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Carta de Cândido Rondon a Torres Gonçalves

No documento 2009DarniPillarBagolin (páginas 125-128)

CARTA DE CÂNDIDO RONDON A TORRES GONÇALVES

Rio de Janeiro, 24 de Shakespeare de 122 Sr. Torres Gonçalves

Porto Alegre

“Só hoje posso responder a vossa carta de 25 de Gutemberg, já tendo, no entanto, vos telegraphado o que a ideia por vós aventada de ficar com o Estado a parte principal do Serviço de Proteção aos Índios e, com a União o simples papel de auxiliar, pensam os Directores de nossa Igreja e eu.

Já sabeis portanto, que discordo em limine da alludida opinião; e, não só discordo como até penso que se deverá proceder de modo opposto, isto é, que à União é que deve ficar afecta a iniciativa, o planejamento, a execução e a direcção desse serviço e aos Estados o dever de o subsidiarem com todos os recursos ao seu alcance.

Se não for assim não consiguiremos sahir da situação anárchica em que nos achamos. Com 22 anos de regimem republicano, no qual os Estados gosam ampla autonomia, ainda nada se fez em nenhum delles, que denotasse uma resolução firme e sincera de proteger os índios e até mesmo no Rio Grande do Sul as cousas se teem passado de modo a dar ensejo a esta phrase de vossa carta: “os governantes aqui do Estado ainda nenhuma preocupação real, por actos, manifestaram de proteger os nossos silvícolas, posto que não lhes desgoste o título de protector delles”.

Si isso é assim no Rio Grande, o que podemos esperar da maioria dos Estados onde, ou os governos ainda não lembraram da existência dos índios ou só lembraram como pretexto para justificar certas despesas e subvenções pecuniárias?

O Serviço de Proteção na mão dos Estados seria a anarchia nos processos e nos meios; estaríamos expostos a meu ver, na extenção do território brasileiro applicado, aqui o extermínio, alli a catechese forçada, theologia ou metaphysica, e mais além o abandono. Ora, os índios não devem ser tratados como propriedade do Estado dentro de cujos limites ficam seus territórios, mas sim como nações autônomas, com as quais queremos estabelecer relações de amisade.

Os governos estaduais, urgidos pela necessidade de fazer dinheiro sob a influência dos interesses próximos, quase nunca sabem resistir à tentação de dispor dos territórios dos índios sob o titulo de terras devolutas. Quanto à União, é impossível negar achar-se ella uma posição muito mais favorável para considerar o problema de um ponto de vista mais geral, mais humano, desprendido de influições regionaes.

Dizeis que a natureza e o grau do concurso que o Governo do Estado pode aceitar, devem ficar dependentes da confiança que a Direcção Regional do Serviço de Protecção aos indígenas brasileiros, em cada momento, inspirar ao Rio Grande do Sul. Ora, esta theoria, si fosse aceita para o Rio Grande, teria necessariamente de estender-se aos demais Estados; basta esta consideração para verdes quanto ella é perigosa e quanto insustentável seria a situação da Directoria Geral. Alem disso, ella funda-se sobre o equívoco de se considerar a população indígena como parte integrante do Estado; pois si a considerardes como nação autônoma, logo verdes que o que pedis equivale a reclamar que a natureza e o grau do concurso prestado pelo Governo Estadual ao da União, nas relações com o Paraguay, Uruguay, Argentina, etc, fique dependendo da confiança que ao Estado inspirar o ministro do Exterior.

A propósito deste serviço precisamos, como sempre seguir o ensinamento da nossa Doutrina, de julgar da adhesao que devemos dar a uma acto público só pela consideração da sua positividade, e cada órgão social pela funcção que exerce e pelo modo porque a exerce. As prevenções por vós lembradas submette a funcção à apreciação individual que do Diretor Geral fizer o presidente do Estado ou algum de seus auxiliares, o que importa na inversão da regra estabelecida por nossa Doutrina Social.

Agora tenho a felicidade de contar com a vossa amisade e apoio o que muito me alenta e confirma nas esperanças que nutro do bom êxito da minha acção nesse Estado. Mas quem me poderá assegurar idênticas disposições de animo nos funcionários de todos os outros Estados e quem venha os substituir? Crendo haver assim fundamentado convenientemente o parecer que vos dei, discordando da opinião que íeis inserir no vosso relatório, resta-me agradecer as captivantes palavras de amisade que me dirigis, com as quaes chegastes até a um grande exagero dos meus méritos.

Sem falsa modéstia digo-vos que, pessoalmente não possuo outro mérito sinão o de amar com muita abundancia d’alma, nossos infelizes irmãos das selvas, aos quaes desejo com toda a vehemencia de minha natureza livrar dos oppressores, que o são em regra geral por má fé.

Aguardo os dois últimos relatórios annuaes da vossa Secretaria, de cujo valor prejulgado pelo o que lhes antecedo sobre os indígenas Rio Grandenses.

Quanto à indicação do nosso correligionário, cid. Mário Miranda, para auxiliar o serviço nesse Estado, bastava ella vir-me de vós para ser acolhida com uma sólida recommendação da competência moral e pratica do vosso amigo. Mas não depende só de mim as nomeações dos auxiliares do Serviço nos Estados, os quaes é meu desejo que sejam pessoas da confiança dos respectivos Inspectores e como para este lugar apresentei ao Sr. Ministro da Agricutura o nome de nosso corrligionário Raul Abbot, teries o vosso desejo de servir ao Sr. Mario Miranda satisfeito desde que alcanceis delle fazer-me a indicação deste nome para o lugar de escrevente, ou outro.

Eu e minha esposa recebemos com abundancia de coração os afectuosos cumprimentos que nos enviastes, em vosso nome e no de vossa digna Senhora, e gostosamente os retribuímos”.

Todo vosso no serviço da Fé commum, “Cândido Mariano da Silva Rondon”. Fonte: FUNAI – Fundação Nacional do Índio – 2009.

No documento 2009DarniPillarBagolin (páginas 125-128)

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