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1025 Cartas e algumas interpretações sobre Flusser

Maria Ribeiro Marcelo Santos

25 Cartas e algumas interpretações sobre Flusser107

Josimey Costa da Silva

Introdução

“A vida é circular. O que posso te oferecer é um abraço [que não passa de um círculo]” Nassary Lee.108

Caso Vilém Flusser pudesse lançar um olhar agora para o mundo que anteviu em sua imaginação fi losófi ca, que tipo de interlocução estabeleceria com o seu próprio pensamento? Evi- dentemente, qualquer resposta a isso só poderia ser mera especu- lação, mas há caminhos possíveis para testar os desdobramentos atuais das formulações fi losófi cas do autor, embora presentifi car Vilém Flusser requeira um exercício de crítica e interpretação que não é tarefa das mais fáceis, tão longe e originais foram essas re- fl exões sobre a sociedade e o ser no mundo das formas materiais necessariamente simbólicas e da comunicação.

107 O presente texto inclui cartas escritas pelos seguintes discentes da Universi- dade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN (em ordem alfabética): Ana Cláudia Go- deiro, Gabriela Olivar, Gildália Santana, Juliana Braz de Oliveira, Lady Dayana Silva de Oliveira, Lucas Mateus de A. Miranda, Nassary Lee de Oliveira Silva, Patrícia Goes Britto, Patrícia Falcão, Romildo Setúbal, Vanessa Costa e Silva, Vinícius Felipe da Sil- va (todas em 2005) e Adriana Conceição Silva Costa, Aracely Xavier da Cruz, Flávia Renata A. Galdino Veras, Gabriela Dalila Bezerra Galdino, Indra Filgueiras D. dos

Santos, Jéssica da Silveira Messias, Lisandro Loretto, Maria do socorro da Silva, Maria

Jacqueline Abrantes Gadelha, Michelle C. Medeiros da Silva, Rejane Guedes Pedroza, Rodrigo Viana Sales, Rosália de Oliveira Figueirêdo (estas em 2011). Também compõe este trabalho um ensaio fotográfi co com o grupo Balé da Cidade, em espetáculo sob direção de Maurício Motta encenado em 09/08/2012. Fotografi as e concepção de arte: Angela Almeida (UFRN); Design gráfi co: Wallison Vinícius (UFRN).

108 Poema dedicado à Flusser. Disponível em http://corpusgemini.blogspot.com. br/2005/10/nassary-lee.html.

Hoje, a mídia e a informatização das expressões do conhecimento global conectam fragmentos dispersos e formatam o próprio pensamento, em face de um novo modo de perceber e vivenciar o espaço e o tempo. Os códigos da cultura, materializados em imagens digitais, em superfícies planas, refl etem as novas estruturas de pensamento, ao mesmo tempo em que as formatam109. Novos paradigmas estão surgindo. Há trans-

formações importantes nos modos de ser e agir na sociedade con- temporânea. Se Flusser foi um dos primeiros pensadores a refl etir fi losofi camente sobre essas mudanças, averiguar o impacto que sua refl exão representa no pensamento de quem o lê é um modo de conferir a atualidade de sua presença hoje virtual.

Ao passo em que refl etia sobre tecnologia e contempora- neidade, Flusser também se voltou com freqüência para o passa- do, para o arcaico e o sagrado, percebendo em comportamentos atuais as raízes antigas de práticas ancestrais e eternas. Assim é que, no elogio que faz ao diabo (FLUSSER, 2006), essa fi gura mítica e repleta de simbolismos, o autor discute o processo luxu- rioso da leitura e da escrita, que coloca em palavras e frases o que é tipicamente geral, biológico, antropológico:

Toda tentativa de cosmovisão é autobiográfi ca, mesmo se procurar escondê-lo. Mas isso não é necessariamente um defeito. Somos produto da conversação que nos cerca e da qual participamos. Somos portanto, todos, ligados uns aos outros mais ou menos intimamente. Aquilo que chamamos ‘nossa experiência individual’ é portanto mui- to menos característico, e muito mais típico do que sus- peitamos. Uma autobiografi a tem sempre um signifi cado mais geral que o termo ‘auto’ implica. O que prevalece nela é o termo ‘bio’. (FLUSSER, 2006, p. 94).

Essa perspectiva do autor se realiza de certa forma na quantidade de escritos que o ligam ao pensamento contemporâ- neo produzidos por seus leitores. Uma busca rápida por “Vilém

109 Cf. O mundo codifi cado: por uma teoria do design e da comunicação (FLUSSER, 2007b).

Flusser” na Internet chega a produzir 177.000 resultados110, in-

cluindo destacadamente uma página na enciclopédia livre Wi- kipedia111, um blog (arquivo virtual) com textos do autor112 e o

site do Arquivo Flusser113, com sede física em Berlim, Alemanha.

Somente sobre “Cartas e Flusser”, havia 121.000 resultados no Google numa primeira consulta e 779.000 numa segunda114. Bem

a propósito para esta refl exão.

Para Flusser (2010), as “cartas também são apenas um fe- nômeno intermediário entre aquilo que ressoa da fl oresta e aquilo que nos dizem os automóveis robotizados quando esquecemos de colocar os cintos de segurança” (FLUSSER, 2010, p. 115).

Em coerência a isso, Flusser era também um escritor de cartas. Sua correspondência com Sérgio Paulo Rouanet é motivo de estudo115, e algumas das suas cartas no Brasil permitiram a

publicação de parte do seu pensamento coligido em escritos116.

Para Flusser, o cheque é uma carta endereçada ao banco que o faz entregar dinheiro ao portador. O autor, profeticamente, diz que a atividade postal via correios seria menos importante quando os telefones se interligassem ao computador, e lamenta a troca dos cheques pelos cartões de crédito e suas memórias artifi ciais, que considerava como talvez os precursores de todas as cartas do futuro. Neles, e podemos pensar que também nelas, as cartas

110 Mecanismo de busca: Google. In: http://www.google.com.br/search?q=fl us- ser&ie=utf-8&oe=utf-8&aq=t&rls=org.mozilla:pt-BR:offi cial&client=fi refox-a. Con- sultado em 30/12/2011.

111 http://pt.wikipedia.org/wiki/Vil%C3%A9m_Flusser. Consultada em 30/12/2011.

112 Textos de Vilém Flusser, in: http://textosdevilemfl usser.blogspot.com/, con- sultado em 30/12/2011.

113 Cf.: http://www.fl usser-archive.org/. Consultado em 30/12/2011.

114 In: https://www.google.com.br/search?q=cartas+e+fl usser&oq=cartas+e+fl u

sser&aqs=chrome..69i57j0l5.40334j0j8&sourceid=chrome&es_sm=122&ie=UTF-8 Primeira consulta em 24/11/2012; segunda consulta em 30/05/2014.

115 Cf. MENDES, Sérgio. Cartas Flusserianas: diagnóstico sobre correspondên- cia com Sérgio Paulo Rouanet. In: http://www.fl usserstudies.net/pag/01/mendes-cartas- fl usserianas01.pdf. Consultado em 04/12/2012.

digitais, não haveria muita solenidade, mas sim, muito segredo (FLUSSER, 2010). A eletricidade, os pulsos magnéticos, a trans- missão em banda larga, os inumeráveis técnicos em linguagem computacional envolvidos na inteligibilidade e visibilidade dos códigos binários fazem das cartas contemporâneas um prodígio de magia insondável para os usuários comuns, e também para os intelectuais do porte que ele e Rouanet representavam.

Na pesquisa feita por Mendes sobre as cartas trocadas en- tre Flusser e Rouanet entre 1980 e 1991 ([200_]), foram analisa- das 56 cartas datilografadas, sendo 26 enviadas por Rouanet e 30 por Flusser, totalizando 215 páginas. Flusser teve em Rouanet um interlocutor em que o confl ito não diminuía o interesse na con- versação. Segundo Mendes, ambos desconheciam mutuamente a obra do outro e operavam em quadros teóricos diferentes, o que, ao invés de impedir o diálogo, o tornava rico e útil. Rouanet, em uma frase, resume um pouco do espírito que a troca de correspon- dência gerou, ainda que num clima de efetivo debate intelectual, como revela Mendes ([200_], p. 07 ):

E, certamente, tal reconhecimento defi nirá o clima des- se relacionamento, que tem na carta de Rouanet, datada de 10.10.80, um dos pontos altos: ‘Desculpe minha ir- reverência em certos momentos desta carta. Sei que não preciso exercer, conversando com você, nenhuma auto- censura, o que é um alívio. Vale. /(manuscrito) Rouanet’ (SR, 10.10.80, parágrafo fi nal).

A carta se refere ainda à beleza da escrita de Flusser e à sua capacidade de penetrar textos de forma profunda e de inter- rogar cada objeto radicalmente, ao ponto de que o objeto termina por revelar a sua essência. Rouanet (in MENDES, [200_]) também destaca a identifi cação que Flusser faz da mediação como elemento central da cultura e do papel do intelectual como sendo o de “‘... procurar decifrar o mundo codifi cado. Para isto ele precisa assumir o código regente.’ (VF, 24.09.80). Ele acrescenta que o projeto de decifração do mundo “não é ‘crítica da cultura’, mas ‘crítica da existência em cultura.’ (VF, 04.02.81)” (MENDES, [200_], p. 12).

Por entender a existência na cultura como dependente dos processos de signifi cação e da necessidade que o homem teria para construir sua realidade e efetivamente ser (sein), Flusser procurou delimitar as áreas constitutivas do campo das ciências da comuni- cação e defi nir métodos de investigação. Não de qualquer maneira, porém, mas de modo a aplicar os resultados da pesquisa na prática da comunicação. Assim, Flusser foi um dos primeiros pesquisado- res a se dedicar especifi camente à comunicação, tendo criado uma disciplina para tanto, conforme interpreta Hanke (2004, p. 64):

A “comunicologia” trata as formas e códigos dessa co- municação, que é defi nida como processamento, arma- zenagem e divulgação de informação já existente, as- sim como a criação de nova informação. Comunicação, segundo Flusser, sempre depende da mídia, e talvez a maior descoberta realizada por ele foi perceber que qual- quer mídia possui uma lógica própria, ou seja, que uma mídia transmite informações sobre a realidade segundo leis próprias. Se mudamos a estrutura da mídia, muda- mos também a realidade percebida.

A noção que Flusser apresenta sobre a mídia compreen- de o corpo, a língua, as pinturas rupestres ou contemporâneas, os livros, os jornais e televisões e até as redes atuais, ou seja, tudo o que permite o acionamento de códigos. Dessa forma, na contramão da teoria marxista, Flusser assevera que a informação e a comunicação presentemente atribuem poder e constituem a infraestrutura da sociedade.117 Hoje, a quantidade de teóricos que

se dedicam a isso pode ser um indicativo dessa perspectiva.118 De

qualquer maneira, trazer cartas de alunos a esta análise pode ser temerário. Afi nal, a pós-histórica, como ele considera a atualida- de, está caracterizada por mudanças de paradigmas em que os sis- temas de escrita são substituídos por imagens que não são apenas

117 FLUSSER, V. (1997). Medienkultur. Cf. HANKE (2004), p. 65 e 71). 118 Entre os autores que se dedicam à comunicação como fundamento da socie- dade contemporêna, podem ser citados Edgar Morin, Manuel Castels, Arjun Appadurai, Douglas Kellner, Paul Virilio, Gianni Vattimo, entre outros.

produzidas por aparelhos, mas nulodimensionais, numéricas, projetadas no vazio, criando processos circulares que retraduzem textos em novas imagens.

Cartas, em sua essência, são textos escritos. Terão desapa- recido da cultura contemporânea? Certamente que não, mas mu- daram de forma, de estatuto; incorporaram a tradução dos códi- gos binários. Isso porque o intelecto teria a função de simbolizar e propor novos códigos. É assim que o intelecto realiza-se no ser e cria realidade. O processo é contínuo e a liberdade consiste em dar sentido, articular os símbolos sem os quais a realidade não existe. Hanke, com o apoio de Flusser, pondera que um símbolo remetendo a outros cria hierarquias de símbolos e que a percep- ção de imagens resulta de mediações entre o homem e o mundo só possíveis pelas operações de abstração e imaginação, que por sua vez resultam na representação do próprio mundo para cada um. Os símbolos seriam, assim, fenômenos intersubjetivos: só existem para os que dominam a convenção119 e articulam sentido

na conversação ou na conversa.

As imagens técnicas poderiam estar prescindindo de de- cifração, conforme Flusser. Isso estaria de algum modo expresso nas cartas dos alunos aqui analisadas? Em primeiro lugar, é im- portante pensar o que Flusser (2007a) chama de realidade. Para ele, a realidade é só o que pode ser apreendido; a realidade seria o conjunto do que pode ser apreensível e compreensível e o que pode ser apreendido e compreendido também pode ser chamado de símbolo. Com isso, o autor queria chamar a atenção para o fato de que não existe o real em si, mas apenas a realidade que o ser percebe, apreende. Nesse sentido, e defi nindo a língua como um conjunto de símbolos, teríamos a conclusão de que a realidade é a língua; não há realidade para além da língua.