• Nenhum resultado encontrado

2.3 RECONHECIMENTO E AUTONOMIA: A PERSPECTIVA DE HONNETH

3.1.4 Cartilha: Mulher Sem Terra (2000)

24 Apresentamos todos os textos da publicação tendo em vista que, mesmo não tendo sido diretamente

produzidos pelo Setor de Gênero, foram selecionados pelo Setor a fim de orientar as formações e estudos das mulheres sobre a temática de gênero.

No ano de 2000, o Coletivo Nacional de Gênero do MST lança a cartilha Mulher Sem Terra. A publicação está estruturada em oito temas a serem trabalhados em encontros de formação, estudo e discussão sobre a participação e a realidade das mulheres Sem Terra: “serão 8 (oito) encontros que irão trazer elementos para refletirmos sobre nossa realidade e juntas, organizadas, buscaremos saídas para construirmos uma vida digna” (MST, 2000, p. 4).

A cartilha apresenta, para todos os encontros, sugestões de canto e de mística para a abertura da atividade. Todos os encontros partem da mesma estrutura: abertura (cantos e mística); introdução sobre o tema do encontro; questões para debate em grupos (exemplos do cotidiano e sobre “o que podemos fazer”); conclusão (informações complementares à introdução); preparação para o próximo encontro (definição de data e local, convites, preparação do ambiente e da mística, agradecimentos e cantos de animação).

Os oito temas apresentados, cada um referente a um encontro, são:

a) As mulheres e a luta de classes: o Coletivo se vale da analogia com um jogo de futebol para indicar que existem dois times que disputam um projeto de sociedade, em um deles está a classe trabalhadora e no outro a classe que explora o trabalho. E definem: “o nosso time, ou seja, o nosso projeto precisa conquistar essa imensa torcida [sociedade] e trazê-la para campo, fazê-la jogar, e assim acumular força para construirmos a nova sociedade” (MST, 2000, p. 11). b) Relações de gênero: o Coletivo esclarece a diferença entre sexo e gênero, alertando para o fato de que a origem social do gênero permite que os papéis atribuídos a cada um sejam transformados. E pontua:

nós mulheres somos diferentes dos homens, mas não somos inferiores. Politicamente, somos iguais. Existe na sociedade o masculino e o feminino, mas ela está organizada PELO masculino e PARA o masculino [...]. Queremos é que o ser feminino participe da organização desta sociedade para que ela seja pensada pelos dois e para os dois (MST, 2000, p. 17).

Esse trecho novamente explicita a inviabilidade de se olhar para as demandas das mulheres do MST tentando enquadrá-las em um dos polos do binômio igualdade e diferença.

c) Educar sem discriminar: há a retomada da ideia de que os papéis sociais de gênero são construídos socialmente, e ressalta-se a importância de conhecer como eles são produzidos através da educação. O Coletivo afirma: “É ela [educação] a responsável por todas as catástrofes e tragédias cometidas contra as mulheres no mundo” (MST, 2000, p. 21), evidenciando que a educação começa no seio da família, por que “é ali que as crianças aprendem as primeiras crenças, as primeiras atitudes e nelas estão embutidos os valores que influenciarão as pessoas

por toda a vida” (MST, 2000, p. 21). O documento destaca que o problema não está em preparar a mulher para ser doce e uma boa mãe, mas prepará-la exclusivamente para isso.

d) Os valores: o Coletivo exemplifica com uma série de situações a distinção entre uma boa atitude e uma má atitude a fim de problematizar o significado de juízo de valores. E argumenta que “os valores [...] estão ligados à vida e orientam o comportamento das pessoas. [...] Somente sabemos dizer o que é certo porque existe também o errado” (MST, 2000, p. 28). E propõe para debate questões ligadas a identificar nas relações familiares, entre assentados, com a natureza e com o Movimento o que há de bom e o que há de mau nessas interações.

e) Cultura e lazer nos assentamentos e acampamentos: nesse encontro o Coletivo tem por objetivo diferenciar cultura popular de cultura de massa, chamando a atenção das mulheres para a importância de serem criados, no interior da comunidade, momentos compartilhados de lazer para que valorizem suas práticas culturais em oposição às músicas e dramaturgias veiculadas na televisão e nas rádios comerciais.

f) Mulher e saúde: o Coletivo esclarece que a saúde não está ligada apenas a médicos e remédios, mas especialmente à prevenção e ao conhecimento do próprio corpo. Destaca que as mulheres não aprendem sobre o funcionamento do seu corpo a partir das mudanças que ele vai sofrendo, mas que esse é um direito. Explica ainda o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e do direito universal ao atendimento de saúde, e quais os serviços que o SUS deve garantir especificamente às mulheres, como acesso a métodos contraceptivos e atendimento pré-natal e durante o parto.

g) As mulheres e a construção do projeto popular: nesse encontro o Coletivo visa resgatar diversas lutas históricas que foram protagonizadas por mulheres ou que tiveram sua participação como elemento central, destacando a força delas e a importância de que se mobilizem na direção da construção do chamado projeto popular. Apresenta uma lista de principais problemas que o Coletivo identifica no Brasil naquele momento, ligados, especialmente, à privatização de empresas estatais, presença forte do capital financeiro, latifúndios improdutivos, falta de representatividade institucional da classe trabalhadora, etc. As saídas apresentadas evidenciam o papel do MST em compor com outros movimentos populares para, além de lutar pelo reforma agrária, lutar pela construção do projeto popular e pela superação dos problemas listados anteriormente.

h) As mulheres e a reforma agrária: o Coletivo indica que, para o MST, a reforma agrária não se refere apenas à distribuição de terras, ela envolve, resumidamente: democratização da propriedade da terra e definição de área máxima para propriedades rurais; produção agropecuária voltada para a alimentação da população; política agrícola que proteja os

agricultores, assegurando-lhes o recebimento de preços justos por sua produção; garantia de educação em todos os níveis; atendimento médico e hospitalar e medicina preventiva para todos; programa habitacional; programas de cultura e lazer; democratização dos meios de comunicação.

A cartilha encerra com o item linhas políticas do MST sobre a participação das mulheres, onde o Coletivo resgata nos documentos oficiais do Movimento as diretrizes estabelecidas que garantem a participação igualitária das mulheres em todas as instâncias do MST, seu direito frente à posse compartilhada da terra, frente aos financiamentos adquiridos e a necessidade de também participarem dos cursos de capacitação oferecidos por técnicos. Versam também sobre a importância de serem garantidas as cirandas infantis que viabilizam a participação das mulheres nas atividades políticas e de formação técnica.

Nesse material é possível identificar como as concepções de igualdade e diferença coexistem nas elaborações do Setor de Gênero – por exemplo, “nós mulheres somos diferentes dos homens, mas não somos inferiores. Politicamente, somos iguais” (MST, 2000, p. 17) –, mas de uma maneira não acabada, isto é, carregam uma intuição de que a luta das mulheres deve contemplar princípios de justiça e de boa vida, no entanto, não conseguem articular esses projetos de maneira clara ou teoricamente coerente por não se valerem de um referencial, uma lente que permita com que reflitam sobre essas dimensões enquanto indissociáveis.

Documentos relacionados