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Casos especiais: a imagem-relação e a perambulação

5. Imagem-movimento X Imagem-tempo

5.2 Casos especiais: a imagem-relação e a perambulação

Dois casos especiais foram destacados por marcarem o intervalo entre a Imagem- movimento e a Imagem-tempo: a Imagem-relação e as cinco características de transição dos regimes. A Imagem-relação participa dos dois regimes descritos, apresentando signos para

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ambos e as cinco características são o próprio intervalo e atestam a passagem de um regime a outro.

A Imagem-relação é analisada por Deleuze no último capítulo do primeiro tomo e no primeiro capítulo do segundo tomo da obra Cinema. É um caso especial, pois, ao mesmo tempo, representa o esplendor da Imagem-movimento, mas também o começo da Imagem- tempo.

Deleuze começa a descrever “a crise da imagem-ação”, comentando a obra de Alfred Hitchcock. Para Deleuze, o fato de Hitchcock ser inglês fazia-o ter uma atenção especial pelas relações e, desse modo, ser responsável por “introduzir a imagem-mental no cinema e fazer dela a consumação, a culminância de todas as outras imagens”115. O estilo de Hitchcock é o mais marcante no uso das imagens-mental, ou imagens-relação, que são definidas por Deleuze como aquelas que tomam por objeto relações, atos simbólicos e sentimentos intelectuais:

“...nos filmes de Hitchcock, uma vez dada (no presente, futuro ou passado), uma ação vai ser literalmente cercada por um conjunto de relações que fazem variar o seu tema, a sua natureza, o seu objetivo, etc. O que conta não é o autor da ação (...), mas também não é a ação propriamente dita: é o conjunto das relações nas quais a ação e seu autor são apanhados”116.

Hitchcock, a partir das Imagens-relação, engloba os outros tipos de Imagem- movimento, enquadrando-as “num tecido de relações”. Festim Diabólico, no seu tão aclamado único plano, ilustra este estilo, pois a primeira cena do filme apresenta o assassinato e o desenrolar da trama é o desenvolvimento de um único raciocínio: é possível cometer o crime perfeito? Ou ainda, o exemplo do início de Janela Indiscreta, quando a câmera desliza pela máquina fotográfica quebrada, por fotos de automobilismo e chega a perna imobilizada da personagem na cadeira de rodas: traçou-se uma relação mental entre as imagens esclarecendo o tipo de profissão e o acidente que imobilizou a personagem. E mais a personagem imobilizada traça suposições mentais acerca dos seus vizinhos a partir do que vê pela janela e faz sua amiga “ser” suas pernas para ir conferir se suas suposições estão certas.

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IM, p. 245, [p. 269]. Nesta citação, “todas as outras imagens” referem-se as citadas no primeiro toma da obra.

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Deleuze destaca os signos expressos por esta concepção da Imagem-relação, são eles: a marca, a desmarca e o símbolo. A marca é o signo que expressa um termo que remete a outros numa série tal qual cada termo pode ser interpretado pelos outros. A desmarca acontece quando um desses termos salta da série e a contradiz. Estes dois signos são considerados pelas relações naturais que traçam entre os termos. O símbolo, por outro lado, é signo de um objeto concreto portador de diversas relações (ou variações da mesma relação) de um personagem para com os outros ou para consigo mesmo. São signos de relações abstratas.

O que marca o jogo duplo da imagem-relação, é o fato de que ela não só faz a “culminância” da imagem-ação, mas também atesta sua crise. As imagens-relação atestam esta crise quando estabelecem um elo mental entre a ação retirada do seu prolongamento normal traçando novas relações em seu lugar, principalmente com o desenvolvimento de situações ópticas e sonoras (optsignos e somsignos). Os optsignos e somsignos são signos da imagem-relação, porque apresentam relações mentais entre as situações ópticas e sonoras puras, já que elas não se encadeiam através do esquema sensório-motor tradicional. Isso começou a ocorrer, pois os autores novos não mais acreditavam na imagem-ação e precisavam de novas razões para voltar a crer no mundo:

"Nós não acreditamos mais que uma ação global possa dar lugar a uma ação capaz de modificá-la. Também não acreditamos que uma ação possa forçar uma situação a se desvendar, mesmo parcialmente. Desmoronam as ilusões mais 'sadias'. Em toda parte, o que fica logo comprometido são os encadeamentos situação-ação, ação-reação, excitação-resposta, em suma, os vínculos sensório- motores que constituíam a imagem-ação. O realismo, apesar de toda a sua violência, ou melhor, com toda a sua violência que continua sendo sensório- motora, não dá conta deste novo estado de coisa em que os synsignos se dispersam e os índices se confundem"117.

Deleuze afirma que esta crise inicia-se com o neo-realismo italiano (e desenvolve-se depois na nouvelle vague francesa, no cinema alemão e também no cinema independente americano) através do surgimento de cinco novas características de quebra ou afrouxamento da ação: “a situação dispersiva, as ligações deliberadamente frágeis, a balada-perambulação, a tomada de consciência dos clichês, a denúncia do complô”118.

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IT, p. 253, [p. 278-79].

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Neste cinema de transição, as histórias quase sempre não giram em torno somente da personagem principal (por isso a situação é dispersiva e as ligações frágeis), e se a fazem a tomam ou em perambulação (personagens em linha de fuga), ou tomando consciência dos clichês (entendido como a repetição de fórmulas) ou dos complôs (o poder oculto, os sistemas de controle). Perambulam o italiano que tem sua bicicleta roubada, o Pierrot, le

fou de Godard, como também os motoqueiros de Easy Rider.

Há ainda, enquanto signos da imagem-relação, os mnemosignos e onirosignos. São signos que pertencem aos dois regimes, pois são signos especiais. Nesta pesquisa, um de seus aspectos, foi incluído na imagem-relação. Os mnemosignos e onirosignos são signos que remetem a memória e aos sonhos. Fazem isso de duas formas: por um lado, têm um caráter intermitente, ou seja, vai-se a um flashback ou a um sonho, com a condição de que volte ao presente e explique-se onde estava temporariamente, serão signos da Imagem- movimento e atestam uma relação mental entre realidade-imaginação e entre presente- passado. Porém, de outro lado, quando se vai a um sonho ou memória, criando uma indiscernibilidade entre o real e o imaginário ou entre o presente e o passado, é o domínio das imagens-cristal, sendo, portanto, signos da Imagem-tempo (exemplos: os sonhos dos filmes de Luis Buñuel ou Fellini, e os flashbacks de Allain Resnais). Aqui, também é importante notar que a imagem-cristal também toma por objeto relações, mas estabelece uma relação entre o atual e o virtual, fazendo com que suas características sejam diversas da imagem-relação.

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