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IV. Case Studies – Da teoria à prática

4.5. O caso La Grand

4.5.1. Enquadramento Factual

Em 1984, Karl e Walter La Grand, dois cidadãos alemães a viverem nos EUA, foram condenados à morte pela prática dos crimes de homicídio em primeiro grau, rapto e roubo na forma tentada, decisão da qual recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça americano.

Os irmãos La Grand nunca foram informados pelas autoridades americanas dos seus direitos de comunicação consular, ao abrigo do art. 36º,

178 LaGrand (Germany v. United States of America), Julgamento de 27 de junho de 2001,

85 nº1 da Convenção de Viena para as Relações Consulares179, nem a embaixada

alemã foi alguma vez informada dos acontecimentos, e os contactos consulares apenas tiveram início em 1992, momento em que os La Grand fizeram diversos pedidos relativamente ao seu direito de comunicar com a sua embaixada, bem como um pedido de habeas corpus, todos rejeitados.

Após a rejeição do pedido de habeas corpus, e de sucessivas rejeições de pedidos alemães para a suspensão das execuções, Karl La Grand foi executado a 24 de fevereiro de 1999, sendo a execução de Walter La Grand agendada para 3 de março de 1999.

Vinte e sete horas antes da execução agendada de Walter La Grand, a Alemanha requereu junto do Tribunal Internacional de Justiça ao abrigo do art. 41º da Carta das Nações Unidas, uma medida cautelar de suspensão da execução de La Grand, bem como o início de procedimentos contra os EUA.

4.5.2. O direito internacional aplicável

A Alemanha alegava que estavam em causa questões de interpretação da Convenção de Viena para as Relações Consulares e relativas à sua impossibilidade de exercer os direitos previstos no art. 36º da CVRC, por força

179 “1. With a view to facilitating the exercise of consular functions relating to nationals of the sending State:

(a) consular officers shall be free to communicate with nationals of the sending State and to have access to them. Nationals of the sending State shall have the same freedom with respect to communication with and access to consular officers of the sending State;

(b) if he so requests, the competent authorities of the receiving State shall, without delay, inform the consular post of the sending State if, within its consular district, a national of that State is arrested or committed to prison or to custody pending trial or is detained in any other manner. Any communication addressed to the consular post by the person arrested, in prison, custody or detention shall be forwarded by the said authorities without delay. The said authorities shall inform the person concerned without delay of his rights under this subparagraph;

(c) consular officers shall have the right to visit a national of the sending State who is in prison, custody or detention, to converse and correspond with him and to arrange for his legal representation. They shall also have the right to visit any national of the sending State who is in prison, custody or detention in their district in pursuance of a judgement. Nevertheless, consular officers shall refrain from taking action on behalf of a national who is in prison, custody or detention if he expressly opposes such action.

2.The rights referred to in paragraph 1 of this article shall be exercised in conformity with the laws and regulations of the receiving State, subject to the proviso, however, that the said laws and regulations must enable full effect to be given to the purposes for which the rights accorded under this article are intended.”, in art. 36º da Convenção de Viena para as Relações Consulares, cuja versão original está disponível em

86 das violações do dever de informação por parte dos EUA, pelo que estas questões que qualificavam como de proteção diplomática dos seus nacionais, estavam debaixo da alçada do Tribunal Internacional de Justiça, com base no art. 1º do Protocolo Opcional da CVRC180.

Os EUA, contudo, alegaram que a questão em apreço não seria uma questão de interpretação da própria convenção, mas sim de proteção diplomática de nacionais alemães, pelo que o Tribunal Internacional de Justiça não seria competente para decidir ao abrigo do Protocolo Opcional da Convenção de Viena sobre as Relações Consulares.

Mais ainda, os EUA alegaram que a Alemanha não tinha esgotado todos os meios locais possíveis, pelo que o caso deveria ser apreciado pelos tribunais americanos e não pelo Tribunal Internacional de Justiça, provocando um conflito de jurisdições entre tribunais nacionais e um tribunal internacional com jurisdição universal.

O Tribunal Internacional de Justiça acabou por menosprezar os argumentos americanos e dar razão ao Estado alemão, decidindo-se pela existência de uma obrigação dos EUA de reparar os danos causados à Alemanha, com a execução dos seus nacionais sem o cumprimento do previsto na CVRC.

O Tribunal Internacional de Justiça entendeu que a CVRC concedia, para além de um direito ao Estado de exercer assistência consular, um direito aos próprios indivíduos de verem reparados os danos causados, direito esse que poderia ser exercido pelo Estado alemão.

Concluiu, assim, pela condenação dos EUA na revisão da sentença proferida, pela violação dos seus direitos existente, e na reparação dos danos causados, deixando, contudo, a execução deste comando pelos meios que os EUA entendessem mais adequados.

180 Protocolo relativo ao “Compulsory Settlement of Disputes”, disponível em http://legal.un.org/ilc/texts/instruments/english/conventions/9_2_1963_disputes.pdf.

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4.5.3. Conclusões

Este é um dos casos que nos demonstra que para além dos problemas de concorrência de sistemas de justiça internacional existentes a nível universal e a nível regional, poderá ainda ocorrer um conflito de jurisdições entre o nível doméstico e o nível internacional.

Com efeito, uma vez que não existe nenhuma norma geral que defina a supremacia das decisões de sistemas de justiça internacional, a vinculatividade do Direito Internacional Público continua a ser um dos seus próprios principais problemas, sendo um dos obstáculos que importa ultrapassar.

Neste caso, tal falta de vinculatividade é levada ao extremo em que dois indivíduos são lesados sem possibilidade de reparação, perdendo a vida, quando o rumo dos acontecimentos poderia ter sido outro, em primeiro lugar, se as normas de direito internacional da CVRC fossem respeitadas e, em segundo lugar, se o ordenamento jurídico internacional fornecesse uma solução cabal para uma questão tão premente como o é um indivíduo sujeito ao “death row” por um Estado que decidiu não cumprir as normas de direito internacional a que estava adstrito.

De facto, a decisão do Tribunal Internacional de Justiça é louvável, servindo de inspiração para o futuro, mas apresenta uma fraca utilidade prática no caso sub judice, uma vez que nenhum desenvolvimento aconteceu, ou foi apresentada qualquer reparação por parte dos EUA para além de um “pedido de desculpas” dirigido ao Estado alemão.

Ora, atento o bem jurídico em causa, o direito à vida, protegido por diversas normas de direito internacional público, inclusive de jus cogens, esta é uma falha que põe em causa a própria ratio do sistema e nos faz repensar a existência de todo o ordenamento jurídico internacional, nos moldes não vinculativos, grosso modo181, em que se apresenta.

181 Exclui-se claramente desta apreciação o sistema integrativo da União Europeia, cujas

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