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O CASO DO CABAÇO: O ‘COTIDIANO’ DA (DES)HONRA NA BAHIA OITOCENTISTA

CASAMENTO E HONRA: ENTRE OS DISCURSOS

3.2 O CASO DO CABAÇO: O ‘COTIDIANO’ DA (DES)HONRA NA BAHIA OITOCENTISTA

No contexto de (re)elaboração das representações de casamento e da instituição de novas práticas sociais e reafirmações de outras um critério foi consolidado como regra de conduta feminina na Bahia do século XIX - a virgindade foi reafirmada, não somente pela Igreja Católica, mas, também, pela ciência médica, como sinônimo de honra, honestidade e moralidade, além de saúde física e mental, pelo menos entre a elite econômica, branca e intelectual. Por esse motivo a Questão Braga, um caso de devolução pós-nupcial que envolveu a jovem filha de um rico comerciante da Praça da Bahia e o lente da cadeira de partos da FMB, merece destaque, visto que o motivo da contenda foi a suposta não preservação da virgindade da consorte.

A documentação sobre o caso, composta por um longo processo de divórcio e por muitos debates acadêmicos e jornalísticos (nacionais e internacionais), evidencia não só a importância da manutenção da virgindade feminina como regra de conduta social, mas, também, traz à luz muitas das representações construídas sobre casamento, bem como os códigos sociais que as compunham e o cotidiano das relações conjugais.

Os discursos dos sujeitos hodiernos da Questão Braga foram os meios pelos quais foram analisadas as práticas sociais das elites baianas sobre casamento, o que possibilitou verificar como concepções morais e científicas, que deveriam servir de exemplos e regras de conduta, influenciavam a prática social.

Assim, através dos sentidos legados às representações citadas, a sua utilidade prática, aos detalhes do caso e dos discursos dos grupos envolvidos verifiquei como a forma de se comportar e de observar as regras, sobretudo as morais, eram objetivadas como meio de verificar a honra dos indivíduos e, portanto, propiciar um determinado grau de aceitação social.

***

Eram oito horas da noite do dia trinta de novembro de 1878, quando, por ocasião do casamento celebrado pelo Padre Romualdo Maria de Seixas Barroso, sobrinho do outrora Acerbispo D. Romualdo Antonio de Seixas, reuniram-se pessoas de diversos segmentos sociais na Capela do Palácio Arcepiscopal da antiga cidade da Bahia.55 A cerimônia uniu nos sagrados laços do matrimônio a jovem D. Cândida Augusta Ferreira, moçoila de dezoito anos, que tinha por progenitores o Sr. Manoel Alves Ferreira, abastado comerciante da Praça do Salvador, e de D. Augusta Constança Pinto Ferreira, com o Dr. José Pedro de Sousa Braga, ilustre e abastado médico e professor da FMB, nascido havia trinta e dois anos da união sacrossanta entre o ourives Francisco de Sousa Braga e D. Libania Peres Paraguassu Braga.56

Findada a cerimônia católica, dirigiram-se os nubentes e seus convidados para a casa do noivo, na Rua Direita do Palácio, na Freguesia da Sé, para a ocorrência das alegrias e expansões comuns a solenidades como àquelas, que, segundo algumas testemunhas, alongaram-se até 11 horas e meia da noite. Momento, aproximado, em que se retiraram os últimos familiares e convidados, deixando os noivos na companhia de seus serviçais.57

Infelizmente a documentação não fornece informações, mesmo que superficiais, sobre o ritual da cerimônia católica, nem sobre a forma como se desenvolveu a festa. Em verdade parecem serem escassos os registros sobre as cerimônias de noivado e casamento, e mesmo sobre as festas, na literatura brasileira dos oitocentos, seja a acadêmica ou a ficcional. Entre os viajantes tais relatos aparecem com alguma frequência, mas não com um grau de detalhamento considerável. De qualquer sorte, percebe-se que às cerimônias matrimonias eram momentos especiais nos quais as elites brasileiras demonstravam seu poder econômico e reafirmavam seu prestígio social.58

Observa-se, ainda, que haviam algumas diferenças entre os matrimônios praticados na cidade e nos campos. Mary Del Priore evidencia que os casamentos realizados nos campos, pelas famílias abastadas, eram sucedidos por longos festejos, que podiam durar vários dias. Faziam-se preparativos dos mais diversos, que envolviam o preparo da casa,

(55) Libelo de Divórcio Perpetuo de D. Cândida com o Dr. Braga. In: Processo de Separação: Dr. Braga e D. Cândida, p. 3. Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador\LEVE.

(56) Inventário de José Pedro de Souza Braga e Cândida Augusta Ferreira Braga (para divórcio) – 25/10/1880. Arquivo Público do Estado da Bahia. cX: 2976.

para receber a festa e os parentes que ali se hospedariam. A casa era caiada e os cômodos de dormi reformados. Era contratada uma banda de música para o baile, bem como se estabelecia toda um ‘engenho’ para o aviamento das vestimentas e da festa. No sertão, mas, sobretudo, nos engenhos, a festa era marcada pela fartura de alimentos, sendo o prestígio da casa revelado pela diversidade de carnes de criação expostas a mesa.59

Nos centros urbanos os casamentos das camadas abastadas também serviam como forma de ostentação de poder e prestígio. Porém, a quantidade de convidados e a forma como ocorriam se diferenciava um pouco dos realizados nas zonas rurais. A francesa Virginie Leontine informou que, geralmente, os cortejos saíam da casa da noiva em direção a Igreja, na qual se encontrava considerável parcela dos convidados abastados da família.60

As bodas poderiam se realizar na Igreja ou na própria casa da noiva e eram testemunhadas por poucos convidados e amigos íntimos, sendo informado, posteriormente, para os demais conhecidos e para o público em geral, podendo, inclusive, ser noticiado em jornais.61

O esbanjar de luxo era marca de tais cerimônias. As roupas das senhoras eram repletas de bordados, enfeites e diamantes, o que era complementado com jóias vistosas que caiam sobre os colos dos seis das damas. Após a cerimônia religiosa ocorriam os bailes, que deviam ser concorridos ao ponto de encher toda a nave, bem como embalado por boa música.62 Maria Graham assim expressou a ocorrência de um casamento na Corte (Rio de Janeiro), em 26 de setembro de 1826:

Um casamento na alta sociedade ocupa muito dos faladores do Rio. Um fidalgo oficial, que se distinguiu sob o comando de Beresford, D. Francisco, cujo outro nome me esqueci, teve a felicidade de obter a mão de uma das mais lindas netas da baronesa de Campos, Maria Loreto, [...]. Não é permitido aqui a nenhum solteiro comparecer a um casamento; a cerimônia se realizava na presença dos parentes mais próximos, desde que casados, de ambos os lados. A mãe da noiva comunicava em seguida o fato à corte, se ela pertence a uma categoria que exija isso; depois do que, as senhoras visitam-na e começam a cumprimentar os outros membros da família. [...].63

Giberto Freyre evidenciou que em regiões onde os costumes tradicionais e patriarcais se faziam mais fortes no século XIX abria-se a alcova dos noivos a visitação

(59) DEL PRIORE, Mary. Historia do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006, p. 144. (60) Cf. Virginie Leontine. In: DEL PRIORE, Mary. Op. Cit., p. 164.

(61) Cf. OLIVEIRA, José Albino Barbosa de Oliveira. In: DEL PRIORE, Mary. Op. Cit., p. 162. – Não encontrei nota de jornal sobre o casamento do Dr. Braga.

pública. Assim, os convidados podiam admirar de perto o quarto nupcial, com suas sedas, rendas e bordados. E, mesmo, deitar-se na cama e imaginar as práticas núpcias.64

Já que nos referimos ao leito nupcial, os cônjuges em questão, O Dr. Braga e D. Cândida, recolheram-se ao mesmo por volta da meia noite, onde, como era de se esperar, consumaram o matrimônio. Diga-se de passagem, consumação conturbada e contraditória, pelo menos em seus relatos, como veremos pelas exposições a seguir.

Segundo a nubente, o casal entreteve relações carnais por cinco vezes do horário que se recolheram ao leito até oito horas da manhã, momento em que o Dr. Braga teria se levantado “na maior harmonia e dispensando carinhos à autora, que guardou o leito em virtude do seu estado de saúde”,65 que não era resultante de alguma doença, mas das práticas libertinas da noite de núpcias.66 Tal relato foi confirmado por algumas testemunhas, que, direta ou indiretamente, compartilharam a intimidade do casal, como o Dr. Francisco José Teixeira, o funcionário público Emigdio Augusto [Dultra] e o comerciante Francisco Querino Bastos.67 Essa última testemunha chegou a afirmar, inclusive, que soube da consumação do casamento devido ao aparecimento de uma camisa ensanguentada e com manchas amareladas, bem como soube que os nubentes guardaram o leito na maior harmonia até nove horas, porque na “manhã do dia seguinte tendo mandado saber como eles haviam passado, teve em resposta que ainda estavam dormindo”.68

Entretanto, essa versão não foi compartilhada em sua completude pelo Dr. Braga. Esse afirmou que, de fato, “recolheu-se ao leito conjugal a meia noite, deixando-o as sete para oito horas da manhã”, onde “consumou o coito com a autora uma vez só, tentando fazê-lo três vezes, o que não realizou em virtude de oposição dela, que pedia que adiasse para o dia seguinte”.69

Aqui, faz-se necessário uma análise mais pormenorizada tanto dos discursos, no que tange a seus objetivos estratégicos, como da prática sexual dos casais no século XIX. A noite nupcial devia se estabelecer como o momento de iniciação feminina a vida sexual, afinal, a castidade devia ser a regra das moças de boa família. O corpo da mulher deveria ser preservado sempre coberto, havendo, inclusive, relatos da existência de camisolas ou calçolas com aberturas na altura do órgão sexual. Assim, a nudez da mulher era desaconselhada entre os casados das famílias abastadas, sendo praticado somente a partir do

(64) FREYRE. Op. Cit.

(65) Auto de perguntas à testemunha Francisco Querino Bastos, p.37. In: PSBC-LEVE. (66) Ibidem.

(67) Auto de perguntas às testemunhas. In: PSBC-LEVE.

século XX ou nos atos sexuais realizados nos cabarés. Praticava-se o sexo no escuro e sem a preocupação com o prazer feminino, atentando-se com a posição sexual, apenas, quando tal fato se fazia importante para a procriação.70

Para Del Priore, o resultado de práticas sexuais tão recatadas era a transformação das mulheres casadas em beatas e os homens em seres frios, que não demonstravam afeto nem desejo à suas senhoras. A Igreja Católica estimulava tal situação, por considerar que os homens tinham necessidades sexuais as quais as mulheres deviam se submeter, cumprindo seu papel de reprodutoras. Para a Igreja, o ideal era os casais que se inspiravam no imaginário do matrimônio de Maria e José e vivam na castidade.71

Como fora evidenciado no segundo capítulo dessa dissertação, o ideal de sexualidade perante a disciplina católica era aquele que pregava recato – e se possível à castidade clerical. O sexo devia ser disciplinado e o ser humano não deveria usar do corpo da forma como desejasse, visto que a prática de atos sexuais impuros podia corromper a ligação entre Deus e sua criação, uma vez que o corpo era o elo entre o divino e o ser humano, por meio do Espírito Santo. O uso impuro do corpo era associado à promiscuidade, seja a praticada pelas relações sexuais com mais de um parceiro, seja aquela proveniente do uso de certas partes do corpo no ato sexual.72

Contudo, os homens não levavam a risca tais regras, praticando atos sexuais com mais de uma mulher, sendo adúlteros convictos. A frequência aos bordéis era comum entre os grupos abastados da sociedade baiana. Nessas relações eles podiam se livrar das regras morais das práticas sexuais, impostas pela Igreja Católica, podendo observar o corpo das prostitutas e satisfazer seus desejos mais libidinosos. Porém, com suas mulheres essa prática era desestimulada, uma vez que isso poderia fazer acordar desejos secretos nelas, que estimulassem práticas sexuais desaconselhadas a boas damas, tornando-as promiscuas e impuras, o que podia se refletir na educação de suas filhas.73

Assim, a realização de atos sexuais repetidos e capazes de provocar incômodos consideráveis em uma mulher, em decorrência de uma noite de núpcias de seres honrados, era estranho a prática comum. Mais estranho, ainda, é o fato de D. Cândida defender no seu discurso a realização de tais práticas, enquanto o Dr. Braga se referir a atos sexuais recatados, já que se consideravam os homens, e não as mulheres, tendentes a satisfação dos

(70) DEL PRIORE, Mary. Op. Cit, p. 177. (71) Ibidem., p.179.

(72) Sobre as práticas sexuais da população brasileira, ver: VAINFAS, Ronaldo.(Org.) História e

Sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

desejos sexuais. Porém, uma olhar mais sagaz e iluminado pelo conhecimento de certos detalhes sobre os fatos pode explicar de forma precisa tal disparidade de discurso. Ambas as alocuções faziam parte das estratégias de defesa e ataques dos nubentes, que tinham como intenção provar seu ponto de vista na questão. Porém, antes de nos atentarmos para essas estratégias se faz necessário evidenciar o cerne que fez evoluir toda a discussão da

Questão Braga. O Dr. Braga afirmou, na manhã seguinte às núpcias, que:

[...] ao deitar-se com a autora suspeitou da não virgindade dela pela flacidez do seio e por outros sinais exteriores, suspeita que continuou a alimentar depois do toque digital na vagina e que ainda perduraram com a consumação da cópula, e se confirmou com a declaração que a mesma autora lhe fizera depois de posta em confissão.74

Como já vimos era de praxe na época e local em questão, pelo menos entre as filhas das camadas abastadas, a manutenção da virgindade como prova de pureza e honestidade, não somente da moça como da família como um todo.75 O seu descumprimento colocava em dúvida os elementos distinguidores de moral, que os grupos abastados tanto professavam, via discursos literários e médicos, em relação às camadas populares, consideradas promiscuas e desonradas.76 Assim, a delicada membrana do hímen tomava a forma simbólica da tão professada moral da sociedade patriarcal, representando na mulher, para além de sua pureza e honestidade, a garantia de que essa tinha uma formação biológica e psicológica regrada e equilibrada, que a permitia cumprir com seu papel de mulher e mãe de forma adequada.77

Como vimos no primeiro capítulo, segundo os médicos baianos, as mulheres que se integravam à sedução o faziam devido a dois motivos: o primeiro, por terem uma constituição físico-psicológica instável e fraca, o que podia ser transmitido às filhas, conforme os critérios eugênicos;78 o segundo, por terem sido mal educadas moralmente, sobretudo, quanto às regras cristãs, o que as impediam de fornecer uma boa educação a suas descendentes. Isso para além do fato da beleza e da honra feminina estarem associadas à preservação da virgindade, o que as faziam, também, más esposas, uma vez que não podiam controlar seus atos e garantir, assim, o respeito à honra de seu marido.79

(74) DEL PRIORE, Mary. Op. Cit., p. 179.

(75) FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Quem pariu e bateu, que balance!: mundos femininos, maternidade e pobreza: Salvador, 1890-1940. Salvador, CEB, 2003; MATTOSO, Kátia. Bahia, Século XIX: uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

(76) Ibidem.

(77) CASTRO, Dinorah. Op. Cit., pp. 83-94. (78) SILVA, Vera N. Santos. Op. Cit., pp. 14-55.

Agora podemos analisar as estratégias tomadas pelos dois lados da questão quanto aos relatos da noite nupcial. O Dr. Braga defendia a realização de uma única relação sexual e o fazia em prol da confirmação de sua argumentação defensiva. Ele queria evidenciar que, logo que percebeu a não virgindade de sua consorte reprovou tal ato e se comportou como mandava as normais morais da época. Assim, caso ele admitisse a prática de atos sexuais repetidos poderia levantar-se dúvida quanto a sua moral ou palavra, visto que nenhum homem honrado manteria práticas sexuais repetidas com uma mulher que não fosse mais virgem, sendo essa sua esposa.

Já D. Cândida pretendia provar exatamente o contrário. Apesar de ser desaconselhado defender a realização de práticas sexuais repetidas e libertinas, entre membros da elite baiana, sobretudo, quando se era mulher, isso poderia apontar um desregramento moral do Dr. Braga. Primeiro, ela podia se defender da acusação de ser libertina por meio da desculpa de ser frágil, em consequência de sua posição de mulher, e devido a sua obrigação de esposa, o que a teria feito se render aos desejos sexuais do esposo, mesmo não sendo sua vontade, livrando-se, assim, do peso moral da libertinagem praticada. Segundo, ela podia afirmar que o Dr. Braga era um pervertido e um homem desonrado, se não desequilibrado, afinal, deixava-se levar por desejos carnais desregrados, além de poder levantar a dúvida sobre a acusação dele, uma vez que nenhum homem de ‘boa classe’, em estado normal de consciência, manteria práticas sexuais repetidas com sua esposa, depois de saber que ela não era mais virgem.

De qualquer forma, feita a acusação de descumprimento de tão importante regra de pureza feminina era exigido do homem uma resposta à altura da ofensa, que podia se estabelecer inclusive por meio de violências físicas justificadas pela forma da lei.80 Independente do uso ou não de violência pelo homem, esse devia devolver a esposa desonrada a seu pai, como prova de sua honradez e desonra da mesma. E, nesse caso, fora exatamente isso que aconteceu.

O direito do homem de praticar violência física em casos especiais, nos quais sua honra fosse atingida de forma privada ou publicamente, era garantido pelas Ordenações Filipinas. Esse corpo jurídico estabelecia que, caso o homem pegasse em flagrante a mulher em adultério podia matar a ela e seu cúmplice.81 Em 1878, não era mais tão fácil escapar da

(80) VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Feitas e Ordenadas pelo Ilustríssimo, e Reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Majestade, Propostas e Aceitas em Sínodo Diocesano, que o dito Senhor Celebrou em 12 de Junho do ano de 1707. Brasília: Senado Federal, 2007.

punição de assassinato motivado por adultério, visto que o Código Penal de 1830 tinha dissolvido tal prerrogativa. Contudo, como vimos no segundo capítulo haviam brechas legais que conseguiam atenuar, se não inocentar, um assassino passional.82

No assassinato de Júlia Fetal, por exemplo, o noivo cometeu o crime por ciúmes, antes de ter se casado e mesmo sem o flagrante delito, o que o impedia de enquadrar o crime segundo as normas estabelecidas no direito. Mesmo nessas circunstâncias o criminoso teve sua pena amenizada devido ao fato de ter cometido o assassinato em nome da honra.83 Vale lembrar, ainda, que, segundo a legislação canônica, o valor das sevícias ou maus tratos físicos era esvaziado quando essas fossem realizadas contra pessoa de moral inferior ou justificadas por atos do nubente, encontrando-se entre essas justificativas: ofensas contra a honra e a autoridade marital.84

A revelia do uso ou não de violência por parte do esposo, a legislação canônica permitia que ele solicitasse a separação de thoro e habitat caso descobrisse que sua esposa não viera para o casamento com sua honra. Em alguns casos, podia o marido solicitar, inclusive, a nulidade do matrimônio. Tal declaração de nulidade se fazia possível quando o marido havia solicitado declaração prévia de virgindade da esposa e, depois de casado, descobria que essa não garantia tal exigência, o que estabelecia erro na qualidade do individuo, segundo contrato nupcial preestabelecido, elemento que podia ser enquadrado, como afirmara Romualdo de Seixas, no impedimento dirimente de Erro de pessoa.85

Independente da versão que esteja em acordo com a verdade, se a de D. Cândida ou do Dr. Braga, era compartilhado por ambos os lados que, após levantar-se do leito nupcial por volta das sete para nove horas da manhã, o Dr. Braga fora chamado por um dos seus criados a comparecer no andar térreo de sua casa para receber uma bandeja de doce e uma carta, que uma crioula fula portava e dizia só entregar em mãos do doutor.86 Recebida a encomenda e lida a carta, de conteúdo desconhecido, conta às testemunhas que o Dr. Braga se dirigiu ao seu quarto indagando D. Cândida se esta queria ver seus pais. Como a mesma respondera que mais tarde iria e que pelo estado de saúde que se encontrava não podia se vestir, o Dr. Braga dirigiu-se ao gabinete

(82) CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-