em “Migrações”, em Montevidéu, eu estava em uma instituição chamada EAC, que era um antigo presídio. Os pavilhões eram segmentos de reta. Logo, fiz um desenho estendendo as linhas arquitetônicas do prédio até as fronteiras do Uruguai. O procedimento que eu ativei era o seguinte: ia de ônibus até onde esse vetor imaginário – que surgiu do pavilhão – encontrava

eu tinha encontrado uma pilha de paralelepípedos. Peguei alguns, marquei a localização de onde saíram e os carregava comigo como se fossem um monólito. Quando eu chegava ao destino, definido pela arquitetura da localidade onde estava antes, eu largava o

paralelepípedo lá. Era um microterritório móvel que levava consigo sua história

para esse novo espaço. Um lugar de fronteira – de chegada e partida. Assim como em “CEP”, no fim da caminhada diária de 30 km, eu desenhava, olhando na direção de Montevidéu, desenhos de dois minutos que mais tarde postaria no correio, endereçados à instituição. Então era sempre um caminho de retorno. Minha lei do eterno retorno.

Os trabalhos de equilíbrio de material estão relacionados à forma com que lido comigo mesmo; qualquer descompasso, eu logo percebo. Esses projetos de deslocamento me deram este discernimento, mas, de certa forma, destruíram o meu corpo. A gente está se esculpindo desde que a gente veio ao mundo. Quando somos

crianças e não entendemos bem as coisas e nos machucamos, isso é um aprendizado. É tomar consciência de sua fronteira. Existem

momentos de potencialização dessa aprendizagem quando somos novos (isso é um pensamento bem empírico, não sou pedagogo), contudo depois a gente vai se

esquecendo desse conhecimento e, com isso, se esquecendo da gente mesmo. Por isso, esses projetos que me machucaram, de fato, me esculpiram de novo não só psicologicamente, mas fisicamente. Deram-me noção do meu espaço como indivíduo inserido neste contexto planetário.

CM: Vendo o vídeo de “Transposição”

e refletindo na proposta de pensar o “Mover-se”, reparei que você escolheu algo

extremamente estático, tijolos, ou melhor bloquetes, que servem para construir algo fixo, sólido, para ficar permanente. Então, você os empilha, instala um cubo de concreto na praça, que depois é transportado lentamente, peça por peça. Por fim, eles se transformam no piso da galeria. Quando você explica sua proposta de equilíbrio, percebo aqui que há a expressão do equilíbrio pelo contraste, como a ideia do estático da construção que vai se deslocar para se tornar o chão onde as pessoas se movem em cima.

TP: Sim, e é matematicamente o mesmo

volume. Apresentam-se formas diferentes, mas são a mesma coisa. O que estava na praça, o mesmo volume escultórico, depois está planarizado na galeria. É a mesma quantidade de espaço apresentada de duas formas. Existe o diálogo entre esses dois lugares públicos através de um elemento comum. Mais ou menos a coisa do fractal. A unidade é igual, todo o bloquete é igual, tem a mesma medida. Foi a galeria vazia que determinou o que seria exposto no espaço público. Eu medi o chão da galeria para saber o quanto de tijolos seria. Essa equação é determinada pelo espaço e não por mim. O espaço que estava pedindo. Tira um pouco o peso de decisão, sabe? O pintor que escolhe o vermelho em vez do amarelo. Eu sou simplesmente uma ferramenta. É obvio que mentalmente projetei tudo aquilo, mas eu acabo jogando esta projeção de uma forma que o contexto espacial prescreve as normas. São dispositivos já pensados para eu não precisar entrar em rota de colisão comigo mesmo.

CM: E você poderia falar que aquele

sítio de obra era uma obra de arte e não uma obra de obra. Ou ainda, que era uma escultura em movimento.

TP: Exatamente. Muitas das

pessoas que pararam para falar comigo na praça não sabiam que a casa de cultura Mario Quintana tinha uma galeria de arte. Foi um trabalho que funcionou muito socialmente também. Desde empresários que estavam passando de pastinha a senhorinhas ou pessoas muito humildes que não sabiam o que estava acontecendo e

seguindo meu caminho descobriram que, na casa de cultura Mario Quintana, existia uma galeria de arte aberta ao público.

“Transposição” foi responsável por levar muita gente para lá. Camadas de eventos que o próprio evento proporcionou. Foi emocionante. Uma escultura em movimento, sim. Se transformando, se desintegrando e se reintegrando.

Translocações

D IS T RU KTU R & MAX JO R G E H IN D ER ER CR UZ

D

ISTRUKTUR – leia-se Gustavo Jahn e Melissa Dullius – exploram as particularidades funcionais e estéticas da filmagem em película através de um mover-se de exóticas travessias errantes. Foi em Porto Alegre / RS, em ano incerto, em uma das edições do Cine Esquema Novo, o meu primeiro contato com os trabalhos da dupla: assisti Triangulum (2008), onde eles estavam sentados em um tapete voador, no terraço de um prédio no Cairo e a cena tinha uma textura árida, uma granulação de poeira, ao vento. DISTRUKTUR está em disponibilidade para os encontros circunstanciais nos quais escolhas são feitas e uma narrativa não-linear é configurada; aceitam a potência e a limitação da técnica – o efeito-defeito – e respondem às situações dadas com políticas da falha, ofertando possibilidades e não garantias para as suas produções audiovisuais. Eis algo que o duo define como “a estética do espaço”: a ideia de que um determinado lugar fecunda determinadas formas, e que essas formas, ao se relacionarem no espaço em movimento, acabam por estabelecer um certo jogo que configura uma linguagem do local. O mover-se de DISTRUKTUR é uma estética espacial do exótico errante. Não o exótico latino-americano para exportação, mas um exótico desterritorializado que é povoado pelo cruzamento de signos mnenônicos encontrados em lugares já vivenciados (e outros tantos imaginados), que enfrenta a indeterminação da realidade

encontrada com a fantasia imagética oriunda da literatura e do cinema. Em “Cat Effekt” (2011), uma mulher caminha sozinha pelas ruas de Moscou, entra e sai de vagões de metrô, a caminho de uma reunião que inclui a exibição de um filme sobre um gato. O fanzine que acompanhava o filme na exibição em Porto Alegre iniciava- se assim: “Vamos começar pelo fim. Vamos terminar e então começar de novo. Voltaremos – um trem passa – a um lugar que já vimos em sonho”. “In the Traveler’s Heart” (2013), filmado

em Nida, uma pequena vila na Lituânia próxima ao mar báltico, um viajante cruza a pé essa paisagem ancestral, durante um inverno de um tempo remoto. Nesse lugar há também outra presença: alguém muito similar ao viajante. Como esse viajante percebe essa figura que co-habita o mesmo espaço que ele? Esse outro é um anjo guardião ou um demônio? O poncho e o chapéu remetem aos trajes típicos do gaúcho da América do Sul e os símbolos da estrela e sol em suas roupas e bandeira são parte do imaginário das civilizações antigas. A bússula aponta para o sul, um sul-mito, talvez o Sul de Jorge Luis Borges.

DISTRUKTUR & Max Jorge Hinderer configuram esse trio: a dupla, desde 2006 radicada em Berlim; ele, um escritor e editor boliviano-alemão em trânsito (tendendo à São Paulo). Aqui, uma entrevista não-estática onde o material produzido vai além das possibilidades do suporte físico da página impressa. Um convite para

o movimento da leitura que se dá em QR code, do papel para a tela (ou da rede onde se lê esse livro para a outra rede web, que exótica navegação!). É a emergência da translocação, o mover- se da imagem ao aparelho, entre o material e a vida. No questionamento da ordem das coisas, não em pólos opostos inconciliáveis, mas nas faces múltiplas de uma mesma realidade onde alternâncias não findam, uma afirmação: a produção da desordem também acaba por produzir ordem (ou a subversão sempre encontra um caminho). Nessa entrevista “aparelho estendido” – um aparelho hífen que une e separa as duas partes (quem atua e quem filma; quem pergunta e quem responde, uma linha que liga as coisas) – residem discussões sobre os ativos

operantes da imagem: uma narrativa textual e audiovisual próxima e afetiva sobre o movimento da imagem, ou a poesia do cinema. MS

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de // para // entre // através // com // sobre diálogo // vídeo // texto // imagem

No documento PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS DO MOVER-SE (páginas 45-57)

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