• Nenhum resultado encontrado

3. Crítica e Autocrítica: E Depois do Adeus?

3.2 Carta a um amigo fardado

Publicada em cinco jornais - Tribuna da Imprensa (RJ), Jornal da Tarde (SP), Diário de Minas (Belo Horizonte), Jornal da Tarde (Curitiba) e O Estado (Fortaleza) -, no final de 1966, depois do Congresso já ter elegido Costa e Silva para a presidência, a “Carta a um amigo fardado” é, provavelmente, o texto mais forte escrito por Lacerda nesta época. Logo na abertura, ele estabelece quem é o “amigo”, ao qual se dirige, aquele que “saiu do quartel em 1964 para garantir a realização de eleições livres e

diretas, a existência de um Congresso sem coação e o funcionamento de um governo representativo, sem ditadura”. Entretanto, o que sua ação trouxe ao país? “Hoje não temos eleições diretas e livres. O Congresso andou fechado. E agora, estamos em plena ditadura”235.

“Tudo isto”, prossegue, “em nome da eliminação, da vida pública, de corruptos

e subversivos”. Porém, enquanto alguns destes foram mesmo afastados, outros foram

até incorporados ao governo. Os “novos subversivos”, diz, “alegam uma pretensa

menoridade mental do povo para se arvorarem em seus tutores”. E a corrupção não

apenas continua existindo no novo regime, como é pior neste do que era antes, uma vez que é “disfarçada e agora protegida pela falsa virtude e pela censura virtual que coage

o país”236.

Dessa forma, Lacerda escreve que espera que o amigo “não tenha, a esta altura,

ilusões”, pois, “para cada ladrão do passado posso citar-lhe um ladrão do presente, inclusive entre companheiros de farda”. Se é assim, se a revolução não veio para acabar

com a corrupção e a subversão, e sim para substituí-la por outras versões daquelas, então pelo que você, amigo fardado, está lutando, senão pela “suprema humilhação de

servir de capangas da implantação de uma ditadura pessoal no país”? Lacerda deixa o

aviso: somente uma vez na história do Brasil, as Forças Armadas foram usadas como apoio a uma ditadura, se referindo ao Estado Novo, e mesmo assim, orientadas por um “líder popular” num cenário internacional de “tendência totalitária”. Diferente de agora, onde as Forças Armadas do Brasil estavam sendo chamadas, em um momento democrático do mundo, para “servir de guarda pretoriana para um César babaquara,

um infeliz tiranete retardado”237.

235 LACERDA: 1967, p. 41. 236 LACERDA: 1967, p. 41. 237 LACERDA: 1967, p. 44-45.

118 Prossegue Lacerda, apelando à consciência dos militares:

Pois aqueles que você está silenciando só não podem falar porque se vêem debaixo da mira dos fuzis-metralhadora. E quem lhe disse que só por ter fuzil você tem razão? É a lei da selva, a nova legalidade a que você serve? O que em todos os tempos se procurou evitar no Brasil foi a colocação do problema da luta pelo poder em termos de civis contra militares. Pois todos sabem, e não o sabe menos você que veste farda, que a melhor parte de vocês veste a roupa do homem do trabalho, a saia das mulheres, a calça curta dos meninos de escola, são a sua família, a sua gente, o povo do qual você saiu, meu caro amigo – e que hoje o contempla, emudecido e consternado. O que me atormenta é pensar no julgamento dos seus filhos sobre o papel que o pai desempenhou no esmagamento do caráter de sua Pátria, no acovardamento pela ameaça da força, na violência contra a dignidade dos próprios irmãos. Triste vitória, vergonhosa vitória seria essa do Exército contra o povo, ele que é uma delegação do povo, ele que não pode senão ser uma emanação do povo238.

Avisando que os militares estariam criando no Brasil um ambiente propício para o desenvolvimento de um sentimento anti-militar e da expansão do comunismo como jamais acontecera antes, uma vez que o regime vigente “deu ao povo motivos para crer

que o comunismo é bom, uma vez que os seus inimigos são tão ruins, tão vaidosos, egoístas, incompetentes, hipócritas e brutais”, Lacerda chama a atenção para o fato de

que os militares são, no momento, o único partido político em funcionamento no Brasil, além do sempre organizado, mesmo quando proibido, Partido Comunista, “cuja causa

vocês reforçam junto ao povo ao permitir a eliminação de todas as lideranças democráticas, substituídas por chefes que expõem o Exército diretamente e cobrem com as armas o seu triste personalismo”239.

Apesar desse tom, virulento e extremamente crítico ao regime militar, o que Lacerda propõe ao “amigo fardado” não é a volta aos quartéis e o abandono do regime. Seja por ainda acreditar no espírito da revolução, seja por estratégia realista, Lacerda sugere aos militares que afastem desde já Castelo Branco e empossem Costa e Silva no seu lugar, ao invés de esperar até março de 1967, como estava previsto. Isso, deixa claro o autor, não significa o endosso do nome de Costa e Silva, sobre o qual têm muitas ressalvas:

Não acho que Costa e Silva tenha sido a melhor solução. Vocês disseram que era a única possível. Pois, ao menos, adotem AGORA a única solução possível. (…) Não se trata de depor Castelo, mas sim de convocar Costa e Silva para que cumpra o dever para o qual vocês o

238 LACERDA: 1967, p. 46-47. 239 LACERDA: 1967, p. 50.

119 designaram. Esse dever não tem data. (…) Não tenho confiança no Sr. Costa e Silva. Acho-o leviano com as suas relações, deslumbrado e despreparado. (…) Apenas acho que, uma vez que vocês assumiram toda a responsabilidade por ele, e o Congresso coonestou a imposição de vocês, elegendo-o, é melhor dar posse logo a ele do que fazer de Castelo um ditador. Nenhum ditador é bom. Mas Castelo é o fim! E você sabe disso, como Costa e Silva também. (…) A posse imediata do Marechal Costa e Silva talvez não dê ao Brasil o presidente que ele precisa, mas livra o Brasil do ditador que ele não quer240.

Lacerda finaliza, lembrando que, no regime anterior, o povo tinha ao menos a esperança de uma solução vinda pelas mãos dos militares, em quem confiavam. Hoje, até isso lhe fora tirado:

Nos dias que precederam a sua saída do quartel, em defesa das eleições e da liberdade do Brasil, todas as aflições tinham um conforto, todas as ansiedades uma garantia. Toda gente dizia que as Forças Armadas não permitiriam que ISSO acontecesse no Brasil. Pois bem, agora ISSO acontece – sob a sua proteção, com o seu silêncio. E o povo perde a confiança em você241.

De uma certa maneira, a “Carta a um amigo fardado” dá prosseguimento ao posicionamento que Lacerda vinha seguindo durante o ano de 1965: oposição a Castelo Branco, mas com defesa da revolução. Nesse particular, o que esse texto nos traz de novo é o afastamento progressivo das lideranças da revolução, deixando bem claro que, se é cada vez maior sua aversão a Castelo Branco, isso não significa que esteja alinhado com Costa e Silva. Nessa carta, Lacerda fala diretamente às bases da revolução, ao “amigo fardado”, aquele cuja melhor parte veste saia, calça de escola, aquele homem do povo que está por trás da farda, e que não deve servir a nenhum líder, apenas ao povo. É possível defender que, apelando a essas bases, Lacerda desejava mais do que uma substituição de Castelo Branco por Costa e Silva – apontava para uma retomada do rumo da revolução, não necessariamente conduzida por seus líderes. Porém, é preciso lembrar que, apesar de todo o apelo emocional ao “homem por trás da farda”, uma simples insinuação dessa ideia contrastaria com o espírito hierárquico das Forças Armadas, o que certamente não seria bem recebido pelos comandantes, e mesmo por uma parte da tropa.

240 LACERDA: 1967, p. 52-60. 241 LACERDA: 1967, p. 60-61.

120

Documentos relacionados