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CASO CURT LANGE, UMA POLÊMICA

1.7 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

1.7.2 CASO CURT LANGE, UMA POLÊMICA

Ainda que se possa assinalar no caso Curt Lange, entre outros aspectos, a existência de rixas pessoais e questões atreladas ao desejo de poder, por exemplo, no contexto musical/musicológico brasileiro, inegável é reconhecer que o tema do “patrimônio nacional” está no âmago dessa polêmica. Tal expressão atravessa visivelmente o corpus da contenda, sendo frequente seu emprego aos manuscritos musicais mineiros então sob disputa. Na polêmica, a expressão “patrimônio nacional” e seus correlatos aparecem em discursos para assinalar, entre outros sentidos: os documentos mineiros como valiosos papeis de música que foram heroicamente descobertos e salvos por Curt Lange; para situar, de modo alarmante, esses manuscritos enquanto importantes “joias da Nação” pertencentes a um estrangeiro; e, inclusive, como um meio para discutir a própria noção de “patrimônio”, já que o fato de a música não ser contemplada dentro do chamado “patrimônio histórico e artístico nacional” foi motivo de crítica e reivindicação.

A expressão “patrimônio histórico e artístico nacional” está diretamente ligada à criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão que, oficializado em 1937, surgiu como parte integrante do programa nacionalista do governo ditatorial do presidente Getúlio Vargas, dentro do chamado Estado Novo (1937-1945). Mário de Andrade a pedido de Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde, chegou até a redigir em 1936 um anteprojeto para a criação de tal órgão, no qual propôs uma definição de “patrimônio” considerada ampla e democrática,

38 Os documentos do Acervo Curt Lange são identificados pelo acrônimo BRUFMGBUCL, de Brasil

Universidade Federal de Minas Gerais–Biblioteca Universitária–Curt Lange, seguido predominantemente por números. O primeiro número antes do ponto corresponde à série, categoria que reúne documentos de determinada tipologia cuja variedade no ACL totaliza 13 séries. Assim, os documentos citados, BRUFMGBUCL3.338 e BRUFMGBUCL3.359, dizem respeito à Série 3, chamada Série Vida, constituída em grande parte por documentos pessoais, recortes de jornais e outros documentos afins. O número posterior indica o dossiê, que pode envolver desde um item apenas até um conjunto grande de documentos. Todavia, no ACL, na maioria das séries há também subséries. Desse modo, por exemplo, a Série 2 que diz respeito à correspondência, subdivide-se em Subsérie 2.1, que é a correspondência ativa, enviada por Lange; e em Subsérie 2.2; referente à correspondência passiva, recebida pelo musicólogo. Uma apresentação das séries e subséries do ACL encontra-se em Cotta (2005), guia do acervo, também disponível em <https://curtlange.lcc.ufmg.br/pguia_pgs/pguia01.htm>. Acesso em: 17 set. 2018.

dentro da qual sem dúvida estava a música entre outros itens culturais.39 Todavia, o que acabou

vigorando em termos de “patrimônio histórico e artístico nacional” foi a definição trazida pelo decreto que instituiu o SPHAN (Decreto-lei n. 25, de 30 de novembro de 1937), uma definição que embora contivesse em seu texto os termos “bens móveis e imóveis”40, na prática nunca foi

levada em toda a sua extensão. E isso porque a política patrimonial do órgão acabou privilegiando os monumentos arquitetônicos do período colonial brasileiro, e em especial os religiosos (católicos), sendo hegemônicas nesse conjunto as igrejas barrocas das cidades históricas de Minas Gerais.

Deu-se, assim, nessa política do “patrimônio histórico e artístico nacional”, uma certa proximidade entre o que se supunha brasileiro e mineiro, haja vista vários símbolos relativos à Minas Gerais se adequarem com aquilo que se acreditava identitário ao Brasil. Uma figura como Aleijadinho, que foi tomada como personagem genial da nação brasileira por leituras modernistas, é exemplar nesse sentido, assim como tantas outras referências dentre as quais se destaca a Inconfidência Mineira e todo o seu simbolismo. Como assinalou Arruda (1990), há um eixo comum entre o Brasil e Minas, e o que se pode chamar de “mineiridade”, uma construção relativa aos mineiros, não é algo que vai de encontro à brasilidade, mas sim uma expressão que aceita e se integra ao nacional.

Apesar disso, de todo esse imaginário em relação à Minas e de seu vínculo com o nacional, ainda que os manuscritos musicais mineiros correspondessem ao mesmo espaço geográfico e período temporal de figuras ilustres como o Aleijadinho e os inconfidentes, no que diz respeito à questão desse contexto propiciar alguma facilidade no sentido de se chegar à qualificação de tais músicas como patrimônio, o fato é que nada disso oficialmente ocorreu logo após a descoberta desse repertório. Nesse sentido, o caso Curt Lange chamou a atenção para que essa antiga música mineira fosse efetivamente considerada como patrimônio da Nação. Mas um dado deve ser enfatizado: o que se conclamava era o aspecto material das músicas enquanto patrimônio, isto é, o suporte, o papel em que a composição está representada, e não a parte imaterial, como a prática musical em si, o que seria uma reinvindicação impensável para a época.

39 “Entende-se por Patrimônio Artístico Nacional todas as obras de arte pura ou de arte aplicada, popular ou erudita,

nacional ou estrangeira, pertencentes aos poderes públicos, a organismos sociais e a particulares nacionais, a particulares estrangeiros, residentes no Brasil.” (ANDRADE, 1981, p. 39).

40 “Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País e

cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.” Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/Decreto_25_de_30_11_1937.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2018.

As pesquisas de Curt Lange sobre a antiga música mineira (iniciadas em 1944), o reconhecimento desse repertório pela academia e a própria polêmica se deram em plena vigência do conceito de “patrimônio histórico e artístico nacional”. O mineiro Rodrigo Mello Franco de Andrade, que era amigo de Lange e partiu em sua defesa quando do processo no Conselho Federal de Cultura, foi o primeiro diretor do SPHAN, administrando esse órgão de 1937 até se aposentar em 1967. Renato Soeiro foi quem o substituiu, mas sua gestão, que vai de 1967 a 1979, não apresentou mudanças dignas de nota quanto à política oficial do patrimônio. Alteração mesmo – e profunda – aconteceu quando Aloísio Magalhães assumiu a direção do órgão em 1979, trazendo um conceito completamente diferente de patrimônio, muito mais abrangente, de modo a incluir também outras artes, independentemente de serem eruditas ou populares, e não apenas o monumental arquitetônico.41 Nesse sentido, não é de se

surpreender que é com Aloísio Magalhães que principiou o desfecho do caso Curt Lange. Isso ocorreu quando ele assumiu a secretaria de Cultura do MEC em 1981 e solicitou a Edino Krieger, na ocasião recém diretor do Instituto Nacional de Música, uma solução para o caso, cuja consequência foi a compra da coleção de manuscritos de Lange por parte do governo federal brasileiro e sua custódia no Museu da Inconfidência em Ouro Preto.

O que se torna necessário dizer é que o caso Curt Lange não foi em sua época, no contexto brasileiro, a única polêmica tendo por base questões relativas ao patrimônio nacional. Na verdade, desde que o SPHAN foi instituído, foram vários os conflitos e discussões acerca de assuntos de ordem patrimonial que esse órgão se envolveu. Dentro da própria instituição, por exemplo, houve espaço para tensões e divergências, como foi o episódio do tombamento do Terreiro Casa Branca42, e fora dela, bastante frequentes foram situações de conflito em que

se questionou a política patrimonial brasileira. Nesse último caso, como exemplos podem ser citados os embates que Rodrigo Mello Franco de Andrade e outros tiveram nos primeiros tempos de SPHAN no intuito de consolidar a política patrimonial que propunham43 e os

41 Essas informações referentes às citadas gestões no órgão do patrimônio brasileiro foram tiradas de Gonçalves

(1996), trabalho que privilegia as administrações de Rodrigo Mello Franco de Andrade e Aloísio Magalhães como contrastantes entre si no que toca à concepção patrimonial.

42 O Terreiro Casa Branca, que é “considerado o primeiro terreiro de candomblé instalado no Brasil”

(GONÇALVES, 1996, p. 78), foi tombado em 1984 depois de muitas discussões dentro do próprio órgão do patrimônio brasileiro. Conforme Gonçalves (1996, p. 89), a questão tinha como elemento central a noção de “tombamento” e revelou diferentes concepções de patrimônio cultural, colocando em lados opostos os profissionais que se identificavam com o discurso de Rodrigo Mello Franco de Andrade e os que acenavam para o pensamento lançado por Aloísio Magalhães (morto em 1982). De um lado, os mais tradicionais; em campo contrário, os mais afinados com a nova política patrimonial. Ganhou o segundo grupo.

43 Os primeiros anos do SPHAN foram objeto de estudo em importante trabalho de Márcia Chuva (2017). Um caso

tratado é o da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, de Porto Alegre (CHUVA, 2017, p. 301-307), episódio que colocou em lados opostos o órgão do patrimônio, favorável ao tombamento da igreja, um prédio inaugurado em 1827, e as autoridades religiosas locais que desejavam fazer modificações no imóvel ou mesmo destruí-lo a fim

confrontos com Augusto de Lima Júnior (1889-1970), entusiasta intelectual do passado mineiro que polemizou mais de uma vez com o órgão do patrimônio nacional44.

O fato é que, em relação a uma coletividade, “patrimonializar”, isto é, tornar algo patrimônio frequentemente envolve tensões, divergências e disputas. E isso pelo simples fato de que tal atitude implica em essencializar, distinguir como identitário determinado bem cultural a uma coletividade que justamente por envolver um conjunto de pessoas pode trazer a discordância àquilo que é proposto como patrimônio e suscitar o conflito. Tal situação, obviamente, é muito mais provável quando estão em cena formações sociais maiores, como as pessoas que fazem parte de um Estado-Nação moderno, por exemplo. Ademais, é importante salientar que é sempre um grupo menor de pessoas que determina a uma maioria o que deve ser oficialmente chamado de patrimônio, situação que, sem dúvida, pode trazer o não reconhecimento em razão da diversidade de pontos de vista.45 Assim, em razão da tendência de

o assunto “patrimônio” suscitar conflito já em sua acepção, em virtude das polêmicas apontadas pelas quais passou o SPHAN ao longo de sua história e, sobretudo, levando em conta a presente pesquisa que se fez com o caso Curt Lange, na qual se deu grande atenção ao vocabulário usado, não seria nada improvável afirmar que “patrimônio” parece ser uma fórmula discursiva. Fórmula, no sentido discursivo, consiste em uma palavra ou expressão que desfruta de um certo status e amplo uso no espaço público, remetendo a questões políticas e sociais ao mesmo tempo em que contribui para construí-las. Trata-se de um daqueles termos e expressões que são “onipresentes” e atravessam vários discursos em um tempo e espaço dados, que

de construir novo templo. O que ocorreu foi que mesmo após o tombamento da referida igreja, em 1938, deu-se a sua revogação, em 1941, por um despacho presidencial. No espaço que outrora foi da antiga igreja, hoje encontra- se o novo templo da Igreja de Nossa Senhora do Rosário inaugurado em 1956. Tanccini (2008) consiste numa monografia que tratou especificamente desse assunto.

44 A dissertação de Camila Ferreira (2014), que tem como personagem principal Augusto de Lima Júnior, analisa

duas polêmicas que este intelectual travou com o SPHAN: uma em torno da existência do artista Aleijadinho, a outra relativa à arquitetura da Igreja São Francisco de Assis da Pampulha, em Belo Horizonte. Na primeira polêmica, em meio a várias críticas que fez à propagação da figura de Aleijadinho, Augusto de Lima Júnior chegou até a duvidar da existência do artista, atribuindo ao SPHAN a farsa da construção de um tal mulato genial. Na segunda polêmica, a crítica do intelectual recaiu na ousadia da igreja da Pampulha, uma construção que se relacionava esteticamente ao SPHAN, por adotar uma concepção modernista, e que tinha como autor Oscar Niemeyer, um arquiteto ateu e comunista, fatores que explicavam, segundo Lima Júnior, a inadequação da referida edificação à arte religiosa cristã.

45 Quanto a diversidade de pontos de vista, em Funari e Pelegrini (2006, p. 10) é bem colocada essa questão: “As

coletividades são constituídas por grupos diversos, em constante mutação, com interesses distintos e, não raro, conflitantes. Uma mesma pessoa pode pertencer a diversos grupos e, no decorrer do tempo, mudar para outros. Passamos, assim, por grupos de faixa etária: crianças, adolescentes, adultos, idosos. Passamos ainda de estudantes a profissionais, e, em seguida, a aposentados. São, portanto, inúmeras as coletividades que convivem em constante interação e mudança. Inevitavelmente, essa diversidade leva à multiplicidade de pontos de vista, de interesses e de ações no mundo. [...] Os interesses sociais de governantes e governados, de homens e mulheres, crianças e adultos, cristãos e muçulmanos nem sempre são convergentes. O que para uns é patrimônio, para outros não é. Além disso, os valores sociais mudam com o tempo.”

possuem um mesmo significante, mas que, não obstante isso, podem ganhar diferentes sentidos dependendo do ponto de vista. (KRIEG-PLANQUE, 2010; MOTTA, SALGADO, 2011). Por exemplo, “globalização” pode ser um termo de diferente entendimento em uma mesma comunidade de falantes, suscitando discordância, assim como “sustentabilidade”, “choque de civilizações”, “aquecimento global”, “direitos humanos”, entre outras fórmulas.

De acordo com Alice Krieg-Planque (2010), analista do discurso a quem se atribui o mérito de sistematizar o estudo da fórmula, a noção comportaria quatro propriedades. A primeira é a de a fórmula ter um caráter “cristalizado”, isto é, no que tange à matéria linguística, possuir um “significante relativamente estável” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 61), reiteradamente expresso em diversos contextos, podendo ser uma “unidade lexical simples” (por exemplo, “bolivarianismo”), uma “unidade lexical complexa” (por exemplo, “reforma ortográfica”), uma “unidade léxico-sintática” (por exemplo, “pão e X”46) ou uma “sequência

autônoma” (caso dos slogans, por exemplo, “bandido bom é bandido morto”47). Isso não

significa dizer, no entanto, que uma fórmula não admita variantes, correlações que remetam à sua forma cristalizada, exemplo que se pode ver, entre outros, em “cultura da paz” e “cultura para a paz”, variações de “cultura de paz”. A segunda propriedade da fórmula é a de se inscrever em uma dimensão discursiva, o que assinala a ideia de que só a sua relativa estabilidade linguística não basta. É necessário que o termo ou a expressão esteja efetivamente em uso, que esteja empregado em diferentes discursos e que não se reporte a um grupo restrito de especialistas. Assim sendo, por exemplo, “encapsulamento anafórico” não é uma fórmula discursiva, mas um conceito utilizado por estudiosos da linguagem para designar determinado fenômeno linguístico. A terceira categoria que define uma fórmula é a de ela funcionar como

46O exemplo “pão e X”, mencionado por Krieg-Planque (2010), é uma referência que a autora faz ao estudo de

Jacques Guilhaumou e Denise Maldidier sobre essa estrutura quando da Revolução Francesa. Levando em conta a França de 1789, “pão” em determinado momento não mais passou a se restringir a uma necessidade imediata, mas sim a um termo de valor simbólico inscrito no âmbito político. Nesse caso, “X” em tal estrutura corresponderia a um termo abstrato como “liberdade”, entre outros elencados pelos autores, cuja coordenação com “pão” produziria um efeito de metaforização. É o que se entenderia pelo grito ‘Pão e liberdade!’, expressão usual no discurso dos jacobinos nos tempos de exacerbação revolucionária de 1793. Sobre a coordenação “pão e X”, dos citados autores, há Guilhaumou e Maldidier (1994), tradução em português de um artigo escrito originalmente em francês.

47 O slogan “bandido bom é bandido morto”, que tem sido objeto de constantes usos no Brasil dos últimos anos,

com frequência induz a polêmicas que colocam em lados opostos defensores do bordão e os que são contrários a ele. Ao que tudo indica, a expressão consiste numa adaptação brasileira de uma sentença que a história acabou legando ao General Philip Sheridan (1831-1888) quando do extermínio de povos indígenas por ocasião da expansão estadunidense: “índio bom é índio morto”. No Brasil, o uso de “bandido bom é bandido morto” ficou bastante identificado com José Guilherme Godinho Ferreira (1930), o Sivuca, que em sua vida política fez amplo uso desse slogan. Foi delegado de polícia e deputado estadual pelo Rio de Janeiro por dois mandatos (1990-1998). Além dele, quem costuma ser lembrado também pelo emprego da expressão é Luiz Carlos Alborghetti (1945- 2009), que foi jornalista policial, radialista, apresentador de programa de televisão e político. Relativo ao assunto ver: Josephy Jr. (1997), Morre... (2009), Heuser, Vieira e Almeida (2010) e Redação Equilibre Analises (2017).

um referente social, consistindo em algo que é de conhecimento de todos e que evoca “alguma coisa para todos num dado momento”. Isso não implica, todavia, em homogeneidade, mas, pelo contrário, em significações múltiplas que podem ser até mesmo contraditórias. Ora, tal fato leva à quarta propriedade da fórmula que é a da categoria possuir um aspecto polêmico, isto é, carregar frequentemente uma pluralidade de questões cuja consequência no mais das vezes é a instalação de variadas polêmicas, nas quais se pode discutir, entre outras coisas, inclusive o próprio significante formulaico, tido não raro como inadequado à coisa designada. Daí, em razão dessa propriedade, Amossy (2017, p. 104) dizer que a fórmula é “o lar da polêmica”.

A fórmula, segundo Krieg-Planque (2010), é uma categoria fluída. Deve necessariamente apresentar as quatro propriedades citadas, mas essas podem ser desiguais entre si, demonstrando diferentes intensidades. Assim, determinada fórmula pode ter uma cristalização forte e apresentar um caráter polêmico mais fraco, por exemplo. Além disso, um outro aspecto importante a ser assinalado é que a identificação de um termo ou expressão como fórmula requer um trabalho atento e criterioso sendo necessário para a sua análise “um corpus saturado de enunciados atestados” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 61), ou seja, um conjunto documental que seja suficientemente rico a ponto de novas fontes, se inseridas, não interferirem de forma substancial nos resultados da análise. Nesse sentido, é possível fazer um trabalho sobre uma suposta fórmula sendo o seu pesquisador tanto contemporâneo à sua emergência como distanciado historicamente dela. No primeiro caso, Krieg-Planque escreve que “o fato de estar com os ouvidos plugados nas fontes de informação e os olhos pregados nos jornais deve ser suficiente para colher candidatos a fórmulas”. Já quando o analista não é contemporâneo ao período a ser estudado, a autora coloca que a lexicometria se mostra um método útil à tarefa de apurar possíveis candidatos a fórmulas, já que através dela dá para estabelecer frequências e verificar os segmentos repetidos (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 89-90).

Neste trabalho, não se fez necessário o uso de software especifico para confirmar o dado de que “patrimônio nacional” é uma fórmula. Por um lado, a própria leitura das fontes relativas ao caso Curt Lange foi suficiente para se chegar a essa conclusão, por outro, as contendas anteriormente assinaladas no que tange ao SPHAN comprovam que “patrimônio”, por definição, corresponde a uma categoria polêmica. Não obstante esses últimos conflitos, contudo, é a partir do corpus relativo ao embate em torno das músicas mineiras que se comentará a fórmula “patrimônio nacional”, assim como suas variantes “patrimônio cultural”, “patrimônio musical”, “patrimônio histórico e artístico nacional”, “patrimônio”, entre outras. “Patrimônio nacional”, desse modo, é visto como uma fórmula, uma expressão de significativo caráter polêmico, para a qual várias contendas podem ser abarcadas, incluindo o caso Curt

Lange, objeto de estudo desta tese e que, não obstante suas particularidades, também constitui uma questão de patrimônio.

Além de “patrimônio nacional”, uma outra expressão que aparece no corpus caso Curt Lange é “música brasileira”, por vezes acompanhada de pares como “universal/nacional”, “cosmopolita/nacional” entre outros. Na polêmica, tais expressões não têm a mesma frequência de “patrimônio”, mas constituem categorias importantes que remetem a certos aspectos particulares do embate. Elas servem de ferramentas para definir a velha música mineira, assinalando, por exemplo, se tal música é uma “cópia” do repertório europeu ou um conjunto composicional já revelador de alguma “brasilidade”. Todavia, essas categorias não indicam somente isso. Elas demarcam também as opções estéticas e ideológicas de quem as utilizou, isto é, os participantes do conflito, revelando perspectivas que, mais do que falar da polêmica em si, informam também sobre parte do próprio ambiente musical erudito brasileiro do século XX, um cenário que conheceu outros conflitos além do caso Curt Lange, como os embates que opuseram nacionalistas x dodecafonistas nos anos 30-50, e mais tarde, divergências envolvendo nacionalistas e adeptos de uma vanguarda ainda mais radical como a do grupo Música Nova.

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