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Pra início de conversa

P ROCEDIMENTO Jejum de comida e

12. Casos de morte

Foi a coisa mais triste do mundo,

ANA AMÉLIA VIANA

Há outra parteira que me contou que nem todos os partos que acom- panhou guardam um final feliz. É Dona Santa. Ela foi citada no início do livro, quando contei sobre uma mulher que ficou com o bebê em sua casa por dois meses até que o marido a viesse buscar.

Dona Santa tem muitas histórias pra contar. São mais de 2 mil partos assistidos com muito carinho por mãos, que aos 79 anos, pertencem a uma mulher bem mais jovem de coração. Para ela não tem um parto mais especial do que o outro. Todos foram bons, mesmo os partos em que o bebê veio com os braços, as pernas ou as nádegas primeiro. Fez também parto de trigêmeos, em casa. Ela adora partejar e tem a maior determinação na hora de cuidar de uma mulher.

De dentro de sua casa cheia de cores e seu vestido florido, Dona Santa me conta como foi o seu batismo como parteira: uma vizinha a chamou. Estava em trabalho de parto. Santa estava saindo para o trabalho de ser- vente em uma escola, mas decidiu ficar para ajudar a vizinha. O parto transcorreu bem e sua vizinha, que já havia tido muitos filhos, ensinou como ela deveria agir, passo a passo. Mais tarde, com medo de perder o emprego, Santa não sabia que justificativa dar para a falta no trabalho. “Essa mulher então, além de me ensinar a fazer parto, me ensinou a mentir. Me mandou ligar na escola e dizer pra diretora que eu estava ajudando minha irmã que acabava de parir. E quando liguei a diretora da escola ainda me liberou mais dois dias pra ficar cuidando dela”, conta.

Depois disso, Dona Santa nunca mais parou de fazer partos e até hoje as buchudas vão visitá-la. Ela aprendeu mais do que cuidar de gestantes.

Em sua comunidade, as pessoas a procuram para fazer curativos, cuidar de ferimentos ou tratar doenças com remédios caseiros. Uma garrafada que ela se orgulha de ter feito foi para sua neta, que criou como filha. A moça não conseguia engravidar e não tinha tratamento que lhe desse a alegria de um filho. Dona Santa perguntou a ela:

_Você quer mesmo ter um filho? _Eu quero demais...

_Então espera.

Dona Santa fez uma garrafada pra ela e o marido tomarem juntos. Eles tomaram três vezes. E então Dona Santa descobriu que seria bisavó.

Os dois filhos que Dona Santa teve morreram muito novos, mas lhe deixaram vários netos. E são essas crianças e todas as outras que nascem por suas mãos fazem a alegria dessa mulher.

Depois de muita experiência em fazer partos, Dona Santa queria sa- ber mais. Foi fazer o curso de auxiliar de enfermagem para aprender mais sobre como ajudar suas buchudas e trabalhou como parteira em mais de uma maternidade de São Luís. Dona Santa juntou o seu dom com o conhecimento que aprendeu no curso e na prática das materni- dades. Orgulhosa, ela pendurou o diploma do curso na parede, ao lado de uma foto da neta e de uma imagem de Jesus Cristo.

Para ela, o principal elemento na hora do parto é a paciência. É pre- ciso cuidar do bebê e da mãe, mas também é preciso esperar a natureza. “Uma vez uma buchuda me chamou quando eu ainda estava trabalhan- do na escola. Quando eu examinei ela, vi logo que ia demorar e liguei pra diretora dizendo que podia descontar o dia, que eu tinha um parto demorado”. Era sexta-feira e a mulher só teve o filho na terça. Foram quatro dias de trabalho de parto, mas tudo correu bem. “Passei mais oito dias na casa da mulher, ajudando ela com o menino, o umbigo e as coisas da casa. Nessa brincadeira, foram 12 dias”, conta ela, com uma gargalhada.

Apenas três foi o número de mulheres que Dona Santa precisou levar para o hospital, porque não tinham passagem. No hospital, essas mu- lheres tiveram parto normal. E mesmo com a presença do médico, Dona Santa não arreda o pé da cama da gestante: “Eu digo logo, vou ficar aqui e daqui ninguém me tira”. Sobre o exame do toque, para conferir os centímetros da dilatação do colo do útero, muitas vezes realizado nos hospitais por mais de uma enfermeira e médico, Dona Santa é taxativa:

A VIDA PEDE PASSAGEM

“A buchuda é minha e ninguém bota a mão. Só o médico”. Ela conta que sempre foi bem tratada nas maternidades. Só um médico a desagradou profundamente. Em vez de assistir sua buchuda, ele a mandou voltar pra casa.

Uma das mulheres do bairro Fumacê engravidou. Era o seu quarto filho. Os outros três foram amparados por Dona Santa. Dessa vez, a mãe decidiu que seria o último filho. Dona Santa acompanhou o andamento da gravidez e elas combinaram que o parto seria na Maternidade da Penha, para realização da ligadura de trompas.

Quando a mãe sentiu as dores das contrações, já que sabia, pela ex- periência dos primeiros três filhos, que estava na hora. Mesmo assim, foi com seu marido até a casa da parteira, pra ter certeza. Dona Santa examinou. “Ela estava com todos os sinais. Eu falei pra ela ir pro hospi- tal. E ela foi, com o marido. Naquele dia, eu não podia ir junto”, conta a parteira.

Ao chegar ao hospital com as dores, a mulher foi examinada. Após algumas horas de espera, o médico que a examinou disse que não estava na hora do bebê nascer. Receitou uma injeção e mandou a mulher pra casa. Dona Santa não sabe qual era a injeção, mas sabe que depois disso as contrações cessaram e a buchuda voltou pra casa.

Oito dias depois que a mãe esteve em sua casa para ver se era hora do parto, Dona Santa foi procurá-la, achando que a encontraria com o bebê nos braços e no fim do resguardo. Estava enganada, a criança ainda não havia nascido.

Dona Santa, ao entrar na casa e ver a mulher ainda muito barriguda, espantou-se:

_Minha irmã, você ainda não teve esse filho?

_Ô Dona Santa, eu fui lá, mas o médico disse que não era hora. Ele me deu uma injeção, me disse pra voltar pra casa.

_Minha irmã, você sente esse bebê mexer?

A mãe não respondeu. Dona Santa pensou alguns segundos e disse: _Minha irmã, tenho que te avisar. Acho que o seu bebê está morto. A parteira foi examinar. Depois de algum tempo, pediu que o pai da criança fosse até a farmácia comprar duas ampolas de glicose.

Quando o pai chegou com as ampolas, Dona Santa não perdeu tem- po. Aplicou uma das ampolas na veia da mãe e deu a segunda para ela beber. Logo vieram as dores.

CASOS DE MORTE

A mulher então pariu, com a ajuda da parteira, uma menina morta. A barriga da bebê estava inchada e até os olhos leigos podem ver que já tinha passado do tempo de nascer.

“O perigo era o bucho da menina estourar, porque já estava inchado. E se estoura, meu Deus, é bem pior pra tirar. Um risco enorme de in- fecção”. Dona Santa fotografou a criança morta após o parto.

De posse dessa foto, ela foi ao hospital procurar o médico que orde- nou que sua buchuda voltasse pra casa. Encontrou com ele e perguntou porque não fez o parto da mulher. O médico disse que o diagnóstico do dia estava correto: não era a hora do parto e a bebê deve ter morrido depois, e não por causa da injeção. Dona Santa levou a foto até a Uni- versidade Federal do Maranhão para mostrar aos alunos do curso de enfermagem. “Essa foto já rodou muito. Eu sempre mostro. O médico me pede pra rasgar, jogar fora, mas eu não jogo não. Pode fotografar se você quiser. Essa menina passou do tempo. Foi a coisa mais triste do mundo”.

Fotografia da bebê que nasceu morta, tirada por Dona Santa. A VIDA PEDE PASSAGEM

No povoado de Jardim, o mesmo povoado de Dona Celé e Dona Bete, também mora a parteira Dona Lúcia Gomes.

Dona Lúcia trabalha com castração de galos. Quando cheguei a sua casa, indicada por uma das agentes de saúde do povoado, ela estava no quintal, trabalhando.

É uma casa grande, na rua paralela à rua principal do povoado de Jardim. Nela moram a maioria dos filhos e netos de Dona Lúcia, um bando de crianças que correu chamá-la quando entrei. Na, sala de chão de cimento vermelho, há apenas uma estante com algumas fotos, um aparelho de som, enfeites e um grande quadro, com a foto de um senhor ao lado de um Salmo. Dona Lúcia entrou na sala com as roupas um pouco sujas de sangue.

_É que eu estava lá fazendo umas operação de capar galo... _justifi- cou-se, encostando-se na parede.

As crianças trouxeram cadeiras de plástico e nos sentamos.

Enquanto Dona Lúcia conversava comigo, as crianças se achegaram atrás dela, escondendo-se na porta, curiosas.

Essa parteira tem 59 anos e começou a fazer partos aos 26, com o seu próprio. Seu marido tinha ido buscar uma parteira, mas antes que ele pudesse chegar, a primogênita de Dona Lúcia nasceu.

_Quando ele saiu, me deu dor de ter, aí peguei uns paninho, colo- quei no chão, né. E aqui ela ia nascendo, eu me agüentei com uma mão e aparei ela com a outra. Aí eu tive ela, né?Aí depois disso me forrei toda, né. Baixei pra pegar ela, pra colocar nas minhas pernas pra cortar a umbigueirinha [cordão] dela. Aí a malvada daquela dor nojenta que a gente tem, começou a doer na barriga, a mãe do corpo [útero] que fica inflamada, né? E a placenta que tava saindo. Começou a doer e aí eu sentei um pouco. Aí a parteira chegou. Depois disso, continuei fazendo partos de quem precisava. Até a Dona Téia [enfermeira do Programa da Saúde da Família] me perguntou se eu tinha coragem. Com a benção de Deus, com a coragem que Deus me dá, eu faço. O que eu vejo que eu posso fazer eu faço.

Dona Lúcia tem 22 filhos, 18 nascidos com parteira. É o mesmo número de crianças que ela já amparou ao nascer.

Três de suas gestações foram de gêmeos. Em uma das vezes, ela estava grávida de trigêmeos. No sexto mês de gestação, os bebês mor- reram.

CASOS DE MORTE

_Dois o Doutor Francisco tirou. E o outro ele estrangulou lá. Muito grande, minha barriga tinha muita água. Esses morreram, mas também, quando era pra mim ter, eu anoitecia boa e amanhecia com o menino do lado. Era rápido.

Depois desses bebês, Dona Lúcia ainda teve mais um aborto es- pontâneo. Dos 22 filhos vivos, quatro nasceram em Tutóia.Três deles por acaso. Dona Lúcia estava na cidade por outros compromissos e sen- tiu as dores do parto, então foi ao hospital, se não teria tido esses filhos em casa também. Mas o último, o caçula de 16 anos, Dona Lúcia “custou pra ter”, no hospital. Depois de algumas complicações no parto, o bebê nasceu bem.

Dona Lúcia não tem nenhum curso ou treinamento para atuar como parteira, mas começou no ofício pegando crianças de amigas, vizinhas e irmãs por necessidade.

_Eu nunca tive entendimento de ninguém, nunca fui no hospital, nunca foi me informar com pessoa nenhuma, né? Minha informação só de Deus, que Deus me dá, me deu aquele dom. Aí com isso eu faço o que merece de fazer, né? E quando eu vejo que eu não posso fazer, que a criança está imbricada [atravessada] e não pode nascer, as dores são pouca, não tem condição, mando para um lugar mais avançado.

Sempre que pode, Dona Lúcia acompanha as mães até Tutóia. Durante o parto ou para as mães que a procuram, ela indica alguns tratamentos caseiros, mas não deixa de falar sobre a importância do o pré-natal.

_Às vezes eu ensino um chazinho de alho, pra dor, né, E quando termina também ensino pra elas que quando começar a doer, só coloca a mãozinha passando em roda pra não atacar hemorragia, viu?

Para ela, o momento mais difícil do parto é a saída da placenta, que muitas vezes pode estar grudada e, diferente da criança, ela não pode tocar e sentir da mesma forma. Eu pergunto à Dona Lúcia se ela tem alguma coisa pra indicar para a mulher que sempre sofre de aborto es- pontâneo ao engravidar.

_Aquelas que têm perdição? Às vezes eu ensino por aí alguma be- beragem, algum chá, que ela vai, né, buscando o Senhor, como o barro molhado [erva], que diz que é muito bom... Tem que tomar um cha- zinho também da barba do marido, é muito bom, né. O que eu sei assim

A VIDA PEDE PASSAGEM

eu ensino essas coisas. Aquino é bom pra normalizar, é um mato que tem aí que dá no interior. Aí o chá da casca do aquino, ela pode tomar enquanto está fraca. Às vezes, a criança tá doente na barriga da mãe, aí ensino pra colocar a cascazinha na água pra normalizar, pra ajeitar a criança. Agora, aroeira, é bom pra perder.

_Bom pra perder? _pergunto.

_É, aroeira. Aroeira já é bom pra fazer aparecer o tempo [menstrua- ção] da mulher e quando a criança tá em começo, diz que é bom pra perder, né. Quer dizer, que eu nunca fiz, mas eu vejo falar. Também não ensino, se vem me perguntar eu digo que não sei.

Dona Lúcia não costuma fazer massagens para ajeitar a posição da criança. Quando está demorando pra nascer, ou ela percebe que não está na posição, pede pra mãe ir para Tutóia. Ela se lembra de uma vez que notou que havia alguma coisa errada com o bebê ainda bem antes do parto.

Uma vizinha, Zilma, veio pedir pra ela examinar a barriga. Ela estava com a barriga bem grande e disse que estava no último mês de gravi- dez. Dona Lúcia examinou Zilma, mas achou que havia algo estranho. E contou à ela:

_Não quero te fazer medo, mas eu vou dizer a verdade. A sua criança não está normal, não está em posição de nascer. Se ele está, tem alguma coisa complicada, pois eu não acho a cabeça dele. Era bom você procu- rar um médico.

O mês se passou e Zilma, que já tinha passado por outras gravidezes, não teve o bebê. Também não procurou um médico, nem tinha realiza- do ultrassom. Quando ela começou a sentir as dores, mandaram chamar Dona Lúcia.

A parteira passou a noite e o dia na casa de Zilma e estranhou de- mora do parto. Perguntou para a parturiente se as dores eram assim fracas nos seus partos anteriores. Ela respondeu que não, que costumava ter os filhos com facilidade. A parteira então alertou a mãe e as irmãs da parturiente:

_Olha, o bebê não está normal. Está demorando e eu não acho cabeça.

Elas resolveram esperar um pouco mais. As dores aumentaram e Zil- ma começou a parir. O menino começou a nascer e Dona Lúcia pediu para mãe não fazer muita força. Ela também estava nervosa.

CASOS DE MORTE