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1 CARTAS NA MESA: UMA INTRODUÇÃO

1.3 Cartas e alimentação do sistema literário

No trabalho com cartas em sala de aula, parece faltar, nos livros didáticos, exemplos de cartas escritas por escritores. Por isso, sugere-se neste estudo que sejam inseridos. Essa foi uma das intenções de apresentar as cartas de Carroll aos alunos. Geralmente, escritores lidam com a escrita de cartas de modo diferente como lidam as demais pessoas no cotidiano. As produções epistolares de Carroll — como, aliás, ocorre com cartas em geral — não eram escritas para serem guardadas (salvo algumas exceções, como cartas a fornecedores de material para seu college, por exemplo, que deveriam ser anexadas a relatórios), nem para serem analisadas à luz de alguma teoria discursiva ou literária. Entretanto grande número dessas cartas foi guardado pelos destinatários. Seria um costume do tempo, em que as pessoas, como alguns textos de Carroll sugerem, usavam as cartas para divulgar as notícias sobre eventos políticos e culturais não apenas ao destinatário nomeado, mas a todos aqueles que esse destinatário escolhesse como merecedores de compartilhar a leitura. O autor, em algumas cartas, sugere que seu leitor ou sua leitora mostre a carta aos irmãos, aos pais e a outras pessoas.

Por outro lado, terminada a curiosidade sobre as informações, o que levaria os destinatários das cartas de Carroll a guardá-las? Certamente, muitas razões, mas interessa a este trabalho uma possível relação afetiva com o autor, provocada pela escrita que é pensada para cada um dos amigos, principalmente as crianças, mesmo que se mantenha um estilo pessoal comum. As brincadeiras, as histórias criadas, os versos enviados são pensados a partir do receptor que os lerá e podem ter demonstrado a esse leitor um caráter de “objeto especial” e “único” que merece ser guardado.

Além disso, o sucesso do autor com a publicação de As aventuras de

Alice no País das Maravilhas e seus outros textos infantis deve ter investido as

cartas que escreveu de uma aura de “carta a um fã”, “autografada”, o que também agregaria ao objeto um valor afetivo, que fortalece a ideia de preservação. Além disso, guardar exemplos do “lado humano” de um autor famoso, sentindo-se como dono de um segredo que mais ninguém possui, pode levar a esse arquivamento.

Finalmente, é provável que o exercício estilístico, e isso é marcante em Carroll, que os autores realizam nas cartas (gêneros de fronteira entre o histórico e o literário) e que parece articular-se com o estilo apresentado em seus textos literários, traga mais tinta para o lado literário das cartas e, portanto, as torne merecedoras de arquivo, como os livros dos autores, ainda que longe das estantes, em gavetas e pastas.

Quando um professor pode trazer cartas de autores para seus alunos, os leitores atuais não podem estabelecer uma amizade real com um autor já falecido, mas a leitura dessas cartas pode levar a uma “amizade platônica”, uma “amizade literária”. Alguns alunos da pesquisa mostraram indícios de um início dessa amizade literária, pegos que foram pelo que, do estilo pessoal marcadamente literário do autor, permaneceu nas cartas lidas.

Sabendo que os livros infantis de Carroll não costumam vir à mente dos professores da escola a que pertenciam os entrevistados (alguns não reconhecem o nome Lewis Carroll; outros ligam a personagem Alice à sua representação em desenho de Disney, não à leitura de traduções do texto original) e, também, que nenhum dos alunos entrevistados mostrou conhecer Carroll, esse início de amizade literária provocado pela leitura das cartas pode ser alimentado pela indicação da leitura da obra literária do autor pelos professores, como membros formadores do

conceito de literatura: a obra de Dodgson é reconhecida como marco da produção de literatura infanto-juvenil mundial, o que nomeamos clássico.

Se o ensino da língua supõe criar, como indicam os PCN, meios de acesso aos produtos culturais traduzidos pela língua escrita presentes e passados, o caminhar da carta ao conto é válido na implementação desse acesso. Constitui caminho inverso ao que muitas vezes o leitor adulto percorre, indo da leitura da obra para a curiosidade frente à vida do autor, cuja satisfação pode ser alimentada pela leitura de biografias, diários e produções epistolares do autor. Esse segundo caminho também pode visitar as salas de aula com bons resultados. Essa viagem ajuda o leitor a costurar a identidade do autor como escritor e como homem de seu tempo.

Mesmo um olhar superficial sugere relações entre o literário e o epistolar de Carroll, já que se anunciam algumas semelhanças entre ambos, na temática e na forma, que outros trabalhos poderão analisar. Por outro lado, a leitura das cartas, quando expressa neste texto acadêmico, também revelará um pouco do prazer estético e lúdico que provocaram enquanto esse mesmo texto era concebido e produzido.

Cartas de escritores e obras literárias são gêneros que se tocam em suas fronteiras. As primeiras podem situar o leitor no contexto do sistema literário em que as segundas são produzidas, divulgadas e lidas. Data de 1959 a obra de Antônio Cândido em que o crítico formula pela primeira vez a noção de sistema literário:

Formação da literatura brasileira. A noção de sistema literário se sustenta no tripé

autor-obra-público, num desenho em que esses três componentes estão em constante interação, gerando uma tradição cultural (CÂNDIDO, 1976). Falar de As

aventuras de Alice no País das Maravilhas é entrar no campo das obras clássicas e,

portanto, da tradição. Dos elementos constitutivos da tríade, pode-se colocar peso nos leitores como os que permitem que a literatura se desenvolva, com suas ideias, gostos, estímulos, rejeições e experiências. Aqui as cartas do autor para seu público podem ser lidas como uma forma de cultivar e cuidar da existência constante desse elemento da tríade sem o qual não existirá futuro para autores e obras.

O trabalho de análise literária, como proposto por Antônio Cândido (1976), abre o olhar para a combinação do estético e do social, este encarado como “fator da própria construção artística”. Busca aproximar o interno e o externo ao literário. Entre as modalidades de estudo da literatura, estão a investigação das

relações entre texto e público e o exame da posição e função sociais do escritor. Para essa investigação, é possível contar com o estudo da epistolografia dos autores como fonte de dados que podem lançar luzes sobre vieses específicos dessas duas modalidades de análise. Mais uma indicação de que cartas de escritores devem circular pela escola, um dos espaços de alimentação do sistema literário e que, nas aulas de língua portuguesa, toma como seu objeto mais específico o trabalho com a literatura.

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